A interacção entre a literatura e a religião na sociedade contemporânea portuguesa é indesmentível. Um signo se abre, no entanto, desde logo – o da necessária superação do velho olhar dissociativo entre domínios que, em propriedade, se entrecruzam e se afectam, manifestando nos objectos nomeados um modo constitutivo de repulsa ou de adesão. Não há, assim, quanto a este particular, criação literária neutra e semanticamente intransitiva.
Em perquirição por mar vasto, cedendo à tentação necessária de escolhas e exclusões, que outra via não havia , o estudo do Professor Doutor José Carlos Seabra Pereira é, a um tempo, lacunar e exemplarmente completo. Quaisquer tentames ensaísticos insertos na temática proposta e levados a cabo atè ao momento, penso terem ficado pela abordagem miúda, particular, generalizante ou amplificadora. Lembro, a propósito, pelo valor intrínseco e também exemplificativo das contingências apontadas, as obras de Zacarias de Oliveira (O Padre no romance português, Lisboa, União Gráfica, 1960) e de Álvaro Ribeiro (Escritores Doutrinados, Lisboa, Sociedade de Expansão Cultural, 1965) – nesta, refiro-me ao primeiro capítulo.
Abrindo a segunda metade do século xx na insolvência produtiva do inquietismo do Segundo Modernismo, é também com Moreira das Neves que melhor se tipifica o intimismo espiritual de experiência cristã. De facto, o escritor religioso que é Padre Moreira das Neves, poeta mais do que estimável desde a década de 30, aparece aureolado nessa dobragem com uma força tutelar. O Senhor D. Miguel Trindade Salgueiro vê nele, por 1953, um ser “iluminado de imagens poéticas”, constituindo-se cada livro seu como “asas de graça que desce de Deus e para Deus eleva” (Prefácio a O Anjo das Três Loucuras: Sílvia Cardoso do Padre Moreira das Neves).
Os “farrapos molhados de sangue” atirados ao papel pelo Padre Moreira das Neves apontam a força da fé e da experiência cristã como caminho de fulguração literária. Referindo-se a Dona Sílvia Cardoso, surte o exemplo do religioso: “Com sete espadas no coração / E sete cruzes pesando aos ombros, / Passou no mundo como um clarão / De luar de neve por entre escombros.” (op. cit., p. 145)
Tal irisação plasma-se indiciosamente, seis anos passados, na Antologia da Novíssima Poesia Portuguesa (1959) de Maria Alberta Menéres e E. M. de Melo e Castro, pela abertura florilégica com poemas de Sebastião da Gama, adentro do canonismo cristão e católico (“Oração de todas as horas” e “Cristo”), logo avançando para o afim “Apontamento” de Vasco Miranda, pseudónimo do Padre Arnaldo Cardoso Ferreira, poeta e ensaísta que bem testemunha a experiência cristã na literatura portuguesa, seja pela faceta poética (reunida integralmente em Dizer, Amar (1946-1971), 1972), seja ainda pela colaboração diversa em jornais e revistas (Mundo Literário, Quatro Ventos, Árvore, Cadernos do Meio-Dia, Horizonte, Gazeta Literária, etc.).
Não denegando que só uma linguagem mitogénica permite os grandes conseguimentos poéticos, sabendo bem que, no sentido de Álvaro Ribeiro, as autênticas poesias “algo nos dizem da vida do espírito” (op. cit. , p. 19), Seabra Pereira encontra, no quadro das correntes literárias do primeiro quartel do século XX, a linha sobrevivente do espiritualismo religioso, que invade, sem transbordamento, a segunda metade secular. São exemplo da problemática da fé importantes composições de Mário Beirão, nomeadamente as contidas em Mar de Cristo (Lisboa, Portugália, 1957), servindo de suficiente exemplo, pelo inquietismo, a quadra do itálico e inicial soneto “Sobrevivente”: Sobrevivente sou; sobrevivente, / Por vontade de Deus, para cantar / Dum Povo, que se fez à noite e ao Mar, / A sua cruz e a sua glória ingente. Lembro ainda, no rasto do que é também obsessão criadora em Mário Beirão, os dois últimos versos do citado poema, que permitem aferir as confinações rituais e as interpelações produtivas do vate sobrevivente, num explicit que é também “profissão de fé messiânica” (Seabra Pereira): “Porque ajoelhas, humilde e transportado? / Porque o Espírito Santo é ao teu lado!”.
Mas não só. Para esta epistemologia da inquietação religiosa de gosto neo-romântico, traz ainda o ensaísta os nomes de Afonso Lopes Vieira, António Corrêa de Oliveira, António Sardinha, Manuel Ribeiro, Teixeira de Pascoaes e Anrique Paço d’ Arcos. Aduz também um descontínuo Américo Durão, que vai encontrando a sua legitimação literária na aproximação ao religiosismo, que, em propriedade, nunca abandonara, tanto mais que o tradicionalismo e a matização do simples se tinham vindo a impor cada vez mais desassombradamente, como o comprova a edição definitiva do Poema de Humildade (Lisboa, Sociedade de Expansão Cultural, 1964) e aquele desejo derradeiro de se chegar “cantando às mãos de Deus!”. Tal aproximação a uma vivência de espiritualismo católico, entronca – e isso foi codiciosamente entrevisto por Seabra Pereira – com a poesia de Fernanda de Castro, que, vinda de há décadas, persistentemente vaza a segunda parte do século apontando o encontro com Deus. “Encontrei Deus”, dirá a Poetisa, na debutante década de 50, pelo fim de Trinta e nove poemas (1952).
A casa mítica de Deus e da inquietação cristã é motivo de encontro e reencontro com um conjunto de escritores advenientes do Segundo Modernismo. Destacam-se José Régio e Miguel Torga. O primeiro, pese embora a admonição de Branquinho da Fonseca (“ergue a voz aos céus dum Deus que é ainda ele próprio ou que não sabe se existe ou o que é”), transporta consigo, desde as primeiras criações, “uma experiência religiosa nunca rejeitada” (Eugénio Lisboa), que irrompe pelo meio século com a força da inquietação gerada anteriormente, tudo fazendo crer tratar-se de um ser “visceralmente religioso” (Joaõ Marques). Aliás, na senda de Antero Pacheco Moreira (1926), César de Frias (1932), Augusto Pires de Lima (1942) ou Guilherme de Faria (1947), Régio (com Alberto de Serpa) antologiará um conjunto de textos tocados de fé, sob o anteriano título Na Mão de Deus (1958), o que é razão não despicienda para a afirmação de uma tendência. Álvaro Ribeiro (op. cit.), depois de afirmar que a preocupação teológica de Régio “está significante no título dos seus livros”, acrescenta que brilha na sua poesia “a verdade de que Deus é transcendente”.
Torga, por seu lado, “lavra a terra” num mundo seu incómodo e que, ainda assim, não foge ao “discurso teológico” (Fernão de Magalhães Gonçalves”), pese embora a súmula que Seabra Pereira encontra em Zacarias de Oliveira e que este respiga no poema do Diário VII “Não sei amar, ou amo o que me foge”.
Frisa ainda o ensaísta a centralidade de Vitorino Nemésio nesta adjunção da religiosidade literária, salientando no escritor açoriano a sua doutrinação integral que lhe permite a aproximação ao divino pela reflexão filosófica, pela revelação e pelo misticismo. Mas outras figuras, de “forte manifestação católica de crença peremptória e de devoção afervorada” (Seabra Pereira), aparecem convocadas: António Manuel Couto Viana ou Adelino Feijó Teixeira, e mais o padre salesiano Cassiano Nogueira Guimarães, o padre Horácio Nogueira, Miguel Trigueiros, Maria de Santa Isabel, Fernando de Paços, Joaõ Maia, S. J. e Nuno de Sampayo – este último, aliás, publicado como outros atrás pelas Edições “Critério” de Braga, manifesta uma elevação religiosa que interessa ver recordada: “Pousas na minha orla como um sopro, / É suave como a amada que não tenho, / Pleno como a pátria que não conheço, / E eu cresço como um choupo na Tua mão / E encho de flores brancas o Teu regaço.” (A Orla e o Tempo, 1956).
Outras e não menores nomes, por obra das qualidades ingénitas, são trazidos para o debate do augusto mistério da fé na literatura portuguesa : são casos exemplares, pela indenegável força canónica, os tavoleiros Sebastião da Gama e David Mourão-Ferreira. Da Távola Redonda ao Graal vai um lastro de catolicização e de alargamento do fluxo da fé literária, despontando vocações literárias ou afinando-se nexos criadores (A. Quadros, Goulart Nogueira, António Salvado, Herberto Helder, José Blanc de Portugal, Ruy Cinatti, etc.). Veja-se, por exemplo, como a reavivação do “caos do poeta” que Herberto Helder é passa, não obstante o tom problematizante, pela “empatia profunda e uma comunhão de sentidos entre as ideias que norteiam o livro bíblico” (J. Amadeu C. da Silva) e Os Selos.
Leitor íntegro, escutador atento e sensível, Seabra Pereira avança pelas décadas poéticas com a mestria de quem conhece os lindes de uma ética cristã e não se exime à formulação interpretativa. Tirando consequências, a hermenêutica seabrina corta década a década o tecido poético, gerando em cada encaixe novas interpretações e novos laços de fé. Não havendo leitura sem pré-conceito (Gadamer), e tal nota seria aqui dispensável, cito, sem particular norte, alguns passos luminosos a que não aludi na diacronia que interrompo: os dedicados a António Osório, a Pedro Tamen e a Ruy Belo; aos romancistas Francisco Costa, Ruben A. ou Vergílio Ferreira (como Cinatty, alvo de tese de doutoramento em Teologia); a Bernardo Santareno e a Agustina Bessa-Luís; a Rodrigo Emílio e a José Valle de Figueiredo; Mário Cláudio e José Saramago, etc.
Podendo notar-se algum desequilíbrio no espaço dedicado aos diferentes modos literários, diga-se que tal lacuna, nomeadamente no modo dramático, é prova de uma menor permeabilidade de certos géneros e subgéneros literários à problemática religiosa e de um certo desinvestimento estético. Quanto a omissões, diga-se que o alargamento da rede operativa, que tentacularmente avança e retoma a produção literária de cinquenta anos, não ganharia maior eficácia e mais elevado grau explicativo. Ainda assim, e assinalado o seu carácter despiciendo, afirmo que a completude carece de estudo mais sistemático e continuado dos agentes sociais de cultura (dentro e fora da fé), que poderão, por sua vez, encontrar ânimo para esta acariação, na avaliação de Frias Martins à década poética de 1974-1984, que evidencia nela o peso do imaginário e do léxico judaico-cristaõ. Lembre-se, a propósito, o caso de António Franco Alexandre, que, afirmando a fecundidade do texto bíblico (em Ave-Azul, por exemplo, e na própria obra), inscreve na sua modulação poética uma particular tensão produtiva, que assenta não só na ambiência vizinha da de Santa Teresa d’Ávila (cf. Moradas, 1987), como também na carnalidade teológica de “le tiers exclu, fantasia política” de Quatro Caprichos (1999). Avance, pois, quem quiser.
A literatura contemporânea ressuma ainda uma forte influência da Igreja. Parece certo, no entanto, que tal presença se foi esbatendo ou transmutando por outras vias. Dois casos assinalo que o parecem denegar, tanto mais que, tratando-se de homens da Igreja, são também importantes casos poéticos da década de 90: refiro-me a José Tolentino Mendonça, Reitor do Pontifício Colégio Português, e ao malogrado beneditino Daniel Faria. Este último, aliás, deixa-nos aquele convite à acção - a cristãos católicos e a desapegados de qualquer fé. “A porta mora à espera”, diz o poeta em Explicação das Árvores e de outros Animais (1998). É desta habilidade para sulcar a literatura que se afirma a transversalidade e o dinamismo de passos continuados e dispersos que cada vez mais urge coligir. A sábia e completa perspectiva de Seabra Pereira sobre a problemática da fé e a experiência cristã na literatura portuguesa é um importante avanço e um convite a novas investidas. Tire dela o leitor todas as vantagens e pense ainda acrescentar, com a sua vigilância, esta qualidade provisória.
Em perquirição por mar vasto, cedendo à tentação necessária de escolhas e exclusões, que outra via não havia , o estudo do Professor Doutor José Carlos Seabra Pereira é, a um tempo, lacunar e exemplarmente completo. Quaisquer tentames ensaísticos insertos na temática proposta e levados a cabo atè ao momento, penso terem ficado pela abordagem miúda, particular, generalizante ou amplificadora. Lembro, a propósito, pelo valor intrínseco e também exemplificativo das contingências apontadas, as obras de Zacarias de Oliveira (O Padre no romance português, Lisboa, União Gráfica, 1960) e de Álvaro Ribeiro (Escritores Doutrinados, Lisboa, Sociedade de Expansão Cultural, 1965) – nesta, refiro-me ao primeiro capítulo.
Abrindo a segunda metade do século xx na insolvência produtiva do inquietismo do Segundo Modernismo, é também com Moreira das Neves que melhor se tipifica o intimismo espiritual de experiência cristã. De facto, o escritor religioso que é Padre Moreira das Neves, poeta mais do que estimável desde a década de 30, aparece aureolado nessa dobragem com uma força tutelar. O Senhor D. Miguel Trindade Salgueiro vê nele, por 1953, um ser “iluminado de imagens poéticas”, constituindo-se cada livro seu como “asas de graça que desce de Deus e para Deus eleva” (Prefácio a O Anjo das Três Loucuras: Sílvia Cardoso do Padre Moreira das Neves).
Os “farrapos molhados de sangue” atirados ao papel pelo Padre Moreira das Neves apontam a força da fé e da experiência cristã como caminho de fulguração literária. Referindo-se a Dona Sílvia Cardoso, surte o exemplo do religioso: “Com sete espadas no coração / E sete cruzes pesando aos ombros, / Passou no mundo como um clarão / De luar de neve por entre escombros.” (op. cit., p. 145)
Tal irisação plasma-se indiciosamente, seis anos passados, na Antologia da Novíssima Poesia Portuguesa (1959) de Maria Alberta Menéres e E. M. de Melo e Castro, pela abertura florilégica com poemas de Sebastião da Gama, adentro do canonismo cristão e católico (“Oração de todas as horas” e “Cristo”), logo avançando para o afim “Apontamento” de Vasco Miranda, pseudónimo do Padre Arnaldo Cardoso Ferreira, poeta e ensaísta que bem testemunha a experiência cristã na literatura portuguesa, seja pela faceta poética (reunida integralmente em Dizer, Amar (1946-1971), 1972), seja ainda pela colaboração diversa em jornais e revistas (Mundo Literário, Quatro Ventos, Árvore, Cadernos do Meio-Dia, Horizonte, Gazeta Literária, etc.).
Não denegando que só uma linguagem mitogénica permite os grandes conseguimentos poéticos, sabendo bem que, no sentido de Álvaro Ribeiro, as autênticas poesias “algo nos dizem da vida do espírito” (op. cit. , p. 19), Seabra Pereira encontra, no quadro das correntes literárias do primeiro quartel do século XX, a linha sobrevivente do espiritualismo religioso, que invade, sem transbordamento, a segunda metade secular. São exemplo da problemática da fé importantes composições de Mário Beirão, nomeadamente as contidas em Mar de Cristo (Lisboa, Portugália, 1957), servindo de suficiente exemplo, pelo inquietismo, a quadra do itálico e inicial soneto “Sobrevivente”: Sobrevivente sou; sobrevivente, / Por vontade de Deus, para cantar / Dum Povo, que se fez à noite e ao Mar, / A sua cruz e a sua glória ingente. Lembro ainda, no rasto do que é também obsessão criadora em Mário Beirão, os dois últimos versos do citado poema, que permitem aferir as confinações rituais e as interpelações produtivas do vate sobrevivente, num explicit que é também “profissão de fé messiânica” (Seabra Pereira): “Porque ajoelhas, humilde e transportado? / Porque o Espírito Santo é ao teu lado!”.
Mas não só. Para esta epistemologia da inquietação religiosa de gosto neo-romântico, traz ainda o ensaísta os nomes de Afonso Lopes Vieira, António Corrêa de Oliveira, António Sardinha, Manuel Ribeiro, Teixeira de Pascoaes e Anrique Paço d’ Arcos. Aduz também um descontínuo Américo Durão, que vai encontrando a sua legitimação literária na aproximação ao religiosismo, que, em propriedade, nunca abandonara, tanto mais que o tradicionalismo e a matização do simples se tinham vindo a impor cada vez mais desassombradamente, como o comprova a edição definitiva do Poema de Humildade (Lisboa, Sociedade de Expansão Cultural, 1964) e aquele desejo derradeiro de se chegar “cantando às mãos de Deus!”. Tal aproximação a uma vivência de espiritualismo católico, entronca – e isso foi codiciosamente entrevisto por Seabra Pereira – com a poesia de Fernanda de Castro, que, vinda de há décadas, persistentemente vaza a segunda parte do século apontando o encontro com Deus. “Encontrei Deus”, dirá a Poetisa, na debutante década de 50, pelo fim de Trinta e nove poemas (1952).
A casa mítica de Deus e da inquietação cristã é motivo de encontro e reencontro com um conjunto de escritores advenientes do Segundo Modernismo. Destacam-se José Régio e Miguel Torga. O primeiro, pese embora a admonição de Branquinho da Fonseca (“ergue a voz aos céus dum Deus que é ainda ele próprio ou que não sabe se existe ou o que é”), transporta consigo, desde as primeiras criações, “uma experiência religiosa nunca rejeitada” (Eugénio Lisboa), que irrompe pelo meio século com a força da inquietação gerada anteriormente, tudo fazendo crer tratar-se de um ser “visceralmente religioso” (Joaõ Marques). Aliás, na senda de Antero Pacheco Moreira (1926), César de Frias (1932), Augusto Pires de Lima (1942) ou Guilherme de Faria (1947), Régio (com Alberto de Serpa) antologiará um conjunto de textos tocados de fé, sob o anteriano título Na Mão de Deus (1958), o que é razão não despicienda para a afirmação de uma tendência. Álvaro Ribeiro (op. cit.), depois de afirmar que a preocupação teológica de Régio “está significante no título dos seus livros”, acrescenta que brilha na sua poesia “a verdade de que Deus é transcendente”.
Torga, por seu lado, “lavra a terra” num mundo seu incómodo e que, ainda assim, não foge ao “discurso teológico” (Fernão de Magalhães Gonçalves”), pese embora a súmula que Seabra Pereira encontra em Zacarias de Oliveira e que este respiga no poema do Diário VII “Não sei amar, ou amo o que me foge”.
Frisa ainda o ensaísta a centralidade de Vitorino Nemésio nesta adjunção da religiosidade literária, salientando no escritor açoriano a sua doutrinação integral que lhe permite a aproximação ao divino pela reflexão filosófica, pela revelação e pelo misticismo. Mas outras figuras, de “forte manifestação católica de crença peremptória e de devoção afervorada” (Seabra Pereira), aparecem convocadas: António Manuel Couto Viana ou Adelino Feijó Teixeira, e mais o padre salesiano Cassiano Nogueira Guimarães, o padre Horácio Nogueira, Miguel Trigueiros, Maria de Santa Isabel, Fernando de Paços, Joaõ Maia, S. J. e Nuno de Sampayo – este último, aliás, publicado como outros atrás pelas Edições “Critério” de Braga, manifesta uma elevação religiosa que interessa ver recordada: “Pousas na minha orla como um sopro, / É suave como a amada que não tenho, / Pleno como a pátria que não conheço, / E eu cresço como um choupo na Tua mão / E encho de flores brancas o Teu regaço.” (A Orla e o Tempo, 1956).
Outras e não menores nomes, por obra das qualidades ingénitas, são trazidos para o debate do augusto mistério da fé na literatura portuguesa : são casos exemplares, pela indenegável força canónica, os tavoleiros Sebastião da Gama e David Mourão-Ferreira. Da Távola Redonda ao Graal vai um lastro de catolicização e de alargamento do fluxo da fé literária, despontando vocações literárias ou afinando-se nexos criadores (A. Quadros, Goulart Nogueira, António Salvado, Herberto Helder, José Blanc de Portugal, Ruy Cinatti, etc.). Veja-se, por exemplo, como a reavivação do “caos do poeta” que Herberto Helder é passa, não obstante o tom problematizante, pela “empatia profunda e uma comunhão de sentidos entre as ideias que norteiam o livro bíblico” (J. Amadeu C. da Silva) e Os Selos.
Leitor íntegro, escutador atento e sensível, Seabra Pereira avança pelas décadas poéticas com a mestria de quem conhece os lindes de uma ética cristã e não se exime à formulação interpretativa. Tirando consequências, a hermenêutica seabrina corta década a década o tecido poético, gerando em cada encaixe novas interpretações e novos laços de fé. Não havendo leitura sem pré-conceito (Gadamer), e tal nota seria aqui dispensável, cito, sem particular norte, alguns passos luminosos a que não aludi na diacronia que interrompo: os dedicados a António Osório, a Pedro Tamen e a Ruy Belo; aos romancistas Francisco Costa, Ruben A. ou Vergílio Ferreira (como Cinatty, alvo de tese de doutoramento em Teologia); a Bernardo Santareno e a Agustina Bessa-Luís; a Rodrigo Emílio e a José Valle de Figueiredo; Mário Cláudio e José Saramago, etc.
Podendo notar-se algum desequilíbrio no espaço dedicado aos diferentes modos literários, diga-se que tal lacuna, nomeadamente no modo dramático, é prova de uma menor permeabilidade de certos géneros e subgéneros literários à problemática religiosa e de um certo desinvestimento estético. Quanto a omissões, diga-se que o alargamento da rede operativa, que tentacularmente avança e retoma a produção literária de cinquenta anos, não ganharia maior eficácia e mais elevado grau explicativo. Ainda assim, e assinalado o seu carácter despiciendo, afirmo que a completude carece de estudo mais sistemático e continuado dos agentes sociais de cultura (dentro e fora da fé), que poderão, por sua vez, encontrar ânimo para esta acariação, na avaliação de Frias Martins à década poética de 1974-1984, que evidencia nela o peso do imaginário e do léxico judaico-cristaõ. Lembre-se, a propósito, o caso de António Franco Alexandre, que, afirmando a fecundidade do texto bíblico (em Ave-Azul, por exemplo, e na própria obra), inscreve na sua modulação poética uma particular tensão produtiva, que assenta não só na ambiência vizinha da de Santa Teresa d’Ávila (cf. Moradas, 1987), como também na carnalidade teológica de “le tiers exclu, fantasia política” de Quatro Caprichos (1999). Avance, pois, quem quiser.
A literatura contemporânea ressuma ainda uma forte influência da Igreja. Parece certo, no entanto, que tal presença se foi esbatendo ou transmutando por outras vias. Dois casos assinalo que o parecem denegar, tanto mais que, tratando-se de homens da Igreja, são também importantes casos poéticos da década de 90: refiro-me a José Tolentino Mendonça, Reitor do Pontifício Colégio Português, e ao malogrado beneditino Daniel Faria. Este último, aliás, deixa-nos aquele convite à acção - a cristãos católicos e a desapegados de qualquer fé. “A porta mora à espera”, diz o poeta em Explicação das Árvores e de outros Animais (1998). É desta habilidade para sulcar a literatura que se afirma a transversalidade e o dinamismo de passos continuados e dispersos que cada vez mais urge coligir. A sábia e completa perspectiva de Seabra Pereira sobre a problemática da fé e a experiência cristã na literatura portuguesa é um importante avanço e um convite a novas investidas. Tire dela o leitor todas as vantagens e pense ainda acrescentar, com a sua vigilância, esta qualidade provisória.
10 comentários:
Por este sítio a viagem é produtiva! A aprendizagem é contante! Os motivos para o passeio, calmo, constituem verdadeiros desafios às visitas. Parabéns pelo trabalho, fantástico! Paradadegonta agradece visita e as palavras registadas. G abraç.
"constante", bem entendido.
A fé...essa "caminhada madrasta" que nos incendeia os "instantes" e muda, dolosamente, a "agulha" do carril da "linha ferria" onde caminhamos...e nos mata prematuramente sem dó nem piedade. Até quando....?
obrigada
obrigada
obrigada!!!!!!!!!!
vir estar aqui é sempre REDENTOR...compensa do nada que por aí anda....
beijo.
rendido. maravilhada. por tanto descobrir...e ter de ir re.descobrir.
beijo Martim.
Muito Bom! Abraço!
Interessante viagem pela literatura portuguesa! Boa-tarde!...
Tudo dito, excepto uma referência quanto às fotografias. Parafraseando o nosso Konde, "Muito Bom!"
Saudações
querida voz portalegrense, tento, na medida do possível, identificar as fotos. umas vezes, há o esquecimento e a rotina de um exercício quase diário. quanto ao nosso Konde, sei que o comentador, aliás antigo por estes sítios, não é o de "Sentar". abraço.
boa-noite martim
:
em muitos casos a fé religiosa
engravida o dizer poético
.
interessante incursão
abraços
Martim, o Konde não é o nosso querido Konde, cujo 'nó' foi dado, na nossa presença!!!, em Sentar?
Peço desculpa a este ilustre Konde, ao que aqui escreve, que tem a cultura e sensibilidade para te ler e comprender.
Cumprimentos.
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