2013-01-02

Arroz de sangue: sobre "Gaibéus", de Alves Redol



Arroz de sangue: sobre Gaibéus, de Alves Redol

Acabei de reler Gaibéus durante a minha estadia natalícia por Londres. Desatento à vulgata sobre os possíveis defeitos de uma obra iniciadora de um fulgurante caminho literário, a que nem o próprio Redol escapa, este romance é bem uma certa “aquisição para sempre” a que alude Xenofonte.
Para sempre há de lavrar no sangue esta gesta sobre o trabalho desprotegido e explorado – da diáspora beirã até às lezírias ribatejanas escoa-se o rito da sazonalidade. E nunca o protagonismo coletivo de uma massa de trabalhadores assalariados a breve termo despermite uma escrita laboriosa e superior, sugestiva e poética, instituidora de um “modo novo” de captação artística do trabalho e da sujeição. A aproximação justa que Óscar Lopes (1989) divisa entre estes ranchos laboriosos e o coro da antiquíssima tragédia ática afirma ainda aquilo que, não sendo inconfutável, representa um particular e poético olhar, que, como se soube, veio para fazer caminho e abrir uma porta.
É superior ainda o passo alegórico da doença e cansaço de ti Maria do Rosário, que, em transe de sono febril, entrevê a trituração da sua pessoa e dos restantes trabalhadores em sanguinolento arroz para o patrão comer.
E nem a admonição redoliana inicial de estarmos perante um “documentário humano” e de o romance não pretender “ficar na literatura como obra de arte” nos dissuade da óbvia conclusão de estarmos perante um dos fulgurantes romances portugueses de todos os tempos.
É, por último, uma obra literária que insta a que despertemos, como o anuncia, por exemplo, o magnífico final: “E o inverno vinha aí…”. Assim o cuidado no presente que somos.
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Óscar Lopes, "Gaibéus - uma leitura (uma lição) cinquentenária", in Alves Redol, Gaibéus, Lisboa, Caminho, 1989. Edição comemorativa dos 50 anos da primeira edição (1939-1989).

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