2015-12-03

ISTO: RAMALHO


ISTO: RAMALHO

Em tom de festa, a literatura não é isso – festa. A melhor, do silêncio vindo, não resiste muitas vezes à usura, ao galanteio fácil, ao chiste e ao piropo de prebenda. Porque não usados, os textos de muitos autores fortes vão ficando encostados, esquecidos, desalinhados. E ainda bem! Antes isso que um uso irregular e escassamente comemorativo. A apropriação desalinhada de pequenos ditos, fulgurantes sentenças que sejam, não ajuda o escritor, maltrata a literatura. Que, diga-se, felizmente não tem costas e logo rechaça os arreganhos.
Vem tudo isto a propósito de Ramalho Ortigão (1836-1915), estranhamente deslembrado em ano de centenário. Dizê-lo um grande escritor é obrigação, claro. Lembro, por exemplo, o garboso livro de «juventude» Em Pariz (Porto, Typographia Lusitana, 1868), que tanto nos ensina sobre a flânerie e o bom gosto. O livro em causa cruza a crónica com a ficção, o real com a transmigração, oferecendo-nos pérolas inúmeras. Por exemplo, sobre a necessidade de se ser profundamente original, isto: «Hoje em dia um viajante que se não apeie de um balão com notícias da lua, precisa de nos ser muito sympathico para o não termos por um semsaborão quando vier contar o que viu.» (p. 5) Ou, por exemplo, a valorização e estatuição canónica de nomes tão fortemente nacionais e esquecidos (Ramalho vai falando de Bernardes, Herculano, Garrett…), lamentavelmente ditos mestres e quase nada lidos: «… nós fallamos uma língua, que tem sido cultivada por vários homens de genio, entre os quaes se cita um padre chamado Antonio Vieira, cuja forma e geito litterario estão sendo agora imitados e remoçados nos escriptos do snr. Victor Hugo.» (p. 21) Ou o culto dos lusófilos, como acontece com Ferdinand Denis, que habitava «uma pequena casa anexa á esplendida biblioteca de Sainte-Geneviève, na Place du Panthéon», onde o nosso Ramalho aquecia a mocidade «ao calor do seu espírito» (p. 69). E o que não perpassa aqui de amor à cultura e ao saber! Lembre-se, por fim, isto: «Um homem que saiba comer reconheceu-se afinal que era tão raro e tão precioso como um homem que saiba pensar.» (p. 82) Que grande filosofia a de Ortigão!...
Há nesta escrita e nesta ambiência, em genética de um século, uma linhagem que é a de Garrett, Ramalho, Eça e Aquilino. Quem pode, pois, contar o que não viu e muito menos leu?

Viseu, 3 de dezembro de 2015

Martim de Gouveia e Sousa

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