Vergílio Ferreira, agora…
Consistente e único,
Vergílio Ferreira é um escritor que escreve para ser lido, porque pode, de
facto, ser lido. Volto ao Mestre como quem volta à pele, sem intenção calculista
meramente celebrativa ou desígnio intrometido. Para mim, Vergílio é o Mestre, o
escritor, o epofante. Quem como ele depós a palavra, arejando-lhe a
resplendência, enxugando-lhe a aridez?
Enxuto o fluxo, a irradiação
vergiliana projeta-se no tempo e afunda-se na literatura que não é margem.
Centralíssimo, no veio, o corpus
esplende, magnífico e sem-par. Mas Vergílio não começou agora, antes atrás, lá
pela década de trinta do século XX, momento em que a forja não conhecia o
tédio. Tal aconteceu, por exemplo, com o ensaio Sobre o humorismo de Eça de Queirós (Coimbra, Faculdade de Letras,
1943), que o autor apresentara na cadeira de Literatura Portuguesa, em maio de
1939, ou com o romance O caminho fica
longe (Lisboa, Inquérito, 1943), escrito entre janeiro e dezembro de 1939.
Quando o ensaio
coimbrão vem a lume, com profunda remodelação, acrescente-se, estava Vergílio
Ferreira por Faro. E foi sob a senda do humorismo que quase tudo começou. E
sobre Eça, diga-se ainda. Não deixa, pois, de ser interessante o facto de os
dois motivos transitarem para o primeiro romance impresso de Vergílio Ferreira –
Eça e um insinuado humorismo, em clima habitualmente trágico, são bons indícios
das influências queirosianas no autor de Para
sempre.
Muitos escritores,
começando por Eça, mas passando por Régio, Branquinho da Fonseca e tantos
outros, sem denegarem o amor à academia coimbrã, manifestam nos seus escritos
uma certa aversão pela universidade e os seus mestres. Assim acontece também
com Vergílio Ferreira, que produz, em O
caminho fica longe, o seguinte mimo sobre os lentes universitários, pela
boca da personagem Fernando:
-De resto, para se ser lente, é preciso ser um tanto ou quanto
empedernido, impermeável às belezas da vida… Olha, eu estive para ser convidado
a doutorar-me. ¿Pois sabes porque desistiram? Porque eu era dado a literatices
modernas e esgalhava o meu romance… Grande cambada! Para ser lente é preciso
usar sebo arqueológico nas abas do
chapéu e do casaco, andar sempre derreado com livros e ser bronco. Podeis ter a
certeza. E é que são uns parvalhões! Um dia o Soeiro, que é assistente, quando
falou de eu escrever romance, ¿sabeis o que me disse?: «Não se banalize…»
Grande besta! Claro que eles não são banais, são aves raras. […] Que a mim não
me interessa. Mas vê tu a estupidez destes tipos: amesquinham a arte literária
e afinal os artistas… Enfim, a posteridade encarrega-se de fazer justiça. (Op. cit., pp. 90-91.)
Prosseguiu ainda o sanguíneo Fernando
com a sua diatribe. Compenetrado «das verdades que dizia, apoucou ainda mais o
valor intelectual do lente. Afirmou que o professor universitário é uma espécie
de fóssil, um bruto que estacou, firme como rocha, nos conhecimentos
enfardelados, à pressa, para o exame de doutoramento.» (p. 91)
Eis mais um fascínio da escrita
vergiliana assim desvelado neste dia nascente…
Viseu, 28 de fevereiro de 2016
Martim de Gouveia e Sousa
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