2006-08-16

Clepsidra: o Conde de Ficalho, Alexandre de Lucena e Vale, o Conselheiro Afonso de Melo, João de Pavia, Sara Augusto e eu

Quando Camilo Pessanha, por vontade sua, impõe, em 1920, a grafia Clepsydra com y grego contra as normas então vigentes, afirma nessa vontade uma presença supra-segmental de um elemento conformador da sua linguagem poética. Afinal, esse grafema cava-nos como nenhum outro o abismo, o que acontece, em sorvedouro, na profundidade explícita das palavras também camilianas crypta e lagrymas .
O tempo sempre tem os seus abismos e nem sempre é fácil tudo dizer ou nada esquecer. E vem tudo isto a propósito do inestimável serviço que a Senhora Doutora Sara Augusto e a Câmara Municipal de Viseu prestaram à nossa cidade e à cultura portuguesa com a publicação da Descriçam da cidade de Vizeu. . ., um poema épico seiscentista que, sem as qualidades estéticas que coonestam as obras canónicas, é, no entanto, um texto que há muito esperava a desocultação com edição e estudo literários competentes, como é o caso. Serve ainda o presente trabalho sobre o manuscrito da Biblioteca Nacional para trazer à tona viva do mundo um nome, João de Pavia (?), preso à nossa circunstância, e quase só conhecido pelos frequentadores da Bibliotheca Lusitana de Diogo Barbosa Machado.
O tempo e os seus fautores permitiram que se estampasse há poucos anos um poema épico que canta as excelências da cidade de Viseu sob o vezo religiosista do barroco literário, apresentando, inclusive, um mapa que pode contribuir para o aclaramento do evoluir de uma zona da cidade que conhece agora decisiva intervenção. A cidade rejubila com o cuidado filológico e com a possibilidade de uma leitura mais produtiva da nossa urbe, não obstante as constrições do "teatro barroco" que um Maravall fixa na tríade fortuna , ocasión e juego.
Mas a história é mais longa e acena de um longe que ainda não é distância suficiente. Nem se permitem aqui os transformacionistas mitos de Proteu e Circe tão do gosto barroco, antes se impondo neste momento a limpidez da verdade. O tempo e o homem mudam e alteram-se no pouco que a vida lhes consente. Ficam, no entanto, os marcos geodésicos das palavras que muitas vezes permitem conhecer o passado que sempre é presente.
O evento a que venho aludindo, nesta vida que é peregrinação, é um dos factos culturais mais importantes dos últimos anos, com decurso na cidade de Viseu.
Apreciei menos algum sensacionalismo que vi então colado ao acontecimento. Afinal, não houve nenhuma descoberta, antes uma leitura competente de um manuscrito perfeitamente localizado desde a década de quarenta do século vinte. Estranhei mesmo - muito, reconheço-o - não ter visto associados a esta magnífica publicação outros nomes. Por exemplo, o do Conde de Ficalho (1837-1903), que foi um excelente escritor e possuidor de "um espólio literário apreciável", como o diz um Justino Mendes de Almeida; o do Conselheiro Afonso de MeIo, homem público integérrimo, preso também da paixão filológica; ou, por último, o do Dr. Alexandre de Lucena e Vale ( 1896-1978), pretérito e sempre incansável investigador histórico localista e não só, que, com a sua proficiência, tanto deu à nossa cidade e ao conhecimento dela, dirigindo com mestria durante décadas a revista Beira Alta.
Passo a explicar o criptograma. O fascículo I do volume V do 1° trimestre de 1946 da revista Beira Alta - com sessenta anos, pois - contém, entre as páginas 69 e 74 inclusive e sob o título "Um manuscrito de Viseu no leilão da biblioteca do Conde de Ficalho", a reprodução de uma carta do Conselheiro Afonso de Melo para o director da publicação, Dr. Alexandre de Lucena e Vale. Este último, com a presciência que só aos eleitos assiste, facilmente entendeu dever dar à estampa um exemplar epistolar saído da pena do Dr. Afonso de Melo. Ainda bem. É que, a partir da publicação da citada carta, sabe-se que Lucena e Vale, atento bibliófilo, chamara a atenção do Conselheiro para a necessidade de arrematar em leilão, a fim de enriquecer o património viseense, o nº 588 do catálogo da livraria do falecido Conde de Ficalho. O preço oferecido, 510$00, não foi suficiente, face ao interesse manifestado pela Biblioteca Nacional que, a coberto da lei e pelo mesmo valor, chamou a si o manuscrito seiscentista agora redivivo pela Senhora Doutora Sara Augusto, com o apoio esclarecido (?) do Senhor Vereador da Cultura da Câmara Municipal de Viseu, Dr. José Moreira Amaral.
O seu a seu dono. Diz o epimítio desta fábula que muito devemos à vigilância do Senhor de Conde de Ficalho, afinal o último dono particular do manuscrito, e que a atenção erudita do Dr. Alexandre de Lucena e Vale levou o Conselheiro Afonso de Mello a trazer a público a primeira leitura, parcial embora, do manuscrito de João de Pavia (?). Diga-se até que essa leitura nem sempre coincide com a da Doutora Sara Augusto, a começar no próprio título...
Mas isso são ligeirezas que não embotam o cometimento cultural que jubilosamente vivemos. É esta Descriçam uma sequela de outras laudes do período filipino dedicadas, na sua maior parte, à história da fundação e grandezas da cidade de Lisboa. António de Sousa de Macedo, que lembro nos quatrocentos anos do seu nascimento, deixou-nos, neste particular, urna obra de rigorosa erudição nas suas Flores de España, Excelencias de Portugal... (1631).
O Barroco português é, passe a glosa poética titular de Joaquim Manuel Magalhães, urna "alta noite em alta fraga" à qual é necessário chegar. Mais um passo foi dado na cidade de Viseu com esta publicação que afirma, pelo vezo arquitectónico nela presente (v. g., mapa da Cava), uma originalidade que cabe no ethos da nobreza portuguesa seiscentista.

4 comentários:

hfm disse...

Aprendendo.

Mário Casa Nova Martins disse...

Foi uma exelente oferta esta.
Saudações

Mário Casa Nova Martins disse...
Este comentário foi removido por um gestor do blogue.
Su disse...

aprendi...jynho


jocas maradas de palavras