2016-07-10

Aquilino e as mulheres


Aquilino e as mulheres

Nem Eça e muitos menos Camilo assim desferem com a sua escrita, como Aquilino, torrentes de luz e força vital. Tal particularidade, pouco usual na literatura portuguesa, percorre a maior parte da obra do romancista de que falamos e é sempre sinal diferenciador, importante. Esse vitalismo que Seabra Pereira há não muito exalçou em ensaio modelar e produtivo, em boa hora galardoado com o prémio de ensaio Jacinto do Prado Coelho, é um lugar de muitos exemplos e de multímodas possibilidades.
Vamos ao caso das mulheres e à sua grácil presença nas inúmeras páginas do operoso escritor de Geografia sentimental. Pego quase ao acaso em É a guerra e logo topo com uma vasta, comovente e erótica visão da figura feminina. Por exemplo:

1.       “Ali na Avenida de Orleans, a rapariga de fichu vermelho, nada feia, que vende periódicos e flores e passa por liberal das suas graças, não tem mãos a medir.” (p. 17.)
2.       “Os olhos dela que são bonitos andam pisados com o medo. Alta, elegante, um tanto pálida, género faubourg, é a redolente rosa-chá do prédio.” (p. 38.)
3.       “Tampouco se veem, como que a sobrenadar, as silhuetas finas e altas de certas parisienses, deusas esplêndidas.” (p. 102.)
4.       “No segundo andar, sobre a rua moram os Legrand, que têm nurse inglesa. Deve orçar entre os catorze e dezasseis anos e, na sua formusura picante, é assim como belas e disparates coisas, tulipas, leite, luar, vinho velho, sonho, amalgamadas numa só.” (p. 172.)

Sem especial norte, abro Alemanha ensanguentada e recolho, como exemplo, as seguintes tiradas:

1.       “… e a menina sardenta, de cabelos de oiro, que se me inculcara estudanta de Cambridge.” (p. 17.)
2.       “Quási nenhuma desordem; na vaga de povo exultante e frenética o ouro pálido das cabeças nuas das raparigas, estas cabeças de Madona tão comuns no Norte, era garantia de idealidade.” (p. 92.)
3.       “De facto a cabeça da pequena, entre a faiança especiosa, tem não sei quê de espiritual e sonhado. Admiro-lhe o cabelo esparrilhado como leve nuvem de ouro sobre as têmporas, o nariz fino e de arrebite, o creme do rosto translúcido, miudinha de talhe, mais francesa que germânica, antes do Hanovre que da Prússia, e lembra-me aquelas figuras pré-rafaelitas cujo movimento era sacrificado à forma  e a forma sujeita ainda às linhas gerais da construção.“ (p. 109.)
4.       “No chá para que me convidou o Dr. Schwenke, diretor da Biblioteca Nacional, servia uma menina russa de deslumbrante beleza. O lume da sua face parecia ofuscar como o sol. Mal me atrevia a erguer para ela os olhos, não obstante a vontade interior de a adorar. E pela modéstia e compostura, aliada à graça e louçania, me lembrou aquela Natascha da Guerra e Paz que toma lugar no coração como conhecida e amada nossa.” (p. 119.)

São imagens fortes, vibráteis e vivas as imagens de mulher que se levantam das páginas aquilinianas. Fendendo a vida, esta erótica literária é muito real e muito do escritor. Ardendo, ardendo sempre, o desejo é fogo e captura, vida e morte, prisão e libertação, como o diz, aliás, o fulgurante explicit de Um escritor confessa-se:
“Passada a fronteira, lá para Bayonne, subiram duas bonitas francesinhas. Ao Diabo a sisudez e o medo da vida!” (p. 401.)
Viva, pois, a vida e os claros lumes das mulheres que nela vemos!...
Viseu, 10 de julho de 2016

Martim de Gouveia e Sousa

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