Arroz de sangue:
sobre Gaibéus, de Alves Redol
Acabei de reler Gaibéus durante a minha estadia
natalícia por Londres. Desatento à vulgata sobre os possíveis defeitos de uma
obra iniciadora de um fulgurante caminho literário, a que nem o próprio Redol
escapa, este romance é bem uma certa “aquisição para sempre” a que alude Xenofonte.
Para sempre há de lavrar no
sangue esta gesta sobre o trabalho desprotegido e explorado – da diáspora beirã
até às lezírias ribatejanas escoa-se o rito da sazonalidade. E nunca o
protagonismo coletivo de uma massa de trabalhadores assalariados a breve termo
despermite uma escrita laboriosa e superior, sugestiva e poética, instituidora de
um “modo novo” de captação artística do trabalho e da sujeição. A aproximação
justa que Óscar Lopes (1989) divisa entre estes ranchos laboriosos e o coro da
antiquíssima tragédia ática afirma ainda aquilo que, não sendo inconfutável,
representa um particular e poético olhar, que, como se soube, veio para fazer
caminho e abrir uma porta.
É superior ainda o passo
alegórico da doença e cansaço de ti Maria do Rosário, que, em transe de sono
febril, entrevê a trituração da sua pessoa e dos restantes trabalhadores em
sanguinolento arroz para o patrão comer.
E nem a admonição redoliana
inicial de estarmos perante um “documentário humano” e de o romance não
pretender “ficar na literatura como obra de arte” nos dissuade da óbvia
conclusão de estarmos perante um dos fulgurantes romances portugueses de todos
os tempos.
É, por último, uma obra literária
que insta a que despertemos, como o anuncia, por exemplo, o magnífico final: “E
o inverno vinha aí…”. Assim o cuidado no presente que somos.
_______________
Óscar Lopes, "Gaibéus - uma leitura (uma lição) cinquentenária", in Alves Redol, Gaibéus, Lisboa, Caminho, 1989. Edição comemorativa dos 50 anos da primeira edição (1939-1989).
Sem comentários:
Enviar um comentário