Aquilino e as mulheres
Nem Eça e muitos menos Camilo assim
desferem com a sua escrita, como Aquilino, torrentes de luz e força vital. Tal
particularidade, pouco usual na literatura portuguesa, percorre a maior parte
da obra do romancista de que falamos e é sempre sinal diferenciador,
importante. Esse vitalismo que Seabra Pereira há não muito exalçou em ensaio
modelar e produtivo, em boa hora galardoado com o prémio de ensaio Jacinto do
Prado Coelho, é um lugar de muitos exemplos e de multímodas possibilidades.
Vamos ao caso das mulheres e à sua
grácil presença nas inúmeras páginas do operoso escritor de Geografia sentimental. Pego quase ao
acaso em É a guerra e logo topo com
uma vasta, comovente e erótica visão da figura feminina. Por exemplo:
1.
“Ali na Avenida de Orleans, a rapariga de fichu vermelho, nada feia, que vende
periódicos e flores e passa por liberal das suas graças, não tem mãos a medir.”
(p. 17.)
2.
“Os olhos dela que são bonitos andam pisados com
o medo. Alta, elegante, um tanto pálida, género faubourg, é a redolente rosa-chá do prédio.” (p. 38.)
3.
“Tampouco se veem, como que a sobrenadar, as
silhuetas finas e altas de certas parisienses, deusas esplêndidas.” (p. 102.)
4.
“No segundo andar, sobre a rua moram os Legrand,
que têm nurse inglesa. Deve orçar
entre os catorze e dezasseis anos e, na sua formusura picante, é assim como
belas e disparates coisas, tulipas, leite, luar, vinho velho, sonho,
amalgamadas numa só.” (p. 172.)
Sem
especial norte, abro Alemanha
ensanguentada e recolho, como exemplo, as seguintes tiradas:
1.
“… e a menina sardenta, de cabelos de oiro, que
se me inculcara estudanta de Cambridge.” (p. 17.)
2.
“Quási nenhuma desordem; na vaga de povo exultante
e frenética o ouro pálido das cabeças nuas das raparigas, estas cabeças de
Madona tão comuns no Norte, era garantia de idealidade.” (p. 92.)
3.
“De facto a cabeça da pequena, entre a faiança
especiosa, tem não sei quê de espiritual e sonhado. Admiro-lhe o cabelo
esparrilhado como leve nuvem de ouro sobre as têmporas, o nariz fino e de
arrebite, o creme do rosto translúcido, miudinha de talhe, mais francesa que
germânica, antes do Hanovre que da Prússia, e lembra-me aquelas figuras
pré-rafaelitas cujo movimento era sacrificado à forma e a forma sujeita ainda às linhas gerais da
construção.“ (p. 109.)
4.
“No chá para que me convidou o Dr. Schwenke,
diretor da Biblioteca Nacional, servia uma menina russa de deslumbrante beleza.
O lume da sua face parecia ofuscar como o sol. Mal me atrevia a erguer para ela
os olhos, não obstante a vontade interior de a adorar. E pela modéstia e
compostura, aliada à graça e louçania, me lembrou aquela Natascha da Guerra e Paz que toma lugar no coração
como conhecida e amada nossa.” (p. 119.)
São
imagens fortes, vibráteis e vivas as imagens de mulher que se levantam das
páginas aquilinianas. Fendendo a vida, esta erótica literária é muito real e
muito do escritor. Ardendo, ardendo sempre, o desejo é fogo e captura, vida e
morte, prisão e libertação, como o diz, aliás, o fulgurante explicit de Um escritor confessa-se:
“Passada
a fronteira, lá para Bayonne, subiram duas bonitas francesinhas. Ao Diabo a
sisudez e o medo da vida!” (p. 401.)
Viva,
pois, a vida e os claros lumes das mulheres que nela vemos!...
Viseu, 10 de julho de 2016
Martim de Gouveia e Sousa
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