2015-12-23

[natal por fazer]

[natal por fazer]

não há natal nas mãos
nem calor nas veias
antes um mar confuso
de baixas prisões
onde se dita velho fado
de matar a vida.

nas mãos não há natal
que possa render-se
às manhas da opressão
que sobre fracos cai
delindo o sonho
e a luz de cada dia.

faz o natal com as tuas mãos

e levanta os olhos nesse fogo.

2015-12-16

Luandino & Aquilino


Luandino & Aquilino

Depois de ter pensado nisso, nada melhor do que escrevê-lo. É ou não verdade que quando, por exemplo (mas esta exemplificatio é muito importante), lemos O Malhadinhas, logo pensamos nas estórias de Guimarães Rosa e Luandino Vieira? E tal linha identitária não se restringe apenas à ambiência, antes a toda uma estrutura criativa que faz Rosa e o seu Grande Sertão um intertexto de Aquilino, o mesmo se passando com Luandino, que aquilinianou.
Vamos então à confidência do escritor angolano que escrevia e como poucos escreve. Inscrever em obra que o tempo assinalou frases como «A chuva saiu duas vezes nessa manhã.»[1] ou «Ri um riso triste, gasto, rouco do tabaco das cigarrilhas fumadas para dentro.»[2] é abandonar a literatice e entrar, rapidamente, na cidadela da literatura. Dobra, portanto, o valor da nota que Luandino apõe no seu diário, com data de 16-7[-1967]:
«Para o pai, no dia dos anos, o «Malhadinhas» do Aquilino – faz-me lembrar o que ele me contava do avô Balhão.»[3]
Luandino admite a influência, as múltiplas influências. E nem dizer ‘do’ é dizer ‘de’. Mas, afinal, quem não aquiliniana?
Viseu, 15 de dezembro de 2015
Martim de Gouveia e Sousa



[1] José Luandino Vieira, Luuanda, Belo Horizonte, Editora e Distribuidora «Eros», Ltda., 1965, p. 15.
[2] Id., ibid., p. 28.
[3] Id., Papéis da prisão, diário, correspondência (1962-1971), Alfragide, Caminho, 2015, p. 807. Organização Maria Calafate Ribeiro, Mónica V. Silva, Roberto Vecchi.

2015-12-14

Daniel Faria: ao contrário do ódio


Sob o influxo de outra grande voz, no caso Dylan Thomas, Daniel Faria, partindo do ocasional dístico do poeta galês («Não entres docilmente na noite serena / Odeia, odeia a luz que começa a morrer.»), deixa-nos um pensamento arrasador, belíssimo e definitivo:

«Eu não entro docilmente na noite serena, mas não odeio a luz que começa a morrer. O ódio tem a força de quem se despedaça. Eu tenho o sofrimento daquilo que se desfaz.» (Daniel Faria, O livro do Joaquim, Vila Nova de Famalicão, quasi edições, 2007, p. 78.)

Faria espalha-se assim pelo Olimpo, plantando em todos um esplendoroso e sofrido natal. Fora do coração, o ódio despedaça-se no vazio. A poesia ensina, ensina sempre. Esta, esta poesia. 

2015-12-13

A dignidade em José Luandino Vieira


Arvorando-se em centro da representação, tem feito narrativa o facto de alguns actores da causa pública lamentarem prisões e investigações a políticos e seus próximos. Chega-se ao cúmulo, até, de serem as próprias vítimas (mas, sê-lo-ão?) a estabeleceram cotejos impossíveis. Afinal, há por aí muitos mandelas, cunhais, luandinos, soares... e tudo, afinal, não passa de delito de opinião, ideologia e perseguição política.
Olhando o desassombro, apetece rasurar, obliterar e deslembrar a inutilidade. Lembro, no entanto, Luandino e a sua dignidade de prisioneiro e de escritor:

«27-03-63  São 6h, fecharam a  porta. Tenho o papel branco à minha frente. Terei coragem?... Vou tentar começar o conto.» (Papéis da prisão Apontamentos, diário, correspondência [1962-1971], Alfragide, Caminho, 2015, p. 219 )

Assim um homem que é grande. Digno o humano, imenso o escritor. Poucos assim, muito poucos assim.

2015-12-12

A amizade de Daniel Faria


A grande literatura ensina sempre. Não necessitando de colagens, seguidismos e oportunidades, os textos fundos afundam-se, gravando-se na pele. E pelo tacto irrompem, clamando o tempo da desvelação. Da amizade aos raros vocábulos vindo, da amizade tratam, como o anunciam os líricos gregos e o tratadistas romanos, nomeadamente Cícero. Contra o frenesim da citação sem lugar, diga-se que a amizade deve ter lugar, é mesmo o lugar, sendo infensa a vulgarizações sem casa. Abomino livros de citações sem lugar. Adoro as boas citações. A propósito, que dizem desta (?), sobre a amizade:

«Na amizade, muitas vezes, a distância é o lugar mais próximo e de maior proximidade, isto é, onde a presença do outro de tão inteira já não pode ser medida. Sendo um lugar cheio de saudade, esse é também um lugar feliz, porque aí sem cessar se regressa e avista.» (Daniel Faria, O livro do Joaquim, Vila Nova de Famalicão, quasi edições, 2007, pp. 76-77).

Saudade, saudade disso - desse lugar... 
  

2015-12-07

A poesia segundo Daniel Faria


A poesia não pode e não deve, porque ela é pestanejamento e univocalidade. Ir no ritmo, ir na história, ir na folia é, afinal, não ser poesia, não ser originalidade radical. Um poeta corta a raiz e constrói. Sub-sobre o tempo o poema abisma-se. Sendo, contempla-se no que foi - sabe a historicidade, não o sendo, antes sendo-se em espanto. Assim diz o iluminante Daniel Faria, em texto datado do Porto, 15 de julho de 1993:

«Pelo que ficou dito se conclui que a poesia é surpresa. Esse é o seu modo de ter profundidade e harmonia.» (Livro do Joaquim, Vila Nova de Famalicão, 2007, p. 72).

Descobrir, ver primeiro, surpreender, eis a essência poética, eis o destino de Daniel Faria...


2015-12-06

O rigor de Luandino Vieira



Um escritor que o é exemplifica-se, não temendo a diferença, a superioridade igual. Na linhagem, nesse antigamente presente, o escritor enlaça-se em Joyce e abraça Guimarães Rosa. Juntos são indivíduos, genialidades afins na diferença e na indesmentível integridade.
José Luandino Vieira é um escritor, mesmo quando não escreve. Di-lo o que escreveu e o que não escreveu. O rigoroso silêncio exemplifica ainda a sua mestria - o silêncio, esse motivo definidor e diferenciador. Luandino não é festas e néon, comércio e prémios, comendas e literatice - ele é literatura e não usura disso.
E tudo isto a propósito dos fulgurantes Papéis da prisão (Apontamentos, diário, correspondência) [1962-1971] (Alfragide, Editorial Caminho, 2015) e de ditos como o seguinte:

«Queria escrever o conto, mas estou com o medo habitual do papel branco...» (p. 96)

Luandino, mestre que o é...

2015-12-03

ISTO: RAMALHO


ISTO: RAMALHO

Em tom de festa, a literatura não é isso – festa. A melhor, do silêncio vindo, não resiste muitas vezes à usura, ao galanteio fácil, ao chiste e ao piropo de prebenda. Porque não usados, os textos de muitos autores fortes vão ficando encostados, esquecidos, desalinhados. E ainda bem! Antes isso que um uso irregular e escassamente comemorativo. A apropriação desalinhada de pequenos ditos, fulgurantes sentenças que sejam, não ajuda o escritor, maltrata a literatura. Que, diga-se, felizmente não tem costas e logo rechaça os arreganhos.
Vem tudo isto a propósito de Ramalho Ortigão (1836-1915), estranhamente deslembrado em ano de centenário. Dizê-lo um grande escritor é obrigação, claro. Lembro, por exemplo, o garboso livro de «juventude» Em Pariz (Porto, Typographia Lusitana, 1868), que tanto nos ensina sobre a flânerie e o bom gosto. O livro em causa cruza a crónica com a ficção, o real com a transmigração, oferecendo-nos pérolas inúmeras. Por exemplo, sobre a necessidade de se ser profundamente original, isto: «Hoje em dia um viajante que se não apeie de um balão com notícias da lua, precisa de nos ser muito sympathico para o não termos por um semsaborão quando vier contar o que viu.» (p. 5) Ou, por exemplo, a valorização e estatuição canónica de nomes tão fortemente nacionais e esquecidos (Ramalho vai falando de Bernardes, Herculano, Garrett…), lamentavelmente ditos mestres e quase nada lidos: «… nós fallamos uma língua, que tem sido cultivada por vários homens de genio, entre os quaes se cita um padre chamado Antonio Vieira, cuja forma e geito litterario estão sendo agora imitados e remoçados nos escriptos do snr. Victor Hugo.» (p. 21) Ou o culto dos lusófilos, como acontece com Ferdinand Denis, que habitava «uma pequena casa anexa á esplendida biblioteca de Sainte-Geneviève, na Place du Panthéon», onde o nosso Ramalho aquecia a mocidade «ao calor do seu espírito» (p. 69). E o que não perpassa aqui de amor à cultura e ao saber! Lembre-se, por fim, isto: «Um homem que saiba comer reconheceu-se afinal que era tão raro e tão precioso como um homem que saiba pensar.» (p. 82) Que grande filosofia a de Ortigão!...
Há nesta escrita e nesta ambiência, em genética de um século, uma linhagem que é a de Garrett, Ramalho, Eça e Aquilino. Quem pode, pois, contar o que não viu e muito menos leu?

Viseu, 3 de dezembro de 2015

Martim de Gouveia e Sousa

2015-12-01

Sobre «O livro do Joaquim» de Daniel Faria


1. Quase nunca um livro é assim tão minudente, tão tenso, tão libertador. Sobre a existência dizendo, este golpe poético diarístico é ainda uma tábua de salvação - preso à dor, ao sofrimento, aos sentimentos mais quotidianos e infinitos, eis um fundo e tocante manual de aprendizagem.

2. Aqui não há gangas, excessos, gorduras. Só palavras sílaba a sílaba significantes, significando o rigor da linguagem, o rumor agudo da mensagem, a escorrência vital da dor. Sem isto, não há isto.

3. Apontando o perigo desde o pórtico («Joaquim // no fim deste livro / talvez seja o teu nome a única / palavra que deixemos por riscar»), é de vida que se fala, desse perigo, como o diria um também fulgurante Guimarães Rosa. 

4. Este livro mastiga-se: «Não acredito que cada um tenha o seu lugar. Acredito que cada um é um lugar para os outros.» Este livro não pode ser apenas do Joaquim, pois não?