2014-01-26

À distância, «a distância« (1969), de António Franco Alexandre

LIMIARES DA ESCRITA 
À distância, a distância (1969), de António Franco Alexandre


Quase a um quartel de distância, este é um dos maiores limiares de escrita da literatura portuguesa e um caso até de estranho esquecimento, não fora uma certa recensão de Eduardo Prado Coelho, nesse mesmo ano de 1969, ele também um intelectual nascente.
Composto e impresso em Viseu nas prensas da Éden Gráfico, Lda., o livrinho de poesia teve distribuição da lisboeta Publicações Dom Quixote. Franco Alexandre usava ainda o hifenizado António-Franco. E o silêncio foi quase avassalador.
Recolhendo poemas escritos entre outubro de 1963 e abril de 1969, a coletânea, abrindo com epígrafe seniana apelando à luta pela liberdade e pela justiça como «uma fiel dedicação à honra de estar vivo», integra vinte poemas na parte intitulada «Poética» e nove outros na partição «Discursos». É um complexo poético permeado por signos fundos, agudos e culturais, nomeadamente na poesia «discursiva» em que avultam epígrafes motivemáticas de nomes como os de Derrida, René Char, Serge Leclaire, Hölderlin e Norman Mailer.
a distância anuncia desde a primeira inscrição uma inquietação pela preservação da memória e o difícil caminho sobre essas cinzas («Construindo a distância cauteloso / das ruínas já pobres do passado a memória / inquieta de perder-se / das cinzas espalhadas sem cuidado / por sobre a mesa clara a mesa ausente / como um fio que se tece e se destrói», 1, p. 7). E é esse fio, peça tão funcional para toda a trama alexandrina, que nos conduzirá a uma das mais belas histórias da poesia portuguesa de linhagem decetiva. Sirva de exemplo o fascinante poema 3, da página 11:

Uma secura cresce no sangue dos dedos no sangue dos gestos
Uma ausência de nada o peso do céu grande
saber continuamente que partimos que nada nos prende
a não ser um desprezo dos dias que passamos
uma cólera cansada demais para gritar
e um universo inteiro ao esfarelar-se-nos nas mãos
recobre-as pegajoso de sinais.
                                                                           (dez. 65

E assim o título se explica, nesta distância de tudo, na negação e na dificuldade do conhecimento, na desconfiança de poder a palavra derrubar o silêncio, ele sim verdadeiramente luminoso: «e a cada instante morrem as palavras / corroídas de lepra / do gesto casualmente» (5, p. 15).
Inquietantes, intensos, brilhantes, os versos alexandrinos dir-nos-ão que «de muito pensar na morte havemos um dia / de esquecê-la» (6, p. 17) e que as melhores epifanias advirão do silêncio: «e nascer outra vez mas das palavras / que em silêncio me dizes fabulosas» (7, p. 19).
Refletindo-se, os poemas da derradeira parte são artes poéticas sobre os rituais do escritor e do leitor, um ouvido encostado aos gritos e aos silêncios, um fósforo mineral iluminando a voz que transformará o mundo em volta.
Uma longa marcha se iniciou então. Plantada no tempo ficou uma grande poesia que desde há dez anos não conhece voz. António Franco Alexandre nasceu em Viseu há setenta anos, lembram-se?
                                                                                                         [In Correio Beirão, nº 1.]

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