2014-02-25

[quase vida]

[quase vida]

junto à janela a água anuncia o rio
escorrente a vida indo nesse fio…

2014-02-23

LIMIARES DA ESCRITA - O escritor António de Albuquerque, o demolidor da Monarquia, também foi poeta



LIMIARES DA ESCRITA
O escritor António de Albuquerque, o demolidor da Monarquia, também foi poeta


Sempre que passo junto ao velho solar do Arco, e quotidianamente o faço, é de António de Albuquerque que me lembro. Afinal, foi aí que nasceu o escritor que Teófilo Braga viu como o principal demolidor da monarquia portuguesa, ele que nascera nobre de solar. Autor de um romance polémico intitulado O Marquez da Bacalhôa (sic, em 1908), que Rocha Martins admite poder ter sido despiorado por Aquilino Ribeiro, Albuquerque atingiu, através do escândalo, o êxito desejado – o escrito, falsamente publicado em Bruxelas, insinuava uma vida de devassidão de D. Carlos e aludia até a uns amores sáficos da Rainha Dona Amélia, o que era motivo suficiente para que a sociedade lisboeta procurasse avidamente a publicação cujo título terá sido proposto por Gualdino Gomes.
D. António de Albuquerque do Alardo de Amaral Cardoso e Barba de Meneses e Lencastre ou D. António de Albuquerque do Amaral Cardoso de Vilhegas e Guzman Barba Alardo de Lencastre e Barros de Menezes Pina e Lemos, fidalguíssimo, nasceu em Viseu, na casa do Arco, em 11 de Março de 1866. Os primeiros tempos da sua vida passou-os Miquéque (assim era conhecido na cidade) naturalmente, esgotando-se-lhe a juventude em viagens. Absorveu, nessa fase, uma educação e uma instrução tipicamente parisienses. Tendo vivido em Paris, não espanta que tenha sido penetrado pela influência da literatura francesa e do republicanismo. Em Portugal, a sua maneira mundana e convivial era censurada e incompreendida. Sedento de brilho, que o seu valor parecia merecer, deixou-se instigar pela moda republicana e pelo estrépito do papel principal. Por trás manobrariam, sem que António de Albuquerque muito bem entendesse, aqueles que o queriam assim, eco de ideias não amadurecidas. Parecia gostar de ser adulado e o seu reconhecido talento era explorado por muitos, que o alcunhavam de Lêndea – a tez, o cabelo cor de limão e o apegamento às mulheres assim o haviam fomentado.
Poeta, romancista, tradutor, prefaciador e ensaísta histórico, António de Albuquerque iniciou a sua carreira literária com Arco-Íris (1899), coletânea de poesias que o escritor fez publicar na Imprensa de Libânio da Silva, em cujos prelos, alguns anos volvidos, seria impressa alguma da obra da poetisa Judith Teixeira, um outro nome também nascido em Viseu.
As primícias poéticas de António de Albuquerque não são anunciadoras de um grande nome, anunciam, no entanto, um espírito audaz que a história haveria de conhecer. Referindo-se liricamente ao arco-íris, nome que é título e início da antologia, o sujeito poético larga a seguinte apreensão:
Eu quero decompor a tua luz audaz,
Penetrar em ti como num templo,
Desmontar uma a uma as tuas cores,
Impregnar-me delas:
E em versos – aguarelas
Com pincéis de pétalas de flores,
Cantar tuas formas, teus cambiantes,
Filhos d’ estranha luz, d’ estrelas e diamantes.

Neste caminho nascente estava o anúncio e a raiz de uma coragem indisputável e nem sempre desinfluenciada. Na biografia do escritor inscrevem-se-lhe as suas culpas e as alheias, que o homem, esse, tudo sofreou.  [Correio Beirão, nº 5] 




2014-02-21

[caminho]

[caminho]

de regresso falarás quando voltar a chuva
e dentro do lago encontrarás esta chave
que há muito sepultei dentro da noite…

acende a alma perscruta todos os ventos
lado a lado as estrelas anunciam o tempo
deitando-se brilhantes nas tuas águas…

derruba os muros nada cedendo de ti
afunda-te no lago em que te contemplas
como borboleta irisada sobre narciso…

deita-te agora ouvindo o tropel do coração
não mistures as cores e os ácidos dos dias
incendeia-te desde os ossos ardendo…

peregrina então a chuva virá ao caminho.

2014-02-20

[reconstrução]

[reconstrução]

reconstruo a casa desde as mais íntimas fundações
bloco a bloco subo da escuridão ao breve raio de luz
comigo arrastando as pedras sobre os músculos tensos.

não cedo à tentação dos rios nem espero o rigor da chuva
avançando sempre pelos labirintos abertos pelos dedos
em busca das últimas telhas que nem de longe vislumbro.

no patamar da terra neste horizonte de bruma eis o musgo
as fundantes barras dando os primeiros tetos e paredes
e o deslumbramento dos ferrolhos nos quartos nascentes.

em caracol ascendo do centro da terra ao alto elemento
percorrendo célere espessos corredores de tempo lento
declinando nos cotovelos nas arestas da inquietude vindo.

na abóbada do mundo estendo as mãos a última telha nelas.

2014-02-19

[exílio]

[exílio]

um sobre outro os dias passam
passam os dias sobre os dias
como lacrimejantes os olhos
vertem  lágrimas sobre lágrimas.

assim este sol  peregrino vem
e cai aqui neste fim de mundo
cimeiro como as belas aves
que te contemplam de altos ramos.

outro dia passa na tua prisão de fim de mundo.

2014-02-17

[reconstrução]

[reconstrução]

reconstruo a casa desde as mais íntimas fundações
bloco a bloco subo da escuridão ao breve raio de luz
comigo arrastando as pedras sobre os músculos tensos.

não cedo à tentação dos rios nem espero o rigor da chuva
avançando sempre pelos labirintos abertos pelos dedos
em busca das últimas telhas que nem de longe vislumbro.

no patamar da terra neste horizonte de bruma eis o musgo
as fundantes barras dando os primeiros tetos e paredes
e o deslumbramento dos ferrolhos nos quartos nascentes.

em caracol ascendo do centro da terra ao alto elemento
percorrendo célere espessos corredores de tempo lento
declinando nos cotovelos nas arestas da inquietude vindo.

na abóbada do mundo estendo as mãos a última telha nelas.

2014-02-16

As mãos de João de Araújo Correia


Tudo vem das mãos, de umas mãos assim, que ainda não há muito aqui foram exalçadas por familiar do escritor.
Tudo vem das mãos, repito. De umas mãos que, em fevereiro de 1974, diziam:

«Em Canelas do Douro, ainda há museu vivo em outras relíquias. O essencial é devassá-las antes que dêem o grito. A linguagem que ali se falou, se ainda subsiste em boca desdentada, é apanhá-la, que vale oiro em pó.» [10-2-74] (João de Araújo Correia, «Pontos finais», Régua, Imprensa do Douro Editora,1975, p. 126).

Umas mãos assim tudo resgatam do tempo escultor...

2014-02-14

LIMIARES DA ESCRITA «A barca segue avante a todo o pano» - os «Poemas» de João Fonseca Amaral


LIMIARES DA ESCRITA
«A barca segue avante a todo o pano» - os Poemas de João Fonseca Amaral

Em passeio por dentro do inverno, aqui, pela nossa cidade de Viseu, junto às pontes da zona da Ribeira, a chuva mais do que oblíqua segredou-me que a desmemória é pecado dos homens. Eu já o sabia desde há muito e não o pude negar. Aqui à minha beira, junto a esta água, que é barca que «segue avante a todo o pano», nascera, pelas sete horas e quinze minutos do dia seis de março de 1928, um indivíduo de nome João da Costa Fonseca Amaral. Talvez em Viseu poucos saibam quem é e talvez isso pouco importe a quem continua a pensar que o que não se sabe é culpa de outros ou simples minudência sem préstimo.
Este é mais um caso terrível de incúria. Eu explico dizendo que João Fonseca Amaral é, como o diz Rui Knopfli, «um dos nomes mais altos e representativos da Poesia em Moçambique», tendo influenciado o próprio Knopfli e nomes tão fortes como os de Noémia de Sousa, Rui Nogar e José Craveirinha, para só falar em quatro.
Poeta escassamente transbordante e muito menos operoso, Fonseca Amaral foi um escritor que disseminou a sua obra por publicações periódicas, cedendo, ocasionalmente, ao difícil trabalho de tradutor. Conhece-se-lhe produção lírica desde meados da década de quarenta do século passado e essa teia poética desaba sempre em nós como funda necessidade – uma poesia assim só pode ser lembrada e lida e meditada. Foi fundamental o trabalho de Eugénio Lisboa na organização destes Poemas publicados em 1999.
«Peguei  no cajado / E pus-me a caminho», dizia poeticamente Fonseca Amaral em 4 de março de 1945. Buscava o poeta um «castelo fantástico / Onde o mais ínfimo habitante / Tinha uma lágrima a chorar / Por um desgosto, uma mágoa, / Por tudo… nunca por nada.» E esse todo se, por um lado, segue por toada disfórica, por outro, o mesmo encantamento triste alarga-se por águas eróticas, musicais e subjetivamente alvoroçadas - a poesia de Fonseca Amaral é também «boca-estandarte / para gritar», até porque, como o diz o poeta em outro magnífico poema, a «luta é um cravo aberto»:

- Ai, amigo,
como é longa a estrada
semeada de perigo
- Não, companheiro! A luta é um cravo aberto
vertendo sangue
longe… mas sempre perto… [maio de 1949]


Impenitentemente lírico, assim se assume o poeta, é esta poesia que irrompe ainda destas águas que contemplo fustigadas pela chuva. Da antiga Viseu nascentes, estas palavras ressumam ainda na nossa cidade como poucas outras. Vejo-as aqui no rio que contemplo:

Num país de bruma e reposteiros,
vaga um vago fantasma sorridente,
esparzindo a água lustral da alegria
embrulhado numa tímida réstia de sol
e dos seus gestos solenes sobe a música
que descubro em tuas mãos.
Assim te quero humana e musical,
junto de  macias cores que em minhas mãos retenho.
                                              [30 de setembro de 1960]


João Fonseca Amaral faleceu em 12 de fevereiro de 1992, numa das freguesias de Lisboa. Mas a «barca segue avante a todo o pano»… [Correio Beirão, nº 4]


2014-02-13

[capivara]

[capivara]

no vento que sopra vem uma capivara de ouro breve
abre-lhe a porta e dessedenta-a com a água do poço
esse punhado de amor é o alvoroço da nova estação
ressoando na casa o brilho da primavera instalando-se.

não recuses a paixão que, repara, lentamente arde
regressa a ti a esse caminho que a andorinha ousa
tecer-te no emaranhado dos cabelos  e das ondas.

que flor é esta assim ténue de seda feita crescendo
sensatamente nesta manhã desde a fronte da capivara?

2014-02-06

Pensamento assistido com João de Araújo Correia


Apanágio das vozes fortes é a capacidade de permanência, de pregnância dirigente. Assim acontece com as palavras de João de Araújo Correia:

«O intolerante, que julga conivente com adversários o amigo de ontem, a quem incensava, cobre-o hoje de lama. Não compreende que esta incoerência o desonra. Elogiar hoje e colher amanhã as velas do elogio, numa leitura eivada de partidarismo, é mudar de cara de um dia para o outro. Mas, se é assim que se vive ou vegeta no mundo de hoje...» (João de Araújo Correia, «Pontos finais», Régua, Imprensa do Douro Editora, 1975, p. 94).

E é assim que se vegeta, e vegeta muito...

2014-02-05

[blanchot]

[blanchot]

no café de sempre o filósofo escritor perguntava
que fazer para poder desaparecer sem nada dizer
e no eco do café fortíssimo nem o fumo o ouvia
nem do bulício dentro uma resposta se consentia.

só umas barbas de urizen vindas de funda treva
da mesa saídas ditaram um antigo exílio de poeta.

aí regressado não mais o vi no estranho silêncio.

2014-02-04

[abismo-me]

[abismo-me]

dentro de todas as noites meros ritos estremecem
são mares de silêncio esticados no chão em usura
onde gelados os ossos crepitam no sangue escuro.

do céu ao cérebro um indócil relâmpago  romperá
cavalgando os ares e as purpurinas vísceras de cera
como amargo epíteto atirado para fundo abismo.

2014-02-03

[reflexão]

[reflexão]

silencioso chegarás aos dias que se estendem sobre a mesa
porque inevitáveis os corpos serão meras ruas torcicoladas
e noites declinadas nos murmúrios baratos e nas usuras…

nos vidros cansados os olhos clamarão pela agudeza da luz
e a língua percorrerá os trabalhos & os dias dentro da casa
assim aberta à limpidez das manhãs e às boas fórmulas…

nus os braços esticarão a corda solitária dentro da cal.