LIMIARES DA ESCRITA
«A barca segue avante
a todo o pano» - os Poemas de João
Fonseca Amaral
Em passeio por dentro do inverno, aqui, pela nossa
cidade de Viseu, junto às pontes da zona da Ribeira, a chuva mais do que
oblíqua segredou-me que a desmemória é pecado dos homens. Eu já o sabia desde
há muito e não o pude negar. Aqui à minha beira, junto a esta água, que é barca
que «segue avante a todo o pano», nascera, pelas sete horas e quinze minutos do
dia seis de março de 1928, um indivíduo de nome João da Costa Fonseca Amaral.
Talvez em Viseu poucos saibam quem é e talvez isso pouco importe a quem
continua a pensar que o que não se sabe é culpa de outros ou simples minudência
sem préstimo.
Este é mais um caso terrível de incúria. Eu explico
dizendo que João Fonseca Amaral é, como o diz Rui Knopfli, «um dos nomes mais
altos e representativos da Poesia em Moçambique», tendo
influenciado o próprio Knopfli e nomes tão fortes como os de Noémia de Sousa,
Rui Nogar e José Craveirinha, para só falar em quatro.
Poeta escassamente transbordante e muito menos
operoso, Fonseca Amaral foi um escritor que disseminou a sua obra por
publicações periódicas, cedendo, ocasionalmente, ao difícil trabalho de
tradutor. Conhece-se-lhe produção lírica desde meados da década de quarenta do
século passado e essa teia poética desaba sempre em nós como funda necessidade –
uma poesia assim só pode ser lembrada e lida e meditada. Foi fundamental o
trabalho de Eugénio Lisboa na organização destes Poemas publicados em 1999.
«Peguei no
cajado / E pus-me a caminho», dizia poeticamente Fonseca Amaral em 4 de março
de 1945. Buscava o poeta um «castelo fantástico / Onde o mais ínfimo habitante
/ Tinha uma lágrima a chorar / Por um desgosto, uma mágoa, / Por tudo… nunca
por nada.» E esse todo se, por um lado, segue por toada disfórica, por outro, o
mesmo encantamento triste alarga-se por águas eróticas, musicais e
subjetivamente alvoroçadas - a poesia de Fonseca Amaral é também
«boca-estandarte / para gritar», até porque, como o diz o poeta em outro
magnífico poema, a «luta é um cravo aberto»:
-
Ai, amigo,
como
é longa a estrada
semeada
de perigo
-
Não, companheiro! A luta é um cravo aberto
vertendo
sangue
longe…
mas sempre perto… [maio de 1949]
Impenitentemente lírico, assim se assume o poeta, é
esta poesia que irrompe ainda destas águas que contemplo fustigadas pela chuva.
Da antiga Viseu nascentes, estas palavras ressumam ainda na nossa cidade como
poucas outras. Vejo-as aqui no rio que contemplo:
Num
país de bruma e reposteiros,
vaga
um vago fantasma sorridente,
esparzindo
a água lustral da alegria
embrulhado
numa tímida réstia de sol
e dos
seus gestos solenes sobe a música
que
descubro em tuas mãos.
Assim
te quero humana e musical,
junto
de macias cores que em minhas mãos
retenho.
[30 de setembro de 1960]
João Fonseca Amaral faleceu em 12 de fevereiro de
1992, numa das freguesias de Lisboa. Mas a «barca segue avante a todo o pano»… [Correio Beirão, nº 4]
Sem comentários:
Enviar um comentário