LIMIARES DA ESCRITA
A
poesia nascente de Luís Miguel Nava: O
perdão da puberdade (1974)
Anunciando abril, eis que outra
revolução fazia caminho – a de uma poesia única, lavrante e visceral. Impresso
em março de 1974, nas oficinas da Coimbra Editora, este perdão da puberdade desvela-se sob funda, impressiva e lancinante
dedicatória à mãe: «À tua memória, Mãe, que ainda ouviste “Crise” e pouco
depois subitamente me deixaste.» Assim entregue a coletânea («são teus, meu
amor, pois a autocrítica também partiu contigo»), avultam ainda um marcante
prefácio de Aníbal Pinto de Castro, anunciando uma plena maturidade que não
tardaria muito a chegar, e as ilustrações de José Guilherme S. de Carvalho.
Luís Miguel de Oliveira Perry Nava, que
nasceu em Viseu a 29 de setembro de 1957, desde cedo se mostrou poeta, tendo
colaborado no jornal Geração de 60,
órgão dos alunos do então Liceu Nacional da nossa cidade, onde viria ainda a
ganhar, em 1969, um prémio de poesia em concurso aí realizado. A publicação do
livro sobre que falamos aos dezasseis anos é prova exemplar do pioneirismo do
então ainda Perry Nava.
Ultrapassada a tocante epígrafe do poeta
inglês James Elroy Flecker, toda ela presa ainda à circunstância da morte da
mãe, o primeiro poema da antologia recupera a força anteriana do ideal e
leva-nos em galope por motivos anunciadores da grande poesia de Nava. Logo se
nos apresentam, desde a composição homónima da titulação, as palavras deflagradoras
de uma oficina económica e enxuta: “céus”, “relâmpagos”, “mares” e “trovões”,
por exemplo, plantam-se desde sempre no lirismo naviano. E que promessa não se
desvela nela! Leia-se:
- Na natureza se retratam céus,
expande-se nos céus a natureza –
e em cada relâmpago ou trovão
vejo e sinto, rompendo o espetáculo,
a profecia da eterna ambiguidade
de uma pitonisa, de um oráculo.
Qual a verdade do meu ser, ó Deus?
não me mantenhas sempre na incerteza!
Faz que eu possua ao menos o perdão
do que é talvez normal na puberdade.
Mas encostar o ouvido a esta obra
nascente é também peregrinar pela cidade de Viseu, «pelas ruas, pelas quelhas»,
passando pelos cafés Infante e Paladium, por avenidas e rotundas assinaladas.
Vindo-nos à mão, esta poesia toma-nos os
punhos e conduz-nos a profundo fanal. Olhando o concentrado complexo poético
que Nava produziu, entender-se-ão talvez melhor aquelas últimas palavras do
livro Vulcão (1994), que nos convidam
a bem acolher a nova publicação, até porque, «chegada a altura, havemos de
arder juntos». Como não perdoarmos uma puberdade assim, que até nós chegou, tão
fulgurante?!
Luís Miguel Nava foi brutalmente
assassinado em Bruxelas, a 10 de maio de 1995. Repousa desde então na cidade de
Viseu, insinuando-se junto de nós: «Lembro-me de o ver assim, todo ele tomado
pela força da folhagem» (Películas,
1979). Com ele, estamos no vento.
[Correio Beirão, nº 2]
[Correio Beirão, nº 2]