O CAMINHO É O CAMINHO: AQUILINO EM
ALBUQ
Parecia poder acontecer a
este Aquilino sem palavras, e não vou
falar do estigma que a superior intitulação criada por José-Luis Ferreira gerou
no “deslize fluvial do tempo”, o mesmo que se passou com aquela célebre pedra
no meio do caminho univocal do poema de Drummond de Andrade, que gloso levado
pelo encantamento e pelo fascínio:
No
meio do caminho tinha uma pedra
Tinha
uma pedra no meio do caminho
Tinha
uma pedra
No
meio do caminho tinha uma pedra
Nunca
me esquecerei desse acontecimento
Na
vida de minhas retinas tão fatigadas
Nunca
me esquecerei que no meio do caminho
Tinha
uma pedra
Tinha
uma pedra no meio do caminho
No
meio do caminho tinha uma pedra.[1]
E eis que, no rasto do lema aquiliniano “Alcança quem não
cansa”, a obra aparece resplendente e original, provando-se que as admonições
de Goethe sobre a dificuldade da ação aqui não tiveram lugar, nem poderiam ter.
A obra nasce nova com o pensamento em ação do CEAR e da sua direção,
salientando eu, no passo, a palavra fortemente propulsora de João Inês Vaz para
quem peço um aplauso e o nosso tributo de saudade. Claro que isto acontece
agora com a inestimável parceria das Edições Esgotadas, que connosco
trabalharam e souberam ver, também com Goethe, que “no começo está a ação”.
O livro agora aparecido escreve-se como uma paixão inconsútil
unindo dois artistas em diálogo perene, vindo ainda enriquecido com uma sebenta
contextualizadora onde colaboram vários nomes da cultura portuguesa que
funciona como um anexo ou um pátio sobre os mundos de Aquilino e de AlbuQ.
Esta apresentação é um começo, friso. Livro para ser comido e
bebido, este Aquilino sem palavras é
hoje claro testemunho de vida, que conta com o tempo que há de vir. Ler devagar
e ouvir Proust talvez convenha, quando ele diz, por exemplo, que preciso que o
artista, “se quiser que a sua obra possa seguir o seu caminho, a lance, onde
houver profundidade suficiente, para um pleno e longínquo futuro.”[2]
Que começo hoje, sublinho.
Fica ainda um outro recado breve que subsumo nos fulgurantes
versos de Al Berto, com que acabo, aplicando-os a este belo objeto que
celebramos aqui:
RECADO
ouve-me
que
o dia te seja limpo e
a
cada esquina de luz possas recolher
alimento
suficiente para a tua morte
vai
até onde ninguém te possa falar
ou
reconhecer – vai por esse campo
de
crateras extintas – vai por essa porta
de
água tão vasta quando a noite
deixa
a árvore das cassiopeias cobrir-te
a
as loucas aveias que o ácido enferrujou
erguerem-se
na vertigem do voo – deixa
que
o outono traga os pássaros e as abelhas
para
pernoitarem na doçura
do
teu breve coração – ouve-me
que
o dia te seja limpo
e
para lá da pele constrói o arco de sal
a
morada eterna – o mar por onde fugirá
o
etéreo visitante desta noite
não
esqueças o navio carregado de lumes
de
desejos em poeira – não esqueças o ouro
o
marfim – os sessenta comprimidos letais
ao
pequeno-almoço.[3]
Sopramo-vos, soprar-vos-emos sempre para dentro do tempo, Aquilino sem palavras e AlbuQ…
Viseu, Solar do Vinho do Dão
9 de dezembro de 2016
Martim de Gouveia e Sousa
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