2006-08-10

Viseu e o Museu Grão Vasco no "Jurnal Portughez (1941-1945)" de Mircea Eliade


A Editorial Kairós de Barcelona publicou, em Outubro de 2001, com tradução a partir do romeno de Joaquín Garrigós, o interessantíssimo Diario Portugués (1941-1945) de Mircea Eliade. Tal acontecimento não terá tido a repercussão esperada no nosso país cultural, não me parecendo mesmo haver alguma tradução programada em língua portuguesa, o que não deixa de ser estranho. Afinal, trata-se de um diário extraordinário sobre um periodo crucial da vida do sábio romeno passado em missão diplomática no nosso país. Afinal, o autor é indubitavelmente o historiador das religiões mais conhecido do século XX, com multímoda actividade cultural (de historiador, ficcionista, biógrafo...), sem esquecer a de professor universitário reputado em Bucareste, na Sorbonne de Paris e em Chicago.

Não sendo um livro muito agradável para o português de fácil ressentimento, as críticas à pobreza intelectual de Lisboa e à nossa congénita tibieza não constituem motivo para nos afastarmos deste diário que é um espaço de sedução e de conhecimento pátrio. O olhar percuciente de Eliade, de nós afastado pelo filtro da distância, ultrapassada que seja essa aparente aversão, permite uma visão desapaixonada de nós e uma biografia melancólica quase desconhecida de um autor mais do que conhecido que, não obstante algum desencanto, desvela um enorme fascínio por Camões ou por Eça e atracções rendidas por homens de cultura como Alfredo Pimenta, por exemplo.

Lido de um sopro em Novembro de 2001, este diário, que o amigo Mário Casa Nova me trouxe de Madrid com o pretexto de uma provas académicas por mim superadas, é um livro necessário e urgente. O Diário português (1941-1945) contém ainda quatro anexos ("Impresiones de Portugal", "Notas sobre Ia estancia del ex rey Carlos II en Lisboa", "Prólogo al libro Salazar y la revolución en Portugal " e "Diario de Córdoba (Octubre, 1944)"), destacando eu, para o nosso particular, o primeiro deles, pela detenção aí prestada à cidade de Viseu. Trata-se, a meu ver, de um dos mais belos textos sobre a cidade de Viseu e uma das mais incisivas reflexões sobre a arte viseense, sendo também, acrescente-se, prova suficiente do vigor estilemático de um grande escritor que, sem a amargura acima mencionada, cede poeticamente ao fascínio único que arde no perfeito encaixe da nossa cidade, terra, afinal, caldeada desde longe no calor contínuo de criadores e criações.

Mircea Eliade, como o diz um Joel Schimdt, é, ao lado de Georges Dumézil, um dos pensadores mais originais do século XX. Importa, também por isso, que fitemos o arco de sal e deixemos que o mar entre pela janela. Dizem-no as palavras aladas de Al Berto. Di-lo a voz do nosso granito.

Em 10 de Dezembro de 1942, há quase sessenta anos, o sábio romeno inscreveu no seu diário a informação de ter "copiado varias páginas (sobre Vizeu, especialmente lãs meditaciones en el Museo Grão Vasco)" das suas "anotaciones portuguesas" para publicação na Tribuna de Cluj. E, depois, refere ter estado na nossa cidade no Outono de 1941, bem se lembrando de que a fealdade de personagens de Vasco Fernandes se devia ao realismo do pintor que povoava o seu mundo artístico de homens tisnados lutando contra o mar, contra a doença e contra o cansaço, até porque, e nas suas palavras, o Renascimento "lo hacían los hombres del Mediterráneo que tenían el tiempo y la sabiduría para contemplar los cánones clásicos", o que era, ainda na sua esteira, bem visível nas culturas marítimas de países como Portugal e Holanda, que ao mar deviam o realismo plástico.

Mas será no anexo "lmpresiones de Portugal", datado de 1941, que encontraremos cinco musculadas e impressivas páginas sobre a passagem de Eliade pela nossa cidade. Apaixonado desde logo pelos maravilhosos azulejos de Alexandre Magno ou Vespasiano, destaca o escritor um halo mágico que recobre a cidade "prisionera entre boscosas colinas". Fala o romeno do recente campo de touros e das casas de telhas castanhas ladrilhadas a rosa e das habitações caiadas de branco com janelas de cor de granito húmido perdidas "no reino de los matices de la arcilla".

E depois é toda uma emoção poética que se levanta de cada descrição fazendo de cada sítio e lugar um espaço sedutor. Rendo-me totalmente à magnífica frase que transcrevo e que é, no fundo, o início do roteiro sentimental de Eliade pelo nosso centro histórico: "Qué bonita es la calle que hay a los pies de la catedral, que va cayendo de muro en muro apoyándose a trechos en los cimientos e en làs esquinas de làs casas, que de repente da un recodo y se pierde en la barahúnda de tejados, a lo lejos, en el corazón de la ciudad...".

Seguem-se outras rendições aos encantos de Viseu: são os nós manuelinos nas abóbadas da catedral, que Mircea Eliade via crescer em afecto na sua ascética nudez que, contudo, "da una sensación de calor e intimidad"; é o coro que permite o contacto com urna diferente atmosfera "como si estas columnas de granito se les hubiese insuflado de manera imperceptible una extraña música"; são os extraordinários assentos do coro "com figuras y cuerpos de una rara belleza", irrepetidos e inquietantes, que levam o romeno a questionar-se sobre o milagre da chegada ao coro da catedral de Viseu daquelas personagens "de leyenda, de mitos y bestiários, del teatro popular y las leyendas monásticas"; é o extraordinário Museu Grão Vasco, "uno de los más bonitos de Portugal, el más bonito sin duda si en Janelas Verdes, de Lisboa, no estuviese el tríptico de Nuno Gonçalves", com os quadros de Vasco Fernandes, uma maravilhosa cruz bizantina ou a colecção moderna de aguarelas e guaches.

É a Grão Vasco e ao seu museu que Mircea Eliade, no entanto, dedica o melhor do seu fascínio, falando do realismo misterioso do Pintor e da sua obsessão pela "fealdade", que é, no seu dizer, uma dimensão espiritual predestinada, bem visível, por exemplo, nessa obra-prima da pintura portuguesa que é o Calvário, trabalho de indenegável atrevimento, concepção e mestria, com urna amálgama de rostos participantes de urna mesma "fealdad amarga, siniestra o patética repleta de sufrimentos o extenuada por fecundos esfuerzos." Próximas e distantes das figuras de Bosch e de Breuguet, delas se afastando pela rigor vigilante e oficinal, as figuras desencantadas do artista manifestam, pela opacidade e pela espessura, um gritante e alarmado poder .

Não se fica por estas ideias o texto do intelectual romeno. Mas nada mais digo para que o desejo se entranhe. Este diário e particularmente as partes dedicadas à nossa bela cidade esperam urna tradução em língua portuguesa que eu penso ainda não existir Não é, porém, a língua de Cervantes que nos afasta deste texto. Haja vontade e o mais se fará. Até mesmo a tradução dos passos viseenses do reputado homem de cultura.

Da dificil arte da melancolia de Mircea Eliade emerge uma função metafisica que é poesia e é amor. Sabemos agora que essa deflagração se encosta às casas encaixadas em volta da catedral e que um mesmo sopro desse Outono de 1941 por lá habita. Mircea Eliade em Viseu. Afinal, como no poema de Carlos Queiroz, é fantástico olhar de novo o espaço que envolve a Sé e poder apreciar ainda o "lrreversível instante / O estar aqui na paisagem / Dentro dela e já distante"...

4 comentários:

isabel mendes ferreira disse...

distante....mas sempre presente.





beijo.




!!!


bom dia Martim.

Anónimo disse...

Não sabia e agradeço a memória... abraço...

Mário Casa Nova Martins disse...

Como o tempo passa.
Já vão quase 5 anos!
Um abraço, extensivo ao nosso querido e ilustre Konde.

martim de gouveia e sousa disse...

como o tempo passa! mas estamos, resistindo. abraço, m. da voz.