2015-09-29

Na abertura da exposição «Inscrituras», em 16 de maio de 2015, no Museu Nacional de Grão Vasco: Aquilino visto por AlbuQ

POSOLOGIA [BULA]: MODO DE USAR

«Quando a peste cerca a comunidade, a confusão e o salve-se quem puder entram na ordem do dia. Mas não só. As pessoas atropelam-se, as pessoas morrem, as pessoas tentam fugir (e algumas, efetivamente, fogem). Sobreviver ou não sobreviver, eis a questão. Mas não só – repetimos. O ser humano é isto e é aquilo mas é também, às vezes, um ser obcecado – pela criação, por exemplo. Pela meditação.»[1]
Meditação, dizia. E por aí sigo. Olhando estas «inscrituras» de AlbuQ, tal como acontece no poema de Luís Miguel Nava, apetece dizer:
Estou em Viseu, o tempo dá de súbito um salto para trás.
É um filme muito antigo, entre cujas imagens, devolvidas assim à realidade, me movo hipnoticamente, em cada uma das coisas que me cercam pressentindo o sangue de que, dentro de mim, durante todos estes anos se nutriram. Cada contorno aqui é um sublinhado.[2]

Ou, então, apetece chamar para esta mostração um outro grande nome da poesia portuguesa, António Franco Alexandre, que, evocando a sua condição, diz:

vejo a pequena terra em que nasci
o sossego das grandes chuvas desabando no pátio e o respirar da casa
o rosto de minha mãe[3]

É, pois, esta exposição um filme de sangue e o respirar de uma casa comum. Ou um regresso à condição, como diria Aquilino Ribeiro. Os quatro andamentos aqui revelados desvelam uma ficha antropológica, uma etologia, uma força erótica e um movimento, que, existindo nesse lugar de nome Aquilino que Óscar Lopes tão bem assinalou, são também clara conquista expressiva de AlbuQ. Os trabalhos plásticos aqui tornados presentes, sendo mera possibilidade mostrativa de universo cinco vezes mais lato, não são univocais, líticos, fechados. Antes criações dinâmicas, vindas de lugares aquilinianos, aparentemente identificáveis, mas logo totalizadoras e dialogantes com a enciclopédia de cada um, com as específicas gramáticas do mundo de cada indivíduo. Todos estamos implicados neste universo aparentemente desaparecido e ressonante na corrente sanguínea, como se todos dentro de uma mesma casa.

Neste regresso à condição que celebramos hoje, fica um desejo e uma posologia: que este diálogo persistente e consistente entre dois nomes – um dos mais alargados, sem dúvida, da cultura portuguesa – convoque os espectadores emancipadamente, sem quaisquer linhas virtuosas de leitura, para uma interação que a todos convém. Aquilino é brilho, vitalismo e movimento transbordante. E esse é, felizmente, um filme que aqui claramente vemos e incorporamos.

Criando, meditando, dizia há pouco. Assim o vai fazendo o nosso artista. Sempre.

Viseu, 16 de maio de 2015
Martim de Gouveia e Sousa 





[1] Eugénio Lisboa, Crónica dos anos da peste-I.
[2] Luís Miguel Nava, O céu sob as entranhas.
[3] António Franco Alexandre, Oásis.

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