2014-02-14

LIMIARES DA ESCRITA «A barca segue avante a todo o pano» - os «Poemas» de João Fonseca Amaral


LIMIARES DA ESCRITA
«A barca segue avante a todo o pano» - os Poemas de João Fonseca Amaral

Em passeio por dentro do inverno, aqui, pela nossa cidade de Viseu, junto às pontes da zona da Ribeira, a chuva mais do que oblíqua segredou-me que a desmemória é pecado dos homens. Eu já o sabia desde há muito e não o pude negar. Aqui à minha beira, junto a esta água, que é barca que «segue avante a todo o pano», nascera, pelas sete horas e quinze minutos do dia seis de março de 1928, um indivíduo de nome João da Costa Fonseca Amaral. Talvez em Viseu poucos saibam quem é e talvez isso pouco importe a quem continua a pensar que o que não se sabe é culpa de outros ou simples minudência sem préstimo.
Este é mais um caso terrível de incúria. Eu explico dizendo que João Fonseca Amaral é, como o diz Rui Knopfli, «um dos nomes mais altos e representativos da Poesia em Moçambique», tendo influenciado o próprio Knopfli e nomes tão fortes como os de Noémia de Sousa, Rui Nogar e José Craveirinha, para só falar em quatro.
Poeta escassamente transbordante e muito menos operoso, Fonseca Amaral foi um escritor que disseminou a sua obra por publicações periódicas, cedendo, ocasionalmente, ao difícil trabalho de tradutor. Conhece-se-lhe produção lírica desde meados da década de quarenta do século passado e essa teia poética desaba sempre em nós como funda necessidade – uma poesia assim só pode ser lembrada e lida e meditada. Foi fundamental o trabalho de Eugénio Lisboa na organização destes Poemas publicados em 1999.
«Peguei  no cajado / E pus-me a caminho», dizia poeticamente Fonseca Amaral em 4 de março de 1945. Buscava o poeta um «castelo fantástico / Onde o mais ínfimo habitante / Tinha uma lágrima a chorar / Por um desgosto, uma mágoa, / Por tudo… nunca por nada.» E esse todo se, por um lado, segue por toada disfórica, por outro, o mesmo encantamento triste alarga-se por águas eróticas, musicais e subjetivamente alvoroçadas - a poesia de Fonseca Amaral é também «boca-estandarte / para gritar», até porque, como o diz o poeta em outro magnífico poema, a «luta é um cravo aberto»:

- Ai, amigo,
como é longa a estrada
semeada de perigo
- Não, companheiro! A luta é um cravo aberto
vertendo sangue
longe… mas sempre perto… [maio de 1949]


Impenitentemente lírico, assim se assume o poeta, é esta poesia que irrompe ainda destas águas que contemplo fustigadas pela chuva. Da antiga Viseu nascentes, estas palavras ressumam ainda na nossa cidade como poucas outras. Vejo-as aqui no rio que contemplo:

Num país de bruma e reposteiros,
vaga um vago fantasma sorridente,
esparzindo a água lustral da alegria
embrulhado numa tímida réstia de sol
e dos seus gestos solenes sobe a música
que descubro em tuas mãos.
Assim te quero humana e musical,
junto de  macias cores que em minhas mãos retenho.
                                              [30 de setembro de 1960]


João Fonseca Amaral faleceu em 12 de fevereiro de 1992, numa das freguesias de Lisboa. Mas a «barca segue avante a todo o pano»… [Correio Beirão, nº 4]


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