ISTO: RAMALHO
Em tom de festa, a literatura não
é isso – festa. A melhor, do silêncio vindo, não resiste muitas vezes à usura,
ao galanteio fácil, ao chiste e ao piropo de prebenda. Porque não usados, os
textos de muitos autores fortes vão ficando encostados, esquecidos,
desalinhados. E ainda bem! Antes isso que um uso irregular e escassamente
comemorativo. A apropriação desalinhada de pequenos ditos, fulgurantes
sentenças que sejam, não ajuda o escritor, maltrata a literatura. Que, diga-se,
felizmente não tem costas e logo rechaça os arreganhos.
Vem tudo isto a propósito de
Ramalho Ortigão (1836-1915), estranhamente deslembrado em ano de centenário.
Dizê-lo um grande escritor é obrigação, claro. Lembro, por exemplo, o garboso
livro de «juventude» Em Pariz (Porto,
Typographia Lusitana, 1868), que tanto nos ensina sobre a flânerie e o bom gosto. O livro em causa cruza a crónica com a
ficção, o real com a transmigração, oferecendo-nos pérolas inúmeras. Por exemplo,
sobre a necessidade de se ser profundamente original, isto: «Hoje em dia um
viajante que se não apeie de um balão com notícias da lua, precisa de nos ser
muito sympathico para o não termos por um semsaborão quando vier contar o que
viu.» (p. 5) Ou, por exemplo, a valorização e estatuição canónica de nomes tão
fortemente nacionais e esquecidos (Ramalho vai falando de Bernardes, Herculano,
Garrett…), lamentavelmente ditos mestres e quase nada lidos: «… nós fallamos
uma língua, que tem sido cultivada por vários homens de genio, entre os quaes
se cita um padre chamado Antonio Vieira, cuja forma e geito litterario estão
sendo agora imitados e remoçados nos escriptos do snr. Victor Hugo.» (p. 21) Ou
o culto dos lusófilos, como acontece com Ferdinand Denis, que habitava «uma
pequena casa anexa á esplendida biblioteca de Sainte-Geneviève, na Place du
Panthéon», onde o nosso Ramalho aquecia a mocidade «ao calor do seu espírito»
(p. 69). E o que não perpassa aqui de amor à cultura e ao saber! Lembre-se, por
fim, isto: «Um homem que saiba comer reconheceu-se afinal que era tão raro e
tão precioso como um homem que saiba pensar.» (p. 82) Que grande filosofia a de
Ortigão!...
Há nesta escrita e nesta
ambiência, em genética de um século, uma linhagem que é a de Garrett, Ramalho,
Eça e Aquilino. Quem pode, pois, contar o que não viu e muito menos leu?
Viseu, 3 de dezembro de 2015
Martim de Gouveia e Sousa