2014-01-31

LIMIARES DA ESCRITA - "A poesia nascente de Luís Miguel Nava: «O perdão da puberdade» (1974)"


LIMIARES DA ESCRITA 
A poesia nascente de Luís Miguel Nava: O perdão da puberdade (1974)

Anunciando abril, eis que outra revolução fazia caminho – a de uma poesia única, lavrante e visceral. Impresso em março de 1974, nas oficinas da Coimbra Editora, este perdão da puberdade desvela-se sob funda, impressiva e lancinante dedicatória à mãe: «À tua memória, Mãe, que ainda ouviste “Crise” e pouco depois subitamente me deixaste.» Assim entregue a coletânea («são teus, meu amor, pois a autocrítica também partiu contigo»), avultam ainda um marcante prefácio de Aníbal Pinto de Castro, anunciando uma plena maturidade que não tardaria muito a chegar, e as ilustrações de José Guilherme S. de Carvalho.
Luís Miguel de Oliveira Perry Nava, que nasceu em Viseu a 29 de setembro de 1957, desde cedo se mostrou poeta, tendo colaborado no jornal Geração de 60, órgão dos alunos do então Liceu Nacional da nossa cidade, onde viria ainda a ganhar, em 1969, um prémio de poesia em concurso aí realizado. A publicação do livro sobre que falamos aos dezasseis anos é prova exemplar do pioneirismo do então ainda Perry Nava.
Ultrapassada a tocante epígrafe do poeta inglês James Elroy Flecker, toda ela presa ainda à circunstância da morte da mãe, o primeiro poema da antologia recupera a força anteriana do ideal e leva-nos em galope por motivos anunciadores da grande poesia de Nava. Logo se nos apresentam, desde a composição homónima da titulação, as palavras deflagradoras de uma oficina económica e enxuta: “céus”, “relâmpagos”, “mares” e “trovões”, por exemplo, plantam-se desde sempre no lirismo naviano. E que promessa não se desvela nela! Leia-se:
- Na natureza se retratam céus,
expande-se nos céus a natureza –
e em cada relâmpago ou trovão
vejo e sinto, rompendo o espetáculo,
a profecia da eterna ambiguidade
de uma pitonisa, de um oráculo.
Qual a verdade do meu ser, ó Deus?
não me mantenhas sempre na incerteza!
Faz que eu possua ao menos o perdão
do que é talvez normal na puberdade.
 
Mas encostar o ouvido a esta obra nascente é também peregrinar pela cidade de Viseu, «pelas ruas, pelas quelhas», passando pelos cafés Infante e Paladium, por avenidas e rotundas assinaladas.
Vindo-nos à mão, esta poesia toma-nos os punhos e conduz-nos a profundo fanal. Olhando o concentrado complexo poético que Nava produziu, entender-se-ão talvez melhor aquelas últimas palavras do livro Vulcão (1994), que nos convidam a bem acolher a nova publicação, até porque, «chegada a altura, havemos de arder juntos». Como não perdoarmos uma puberdade assim, que até nós chegou, tão fulgurante?!
Luís Miguel Nava foi brutalmente assassinado em Bruxelas, a 10 de maio de 1995. Repousa desde então na cidade de Viseu, insinuando-se junto de nós: «Lembro-me de o ver assim, todo ele tomado pela força da folhagem» (Películas, 1979). Com ele, estamos no vento.
                                                                                                         [Correio Beirão, nº 2]

2014-01-29

[os rios correm]

[os rios correm]

era de macieiras e cheiros o tempo
sobre a erva os olhos cresciam lentos
festivos olhando o vigor dos frutos
a luz inundando a casa os celeiros
brilhantes sentados nos lugares
como se em flor luminosos fossem.

nos seixos dos dias os rios correm
explodem nos olhos nos poços da pele.

2014-01-28

[solar]

[solar]

é de pães e peixes o cabaz
que cai dentro da manhã
despertando as narinas
estendendo a luz na mesa
onde as últimas pombas
vibram no centro dos dedos.

como relâmpago o dia acorda
irrompe dos lábios ardendo
e ergue as bagagens do dia.


no sangue corre o sol o seu brilho.

[lição]

[lição]

chegado o dia ao termo mergulharás nas sílabas mais escondidas
e aceitarás a escuridão como um ditado de sábios muito antigos.

dentro da noite incendiarás os dias e todas as roupas sombrias
da água lustral docilmente descerás aos caminhos mais serenos.

junto ao mel observarás as abelhas e grave sorriso aos lábios virá.

2014-01-27

[corola de abismo]

[corola de abismo]

umas poucas vogais quase murmúrios
submergem o vinho os poucos frutos
dirás ser da tua carne o sabor do pão
e nada deixarás sobre a mesa – nada.

nem o fio de azeite alimentará a luz
nem as raízes tocarão o lugar da seiva
nem o desolado veio devirá rizoma
- os velhos ecos na casa são avisos.

nas mãos tomas a cidade o seu fim
a devastação acaricia-te a fronte
e as cicatrizes crescem-te na boca:

descarnadas os ossos serão vida.

2014-01-26

À distância, «a distância« (1969), de António Franco Alexandre

LIMIARES DA ESCRITA 
À distância, a distância (1969), de António Franco Alexandre


Quase a um quartel de distância, este é um dos maiores limiares de escrita da literatura portuguesa e um caso até de estranho esquecimento, não fora uma certa recensão de Eduardo Prado Coelho, nesse mesmo ano de 1969, ele também um intelectual nascente.
Composto e impresso em Viseu nas prensas da Éden Gráfico, Lda., o livrinho de poesia teve distribuição da lisboeta Publicações Dom Quixote. Franco Alexandre usava ainda o hifenizado António-Franco. E o silêncio foi quase avassalador.
Recolhendo poemas escritos entre outubro de 1963 e abril de 1969, a coletânea, abrindo com epígrafe seniana apelando à luta pela liberdade e pela justiça como «uma fiel dedicação à honra de estar vivo», integra vinte poemas na parte intitulada «Poética» e nove outros na partição «Discursos». É um complexo poético permeado por signos fundos, agudos e culturais, nomeadamente na poesia «discursiva» em que avultam epígrafes motivemáticas de nomes como os de Derrida, René Char, Serge Leclaire, Hölderlin e Norman Mailer.
a distância anuncia desde a primeira inscrição uma inquietação pela preservação da memória e o difícil caminho sobre essas cinzas («Construindo a distância cauteloso / das ruínas já pobres do passado a memória / inquieta de perder-se / das cinzas espalhadas sem cuidado / por sobre a mesa clara a mesa ausente / como um fio que se tece e se destrói», 1, p. 7). E é esse fio, peça tão funcional para toda a trama alexandrina, que nos conduzirá a uma das mais belas histórias da poesia portuguesa de linhagem decetiva. Sirva de exemplo o fascinante poema 3, da página 11:

Uma secura cresce no sangue dos dedos no sangue dos gestos
Uma ausência de nada o peso do céu grande
saber continuamente que partimos que nada nos prende
a não ser um desprezo dos dias que passamos
uma cólera cansada demais para gritar
e um universo inteiro ao esfarelar-se-nos nas mãos
recobre-as pegajoso de sinais.
                                                                           (dez. 65

E assim o título se explica, nesta distância de tudo, na negação e na dificuldade do conhecimento, na desconfiança de poder a palavra derrubar o silêncio, ele sim verdadeiramente luminoso: «e a cada instante morrem as palavras / corroídas de lepra / do gesto casualmente» (5, p. 15).
Inquietantes, intensos, brilhantes, os versos alexandrinos dir-nos-ão que «de muito pensar na morte havemos um dia / de esquecê-la» (6, p. 17) e que as melhores epifanias advirão do silêncio: «e nascer outra vez mas das palavras / que em silêncio me dizes fabulosas» (7, p. 19).
Refletindo-se, os poemas da derradeira parte são artes poéticas sobre os rituais do escritor e do leitor, um ouvido encostado aos gritos e aos silêncios, um fósforo mineral iluminando a voz que transformará o mundo em volta.
Uma longa marcha se iniciou então. Plantada no tempo ficou uma grande poesia que desde há dez anos não conhece voz. António Franco Alexandre nasceu em Viseu há setenta anos, lembram-se?
                                                                                                         [In Correio Beirão, nº 1.]

2014-01-23

[grito da terra]

[grito da terra]

sobre os cabelos a geada estende o frio
dentro do inverno. apaga-se o tempo
e sombria orla se entretece junto ao rio.
derramadas as sílabas em ritmo lento
vão correndo rubramente na memória
de ti reclamando a manhã o pêndulo.
outonal o corpo é uma antiga vogal longa
um aracnídeo esgotamento negras vagas
uma casa abandonada lua da morte…

2014-01-22

[tumular]

[tumular]

foram águas que correram nestes braços
onde agora a inútil aridez ergue o fanal
espalhando o gelo e a acidez dos ventos.

serão olhos o que eu vejo ou lâminas aí
vigilantes como cordas de execução…

uma procissão de corais vem-me à boca
e as serpentes dos pés a mim enrolam
as línguas dobrando os silvos agudos.

que pálpebras não serão morte e túmulo?

2014-01-21

a mão na morte

[a mão na morte]

breu como fundo poço a morte
essa estranha mão que assina
a mudez da seiva  e todo o brilho
direta ao coração mudou o tempo
da memória fez túmulo  e sombra
rompeu as veias e aos vermes as deu.

as mãos na terra a escuridão nos olhos
o mar avançando pelo corpo a morte
rompendo dos flancos aos ossos vindo
um mergulho lento no leito da terra
a humidade tocando a carne o sal breve
esticando a pele como ácido que rompe.


as raízes nisso o sopro da morte ainda.

2014-01-19

Eugénio


Entre os teus lábios [de EUGÉNIO DE ANDRADE]

Entre os teus lábios
é que a loucura acode,
desce à garganta,
invade a água.

No teu peito
é que o pólen do fogo
se junta à nascente,
alastra na sombra.

Nos teus flancos
é que a fonte começa
a ser rio de abelhas,
rumor de tigre.

Da cintura aos joelhos
é que a areia queima,
o sol é secreto,
cego o silêncio.

Deita-te comigo.
Ilumina meus vidros.
Entre lábios e lábios
toda a música é minha.  

2014-01-18

Pensamento assistido por René Daumal


«E eu que não tenho outra arma no mundo de César, salvante o verbo, que não tenho outra moeda, no mundo de César, salvante palavras, falarei?» [René Daumal, «A guerra santa», Lisboa, assírio & alvim, 2002, p. 39. Tradução de António Barahona.]

2014-01-16

Pensamento assistido por Manuel Tiago


«Mas quem na imensidão da estrela de seis pontas poderia adivinhar o que ia no espírito daquele preso fechado e só na sua cela de entre as quinhentas celas onde fechados e sós estavam quinhentos presos?» [Manuel Tiago, «A estrela de seis pontas», Lisboa, edições Avante, 1994, p. 215].

Salvaguardadas as diferenças, quantos portugueses não estão hoje fechados dentro e fora do país, sem esperança e abandonados?

2014-01-15

Pensamento assistido - August Strindberg


«E quando é que uma revolução se justifica?
Quando for bem sucedida.» [August Strindberg, «Breve catequese para a classe oprimida», Lisboa, Ulmeiro, 2003, p. 24].

2014-01-11

[aviso]

[aviso]

e agora será assim:
uma elipse romba
uma pura bebida
de sangue em mim
um lençol calmo
sobre estas rimas
o olhar de cera aí
soprando o coração
as vísceras breves
o quase canto…
neste chão o fogo
o lume ardendo
a chama em mim.

a vida sendo.