2012-08-31

bartholdy


tantas grades quantos os anos de prisão, sophie.
e tantos os pensamentos neste sítio desgraçado.
trinta e oito anos e muitos milhares de choros,
de cotovelos dentro da água, de morte substantiva.
eis-me nesta luz contigo, os cogumelos na mão, tu.

2012-08-30

"As regras do jogo" de Vasco Branco



Sob o nº 10-11 da coleção ”Autores Portugueses” da Editora Arcádia Limitada, veio a lume, em janeiro de 1960, o livro de novelas As regras do jogo, onde se inclui, para lá da que dá nome à obra, o texto narrativo Flávia. A belíssima capa é de Victor Palla.
Vasco Branco, aviso, é um escritor que deveremos conhecer. A sua prosa é ática e interroga-nos, não permitindo indiferença ou subterfúgio. Os espaços da sua Aveiro natal desfilam perante os nossos olhos e são perfeito palco de confrontos interindividuais e de estados deceptivos. A estilística e as temáticas de Vasco Branco convocam autores como Irene Lisboa e Vergílio Ferreira, até na tragédia que impende sobre as personagens que se vão gastando no jogo relacional.
Eis, como ainda não há muito aqui terei dito, um escritor deslembrado a merecer urgente visita.

2012-08-29

sophie


então a morte toda a ternura nos alimentos
os braços estendidos o calor aumentando
toda a ebulição das panelas a fidelidade
aos ingredientes uma cozinha para fritz
os braços estendidos a pulsão muscular
os espasmos rendidos aos cogumelos
laboriosos dissecados no azeite virginal
toda a música aqui nesta arte da cozinha
os braços estendidos corpo no corpo
um breve peso avança modula fendente
penetra um rizoma aí explode o refogado
encobre o veneno letal alguns cogumelos
apenas só isso basta para que rapp morra
os braços distendidos a cortina nos olhos
um adormecimento súbito bate nos queixos
a morte à mesa devorante a morte à mesa
essa pancada súbita esse acidente ocidental
os braços inertes o amarelo do tempo o pus
oxidante no impudico ato de virgem donzela
um braço seu vivo ditou a morte com esta arma.

2012-08-24

"Jan Karski - O herói que tentou travar o Holocausto" de Yannick Haenel




Acabei de ler Jan Karski – O herói que tentou travar o Holocausto (2009), de Yannick Haenel, livro que foi Prémio Interallié de 2009. Recuamos até ao ano de 1942, em Varsóvia, para assistirmos ao investimento de Karski como mensageiro da resistência polaca junto do governo externo em Londres. A missão passa ainda pela introdução de Karski no gueto de Varsóvia, a fim de melhor poder testemunhar perante os Aliados e o Mundo o extermínio de que os judeus estavam a ser alvo.
Depois de alertar ingleses e americanos, estranha Jan Karski que ninguém o queira ouvir, que ninguém aja e que muitos simulem durante muito tempo tudo desconhecer.
É um livro importante e certeiro. Haenel conjuga sabiamente o documentarismo com a ficção e deixa-nos a lição de devermos olhar para a tragédia de um modo menos ingénuo. Ninguém acreditou, “porque ninguém queria acreditar.”
A tradução foi feita a partir do título original Jan Karski das Éditions Gallimard para a Editorial Teorema, SA, e o trabalho esteve a cargo de Carlos Correia Monteiro de Oliveira.  

2012-08-20

Ler nas férias: "Nostromo. Uma história da beira-mar" (1904) de Joseph Conrad (1857-1924)




Acabei de ler Nostromo. Uma história da beira-mar (1904) de Joseph Conrad (1857-1924). É um romance fabuloso sobre um certo italiano de nome Jean-Baptiste Fidanza, conhecido por Nostromo, que, em busca de fortuna em Sulaco, vem a granjear o respeito de todos os habitantes. Ameaçada por rebeldes, Sulaco e a mina de San Tomé sofrem todas as convulsões, atribuindo-se a Nostromo e a Martin Decoud a missão de salvaguardar um carregamento de prata através de fuga marítima. E o romance avança com todos os ingredientes que prenderão o leitor até ao final das suas mais de quinhentas páginas.
Dramático, trágico, simbólico, o romance é justamente considerado uma das obras maiores de Conrad e da literatura universal. O halo de fatalidade que vai recobrindo personagens e ação é sempre verosimilhante e acreditável.
Li pela 2ª edição (janeiro de 2009) da tradução de Ana Maria Chaves e Fernando Ferreira Alves para as Publicações Dom Quixote. O exercício de revisão textual deveria ser apurado. 

2012-08-18

Exposição "Tarefas infinitas - quando a arte e o livro se ilimitam" na FCG


Original exposição  esta presente na Galeria de Exposições Temporárias do Museu Calouste Gulbenkian.

2012-08-17

romeik


todas as guerras são longas
breves são quaisquer amores
e mesmo as ligeiras pausas
mais não são do que luzes
iluminando na escuridão...

o peso disso na cozinha
e na prole disseminada
em cada fogo levantado
como força combinada
mesmo no vão de escada.

assim o domínio territorial.

2012-08-16

Eça de Queirós: depois da morte mais vida


Passará ainda muito tempo antes que qualquer ficcionista português atinja a leveza e o caráter irradiante da prosa queirosiana. Muito bem avisava Vergílio Ferreira sobre esse poder que tudo queimava - dizia Vergílio que depois de O primo Basílio nada mais poderia ser feito. O tempo tem vindo a acertar essa evidência.
Passa tempo certo sobre a morte parisiense do nosso maior romancista. Muito viva, a escrita queirosiana ensina que todos os dias a sua matéria se pratica no palco pátrio. Infelizmente!

2012-08-14

amanda


subitamente os olhos
incêndios profundos
na limpidez do rosto
assim todo o gesto
move as articulações
os nexos residuais
as unhas nos lábios
cavando a potência
e um silêncio perto.

por fim na boca a faca
a sopa e a batata isso
na prússia é política
diariamente cuidados
ao povo dar isso dar.

os séculos passam
quase três parece
a sintaxe do garfo
o puré do corpo
sangue no sangue.

2012-08-13

"Naturalidade" de Rui Knopfli ["O país dos outros", 1959]


Naturalidade
 
Europeu, me dizem.
Eivam-me de literatura e doutrina 
européias
e europeu me chamam.
 Não sei se o que escrevo tem raiz a raiz de algum 
pensamento europeu.
É provável ... Não. É certo, 
mas africano sou.
Pulsa-me o coração ao ritmo dolente 
desta luz e deste quebranto.
Trago no sangue uma amplidão
de coordenadas geográficas e mar Índico.  
Rosas não me dizem nada, 
caso-me mais à agrura das micaias 
e ao silêncio longo e roxo das tardes 
com gritos de aves estranhas.

Chamais-me europeu?  Pronto, calo-me.
Mas dentro de mim há savanas de aridez 
e planuras sem fim
com longos rios langues e sinuosos, 
uma fita de fumo vertical, 
um negro e uma viola estalando.

2012-08-12

"amor das palavras" de Rui Knopfli


AMOR DAS PALAVRAS

Amo todas as palavras, mesmo as mais difíceis
que só vêm no dicionário.
O dicionário ensinou-me mais um atributo
para o sabor dos teus lábios.
São doces como sericaia.
Faz-me pensar ainda se a tua beleza não será
comparável à das huris prometidas.
No dicionário aprendi que o meu verso é 
por vezes fabordão e sesquipedal.
Nele existe o meu retrato moral (que
não confesso) e o de meus inimigos,
rasteiros como seramelas sepícolas
e intragáveis como hidragogos destinados à comua.
O dicionário, as palavras, irritam muita gente.
Eu gosto das palavras com ternura
e sinto carinho pelo dicionário,
maciço e baixo e pelo seu casaco, azul
desbotado, de modesto erudito.

[Rui Knopfli, in O país dos outros, 1959]

2012-08-11

"epigrama" de Rui Knopfli ["O país dos outros", 1959]


['epigrama', in Rui Knopfli, "O país dos outros", 1959]

Os teus lábios, digo-te, não são doces
como mel.

(O mel 
acaba por enjoar).

Mas são doces, os teus lábios, digo-te.
Mas doces como quê?
Ora, doces como eles são.

Doces?

Sim, olha, doces como o pão
que todos os dias comemos
sem fartar.

2012-08-10

Glória a Rui Knopfli


Alertado por imagem que passava no meu facebook, apercebi-me, através de Eduardo Pitta, que se Rui Knopfli estivesse vivo faria hoje 80 anos. Bem, dias de ler poetas maiores são todos. Mas este, de facto, merece uma homenagem por dentro dos textos. E vá de reler esse lugar maior que é "Mangas verdes com sal".
Reli-o pela 1ª edição, que felizmente possuo na minha biblioteca. E o objeto, que apresento em imagem, é um livro pleno de sinais: a capa é de António Quadros (o poeta João Pedro Grabato Dias), a "Nota muito sumária a propósito da Poesia de Moçambique" é de Eugénio Lisboa e trata-se da obra inaugural da coleção "N'Goma", de "textos e problemas moçambicanos".
É um livro avassalador, belíssimo. Na releitura, perto do fim, topo com esta pérola, que transcrevo:

[SEM NADA DE MEU]

Dei-me inteiro. Os outros
fazem o mundo (ou creem
que fazem). Eu sento-me
na cancela, sem nada
de meu e tenho um sorriso
triste e uma gota
de ternura branda no olhar.
Dei-me inteiro. Sobram-me
coração, vísceras e um corpo.
Com isso vou vivendo.


Ando a reler estas "mangas". Já reli. Mas é como se nunca acabasse a leitura. Glória a Knopfli.

2012-08-04

opitz


opitz sob fresca copa lamenta os desamores
a impossibilidade das florações acesas a sede
de pintura e poesia fazer e não o poder - o não
é funda cicatriz uma ferida aberta agramatical
e bem fundo o lume desperta em kurbiella
quando as chamas absolutas nela são poesia
e pintura e matéria mineral nas mãos deflagrando.

2012-08-02

möller


nada esperes da fama nada que nada é
bem vês como em tudo fingimento vale
falsos sabedores querem ode triunfal
há pouco chegados ao escasso saber
simulam árduo estudo muito que ler
todo o carnaval nasce assim estival
com anões presunçosos gloriosos
prontos a malabarismos interesseiros
como peter vão subindo sem saber
clara mélange entre ler e não ler...

eles encafuam-se nas vestes finas
aprontam-se em mãos de veludo
afinal todo o ar vale mais que tudo
sisudo avança o palhaço sinistro
cede aos poderes quer ser ministro
que isto de ser tapete há de valer
em roldões mais que o euromilhões
avançam com espadas motorizadas
relíquias outras por autoestradas
sempre prontos a suas facadas...

möller observa sonha pintar a cidade
em outras tonalidades um pingo pôr
de ouro sobre as magnólias enganadas
jubilante aparição espoletar as águas
lavando a tormenta a revolução disso
lustral um coração nas mãos abrasado
as nuvens aos pés os rios no corpo
pintar a cidade a placenta o sonho aí.

devastada a cidade nem o canto a acorda.

2012-08-01

Ler nas férias (2): "Flor seca" de Vasco Branco



Depois do êxito inicial com Telhados de vidro (1952), Vasco Branco prova, através desta coletânea Flor seca (1956), ser um dos mais importantes contistas portugueses. Conciso, direto, lírico, ácido e arrebatador - eis alguns apodos que se nos escapam.

Dentro de uma certa disforia, em que os semas da "escuridade" dominam, os contos de Vasco Branco obrigam a que pestanejemos, assim se cumprindo a prova steineriana da qualidade. 
O livro contém ilustrações de João Martins e foi em boa hora lido em exemplar de 1º edição da aveirense Litoral Editora - e nem sei se haverá outra.
Não custa nada juntar o nome de Vasco Branco aos nossos melhores contistas: Eça, Fialho, Branquinho, Domingos Monteiro, Régio, Vergílio, Torga, Araújo Correia... Basta um conto para a integração de um grande escritor pouco lido e, se calhar, pouco conhecido.