Irradiante Aquilino
Falar de um nome que é pelo menos
meio século de literatura nunca é fácil. Difícil ainda é falar de um nome que é
um lugar, como o assinalou Óscar Lopes, e que sendo-o o é fortemente
alcandorado no pequeno tugúrio criativo que foi a sua banca de oficina na
Soutosa. A narrativa ficcional portuguesa conta-se num ápice: Herculano,
Garrett, Camilo, Eça, Brandão, Pessoa, Aquilino, Vergílio, Agustina, Cardoso
Pires, Saramago, Gonçalo Tavares. Nas adjacências ainda fortes, um
Teixeira-Gomes, um Nemésio, um Mário de Carvalho. Mas na linhagem funda como
central de energia até Aquilino só há Garrett, Camilo e o fulgurante Eça.
Depois deste, o monumento é indubitavelmente Aquilino, pesem o espanto
brandoniano e a fragmentação de Pessoa-Vicente Guedes-Bernardo Soares.
Mas como foi possível Aquilino
chegar aqui? Olhando à perquirição de Armando Leça «Através da Beira-Douro» eis
que o viageiro desencanta na Soutosa uma bonita mas rude quadra:
Quando eu te amei,
mais valia amar um burro,
andava a cavalo nele,
nunca eu perdia tudo.[1]
E foi principalmente aí, depois do
aprendizado lisboeta e parisiense[2],
que o escritor veio a ser aquilo que queria ser: escritor. Olhando-se, vendo-se
na pequena-grande circunstância, escrevendo diferente, Aquilino veio a ser um
outro escritor, um mais fundo escritor. Contemplando no sangue pequenas e
grandes rechãs, silvas, ortigas, favacas e demais herbáceas, as uvas
multicolores e viçosos legumes, os lameiros e as tourinhas nos cibadoiros, a
frescura que os gados espontam nos sargaços, nas urzes e nos tomelos, os
campestres fálgaros e os gritos dos gaios, a dureza das fragas, a romaria da
Lapa e a festa de Santo Amaro, enfim, a vida plena, pôde o escritor abarcar o
mundo, ser o mundo. Aliás, projetando-se na obra como os maiores o fazem,
diga-se que Aquilino Ribeiro revela-se na marca criativa um «sofredor» do
complexo da desvelação, indicando caminhos, mostrando lugares. Por exemplo, ao
referir-se à Beira e à etologia de Adriano Valadares, o narrador de Maria Benigna (1933), não hesita: «Tudo
aquilo, tempestades de penedos suspensos de morros e encostas, plainos
desolados em que cresce uma rabugem de mato e a que nem os rebanhos de reses
magras e pequeninas nem o renovo da primavera conseguem animar, pinheirais
vergados para nascente como hordas em marcha, solo sáfaro e condenado a dar
fruto, terra onde os medos andam à solta e as ruínas guerreiras e monásticas
ensombram a cada passo os horizontes, brutalidade e melancolia, rijeza e
desespero, perspetivas abstratas e um sentido da vida muito concreto, eis a
Beira Alta, eis o plasma medonho e admirável de que ele é feito.»[3]
Deste plasma sendo, desta projeção
oracular de um grande caminho nascido de vereda geográfica, eis que Aquilino, irradiando sempre, soube
universalizar um território que, sendo inscrição geodésica, é, antes de tudo,
funda pegada literária e infungível espaço de diferença. Ao dizer «A minha obra
sou eu próprio», Aquilino inscreve uma “mesmidade” produtiva e única.
Assim este irradiante Aquilino,
que, nascendo, não cessa de nascer…
Viseu, 13 de setembro de 2015
Martim de Gouveia e Sousa
[1]
Armando Leça, «Através da Beira-Douro»-III, in Boletim da Casa Regional Beira-Douro, Ano III, nº 3, março de 1954,
p. 86.
[2] Jorge
Reis, «Paris, berço da língua de Aquilino?...», in Revista de Cultura e Pensamento Boca do Inferno, nº 2, Cascais, Câmara Municipal - Pelouro da Cultura, pp. 174-195.
[3] Aquilino
Ribeiro, Maria Benigna, Lisboa,
Livraria Bertrand, 1933, p. 231.
Sem comentários:
Enviar um comentário