2012-04-22

é o vento

devastado um corpo emerge das ondas
erecto o crânio esconde a nevrose o ar
húmido que desce aos pés vem do vento
elemento cúmulo de veias de ocres fanais
que inundam todos os espaços a memória
exangue dispersa-se duvidosa nos vidros
na incerta nitidez das rotas escuta o vento
porque sem lugar não há família original
nem declinar de outono nem vida na terra.

é o vento na chuva as águas esparsas a cor
da cal derramada na pele fundente viscosa
cinérea medida dos fogos calcinados as casas
afundam-se nos órgãos abrem-se nos poros
esticando a pele as suas fissuras o íntimo ser
nervo a nervo persiste deflagra o antigo estio
na pequena face nos ossos previsíveis no vento.

na chuva o vento o sangue a morte excessiva...

2012-04-21

cientismo

suspensa nas nuvens uma ponte
abisma-se em ti qual perpétuo sinal
e das sombras olhadas um cão nasce
absorto caminhante cortando o tempo
enquanto uns breves extratos solares
te queimam as retinas perscrutadoras.

do ar a comoção à vista aguda irrompe
cede à ciência às verdades calculadas. 

2012-04-20

novidade

um dia será assim
a memória nos olhos
o fogo raso na pele
uma ruína no éter
um baile movente
longínquo levantando-se
inserto casulo nas unhas
vivificando os campos
o pensamento agrário.

rasas ainda as lágrimas
secarão no passo tecido
de pedras lusitanas
e do brilho de tudo cairá
um fundente e vasto dia.

vivíssimas as retinas aflorarão
os joelhos o torneado das ancas
todo o dorso estilizado de veludo
o rendilhado dos cabelos a pele
os rútilos seios as firmes fibras
os trilhos jovens das águas...

por último
uma sensação nova chegará em nota queirosiana.

2012-04-19

rigor

assim um poema horaciano
é lambido até à perfeição
como se entre mar e terra
apenas houvesse a pele...

raso o presente é candura
brilho no sangue nos olhos
nas frágeis patas dos cães
no entrelaçado das mãos...

sem ruína esta é a história.

2012-04-13

sem palavras

já não sei que dizer: sem memória 
a liquidez da partida esfacela-me
o crânio e os labirintos auriculares
explodem pelas artérias drenando
algas e fungos do tempo antigo...

entre mim e o chão há um espelho
uma ferida na distância uma linha
comovida que recorda os cheiros
a ilógica paisagem da recordação
uma lâmina cerce vinda da noite.

do ritual um livro aberto cai real
ilusão das sílabas impronunciadas
dos exílios dos movimentos lentos
roídos pela esperança - no lençol
apenas fuligem e trevas são sinal.

2012-04-12

marcha lenta

ao domingo nesta quinta pousa o ritmo
e os sentimentos vagos sedutores são
danças tintas filtros contra este andar
descontemplativamente incauto vazio.
dos tersos nervos nem chama cegueira
apenas escorre nos vícios hereditários
na morte opaca que te doma os ritos
como se as defesas pródigas ousassem
dominar as inscrições mais derradeiras.
imutável persiste a marcha dos anos
e cego imaturo sem fibra continuas?

2012-04-11

corpo residual

conserva-te aí tácito resíduo
e não queiras lugares nem
moradas que habitável um
cão ceder-te-á as margens
os surtos memoriais a carne
a frágil radicalidade de seres.

2012-04-06

páscoa nos dedos

duvidosas as linhas da firmeza
como a segurança no equilíbrio 
perfeito da corrosão. variável a 
curva abraça os destinos, de-
clina-os na explosão do sol e
renuncia aos tropismos da luz.
a imprecisão corrige-a a pomba
ácida que derrama vida junto.
não seja gráfico o teu corpo e
a perícia das águas te seja via.

esta é a passagem a páscoa nos dedos.

2012-04-05

remanescência

às vezes é nas zonas de rutura que mais me descubro
e dentro da divisão cerebral contentam-me as sombras
os labirintos opacos as velhas teias as genéticas fendas.

revolucionário o arado rompe a pele e invade a terra
boca com boca um corpo ogival rebenta nos dentes
e vai cedendo aos íntimos incêndios aos resíduos murais.

rumores brancos afagam a rigidez da objetiva líquidos
os rios são retinas expandidas na distância óssea
tais os trilhos fundentes na carne que te é morada.

um dia a morte ambígua há de tirar-te esta água...

2012-04-04

escrita do mar

sobre a terra a chuva
serpe no empedrado
a vida é solo arável
incómodos caminhos
nascem dos pulsos
iluminam-se metálicos
e na retina ecoam
como espelho íntimo.

assim o mar esta escrita.

2012-04-03

vaticínio

reclinados sobre a sede os lábios tombam
contra o último verão e sorvem os líquidos
da terra os derradeiros e divisíveis ácidos.

breve uma garganta cinérea afundar-se-á
no tempo seco na evidente explosão da cal
que capilarmente te corrói o corpo exausto.

só então uma luz metálica te fere a retina
como uma velha suspeita vinda das colheitas
das indivisas e longes eras que já não são...

nesta clareira o homem se afunda e é pó.

2012-04-02

sede

regressivos os dias assim
visuais etéreos no calor
adormecidos regressados
à incombustão da manhã.

os campos difusos visuais
alteram os fragmentos
e toda a morte clareia
na sarça pétrea que é chão.

reclinados vários corpos
migram de lugar residuais
organizam-se icónicos
surpreendentes deslizam.

do chão ao fogo a água
dos lábios aos pés o sol
ácidos ambos beijam-se
como imóvel perfeição.

este é o lugar a minha sede.

2012-04-01

despedida

mais que as sombras as palavras
estendem-se sobre as pedras
irradiando em manchas as manhãs
dentro das algas e dos frutos.

no arco da ogiva os limos e as unhas
constroem em esforço esta despedida.

quem extrai do trigo um breve sorriso?