LIMIARES DA ESCRITA
À
distância, a distância (1969), de
António Franco Alexandre
Quase a um quartel de distância, este é
um dos maiores limiares de escrita da literatura portuguesa e um caso até de
estranho esquecimento, não fora uma certa recensão de Eduardo Prado Coelho,
nesse mesmo ano de 1969, ele também um intelectual nascente.
Composto e impresso em Viseu nas prensas
da Éden Gráfico, Lda., o livrinho de poesia teve distribuição da lisboeta
Publicações Dom Quixote. Franco Alexandre usava ainda o hifenizado
António-Franco. E o silêncio foi quase avassalador.
Recolhendo poemas escritos entre outubro
de 1963 e abril de 1969, a coletânea, abrindo com epígrafe seniana apelando à
luta pela liberdade e pela justiça como «uma fiel dedicação à honra de estar
vivo», integra vinte poemas na parte intitulada «Poética» e nove outros na
partição «Discursos». É um complexo poético permeado por signos fundos, agudos
e culturais, nomeadamente na poesia «discursiva» em que avultam epígrafes
motivemáticas de nomes como os de Derrida, René Char, Serge Leclaire, Hölderlin
e Norman Mailer.
a
distância anuncia desde a primeira inscrição uma inquietação
pela preservação da memória e o difícil caminho sobre essas cinzas
(«Construindo a distância cauteloso / das ruínas já pobres do passado a memória
/ inquieta de perder-se / das cinzas espalhadas sem cuidado / por sobre a mesa
clara a mesa ausente / como um fio que se tece e se destrói», 1, p. 7). E é
esse fio, peça tão funcional para toda a trama alexandrina, que nos conduzirá a
uma das mais belas histórias da poesia portuguesa de linhagem decetiva. Sirva de
exemplo o fascinante poema 3, da página 11:
Uma secura cresce no sangue dos dedos no
sangue dos gestos
Uma ausência de nada o peso do céu
grande
saber continuamente que partimos que
nada nos prende
a não ser um desprezo dos dias que
passamos
uma cólera cansada demais para gritar
e um universo inteiro ao
esfarelar-se-nos nas mãos
recobre-as pegajoso de sinais.
(dez. 65)
E assim o título se explica, nesta
distância de tudo, na negação e na dificuldade do conhecimento, na desconfiança
de poder a palavra derrubar o silêncio, ele sim verdadeiramente luminoso: «e a
cada instante morrem as palavras / corroídas de lepra / do gesto casualmente»
(5, p. 15).
Inquietantes, intensos, brilhantes, os
versos alexandrinos dir-nos-ão que «de muito pensar na morte havemos um dia /
de esquecê-la» (6, p. 17) e que as melhores epifanias advirão do silêncio: «e
nascer outra vez mas das palavras / que em silêncio me dizes fabulosas» (7, p.
19).
Refletindo-se, os poemas da derradeira
parte são artes poéticas sobre os rituais do escritor e do leitor, um ouvido
encostado aos gritos e aos silêncios, um fósforo mineral iluminando a voz que
transformará o mundo em volta.
Uma longa marcha se iniciou então. Plantada
no tempo ficou uma grande poesia que desde há dez anos não conhece voz. António
Franco Alexandre nasceu em Viseu há setenta anos, lembram-se?
[In Correio Beirão, nº 1.]
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