2017-01-15

O CAMINHO É O CAMINHO: AQUILINO EM ALBUQ


O CAMINHO É O CAMINHO: AQUILINO EM ALBUQ

Parecia poder acontecer a este Aquilino sem palavras, e não vou falar do estigma que a superior intitulação criada por José-Luis Ferreira gerou no “deslize fluvial do tempo”, o mesmo que se passou com aquela célebre pedra no meio do caminho univocal do poema de Drummond de Andrade, que gloso levado pelo encantamento e pelo fascínio:
No meio do caminho tinha uma pedra
Tinha uma pedra no meio do caminho
Tinha uma pedra
No meio do caminho tinha uma pedra

Nunca me esquecerei desse acontecimento
Na vida de minhas retinas tão fatigadas
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
Tinha uma pedra
Tinha uma pedra no meio do caminho
No meio do caminho tinha uma pedra.[1]

E eis que, no rasto do lema aquiliniano “Alcança quem não cansa”, a obra aparece resplendente e original, provando-se que as admonições de Goethe sobre a dificuldade da ação aqui não tiveram lugar, nem poderiam ter. A obra nasce nova com o pensamento em ação do CEAR e da sua direção, salientando eu, no passo, a palavra fortemente propulsora de João Inês Vaz para quem peço um aplauso e o nosso tributo de saudade. Claro que isto acontece agora com a inestimável parceria das Edições Esgotadas, que connosco trabalharam e souberam ver, também com Goethe, que “no começo está a ação”.
O livro agora aparecido escreve-se como uma paixão inconsútil unindo dois artistas em diálogo perene, vindo ainda enriquecido com uma sebenta contextualizadora onde colaboram vários nomes da cultura portuguesa que funciona como um anexo ou um pátio sobre os mundos de Aquilino e de AlbuQ.
Esta apresentação é um começo, friso. Livro para ser comido e bebido, este Aquilino sem palavras é hoje claro testemunho de vida, que conta com o tempo que há de vir. Ler devagar e ouvir Proust talvez convenha, quando ele diz, por exemplo, que preciso que o artista, “se quiser que a sua obra possa seguir o seu caminho, a lance, onde houver profundidade suficiente, para um pleno e longínquo futuro.”[2] Que começo hoje, sublinho.
Fica ainda um outro recado breve que subsumo nos fulgurantes versos de Al Berto, com que acabo, aplicando-os a este belo objeto que celebramos aqui:
RECADO
ouve-me
que o dia te seja limpo e
a cada esquina de luz possas recolher
alimento suficiente para a tua morte

vai até onde ninguém te possa falar
ou reconhecer – vai por esse campo
de crateras extintas – vai por essa porta
de água tão vasta quando a noite

deixa a árvore das cassiopeias cobrir-te
a as loucas aveias que o ácido enferrujou
erguerem-se na vertigem do voo – deixa
que o outono traga os pássaros e as abelhas
para pernoitarem na doçura
do teu breve coração – ouve-me

que o dia te seja limpo
e para lá da pele constrói o arco de sal
a morada eterna – o mar por onde fugirá
o etéreo visitante desta noite

não esqueças o navio carregado de lumes
de desejos em poeira – não esqueças o ouro
o marfim – os sessenta comprimidos letais
ao pequeno-almoço.[3]

Sopramo-vos, soprar-vos-emos sempre para dentro do tempo, Aquilino sem palavras e AlbuQ…


Viseu, Solar do Vinho do Dão
9 de dezembro de 2016
Martim de Gouveia e Sousa





[1] Carlos Drummond de Andrade, “No meio do caminho”, in  Revista de Antropofagia, 1928.
[2] Marcel Proust, Em busca do tempo perdido-II- À sombra das raparigas em flor, Lisboa, Relógio d’Água Editores, 2016, p. 96.
[3] Al Berto, Horto de incêndio, Lisboa, Assírio & Alvim, 1996.

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