2013-03-25

"Os amantes clandestinos e outras inutilidades poéticas" de Manuel de Lima Bastos




Abrindo com cláusula eugeniana, logo o segundo elemento titular dispersa cataforicamente o mero fulgor amoroso - toda a inutilidade é poeticamente útil, di-lo a sabedoria da poesia.
Deitados ao tempo, estes amantes são o pó que ressuma na memória proveniente de antiga joeira sentimental, "como velhos peixes de olhos glaucos / imóveis na profundidade". Em ascese, todo o sujeito lírico haverá de sonhar com a "improvável visita do amor" - poderia o sonho não a afirmar como útil tautologia?
O "tempo não chega" dirá o poeta neste rito clandestino de cultuação da indenegável beleza presente em cada laceração feminina, em cada esquiva visão quotidiana da mulher real-transformada. Os semas utilizados são muitas vezes admonitórios da incapacidade do sujeito poético dar conseguimento às suas pretensões, lavrando em enigma essa busca de absoluto com comparações. condições e modos fugazes.
Cinérea é ainda a tonalidade expressiva. "Olhos tristes" e "luz sombria" são aqui mera exemplificação da isotopia dolorida que percorre todo o macrotexto.
Sobre o caráter terrível da palavra 'não', que Vieira eternizou, fala ainda esta poesia, diz esta voz de Manuel de Lima Bastos que percorre a impossibilidade e a finitude em fogo que é essência da logotetia. "Entretanto virá o tempo fazer" o seu trabalho para que estes amantes, isto é, esta singular poesia, rompam os lindes da clandestinidade.

2013-03-23

[sei um livro]

sem pressas o livro é uma ponte
o impossível nas tuas mãos devindo
como aranha cibernética disparando.

uma ponte que olhas secreta aberta
inaudível concerto que chega sempre
aos órgãos longínquos às vísceras.

na noite que escalo essa é a certeza
labaredas e braços decepados dentro
e aí uma faca univocal extraordinária
magnífica dor fendendo estes dias...

2013-03-22

Na morte de Óscar Lopes


Sem Mestres, o nosso mundo desaba, desaparece. Deixa-nos agora Óscar Lopes, esse príncipe da integridade, da argúcia, do profundo e múltiplo saber. Os seus ensinamentos literários modificaram perspetivas, abriram possibilidades, levaram-nos mais longe. Um homem assim não morre. Morreu hoje Óscar Lopes, no preciso dia em que nos abandona esse outro clerc que foi Chinua Achebe. 

2013-03-15

dos "Diários" de Al Berto - 26


"Que fatalidade escura me trazem os corvos de Agmat?" (p. 559)

أغمات , أغمات, turvas correm as águas. Assim no sangue a dor se expande, nevoeiro sobre a antiguidade branca. São labirintos as ruas e os vultos que passam estacam-se na bruma, incendiando-se antes das sombras. Tudo é miragem, o vinho suspenso entre a garrafa e o copo.

2013-03-14

dos "Diários" de Al Berto - 25


"Substituir o dia por um relâmpago." (p. 551)

Cruzar todas as águas. Ser aí raiz do esquecimento. Abrir os braços, por fim, contra o fogo. Ser cinza do dia e escorpião da noite. Todo o veneno disso, esta luz explodindo dentro de mim como um relâmpago. Um visível fim na sombra disso, no rasto fotológico que não ouso escrever.

2013-03-13

dos "Diários" de Al Berto - 24


"Sinto-me capaz de caminhar na língua". [p. 547]

Estranhamente o mundo abre-se. Todos os rumores, a familiaridade, o fluir das palavras no sangue. Na língua acerada explode o sal, a força da pele exulta, um mar de sílabas ouve-se como silêncio vindo. Na língua caminho. Ardentes, os caminhos são antigos, fundos. Neles me adentro.

2013-03-10

dos "Diários" de Al Berto - 23


"um livro de cinza sobre a cidade sem fim". [p. 542]

Sobre a cidade cai a peste e nem a noite oculta o rasto da devastação. Em cada esquina há fogueiras e, combustíveis, todos os corpos são cinza ao vento pousando brevemente no chão das praças. Rígidos, empedernidos, os corações esquecem a candura e rolam pesadamente como pedras. Carbonizado, o céu é um livro imenso parado no tempo. Aí afundado.

2013-03-09

dos "Diários" de Al Berto - 22


"incendeia o canto límpido do mundo" [p. 528]

Esfrega as mãos como pedras radicais: eis o fogo. Nascente, a voz de tudo ouve-se na atenção escassa, no polimento dos olhos, na limpidez do mundo que me impregna em cada canto. Uma crisálida nasce em ti nos ritos da pele, no espacejar do tempo, neste limbo de que sou. Assim as flores que rebentam nos dedos, este mar sacral em visita, estas pontes em que ardo.

2013-03-08

dos "Diários" de Al Berto- 21


"o albatroz foi devorando a rosa aérea da memória." [p. 527]

Um dia chega em que todos os sonhos declinam. Pouca resta da memória. Talvez uns farrapos mais espaço que tempo. Afundados como chumbo em copo de água. Isto, a fibra do tempo, as horas ardendo nos pulsos, infiltrando-se no sangue, roendo. Até as palavras faltam, por fim. Assim as cinzas, essa estranha morada para que vamos. Onde fomos um dia aí. E ninguém lembra.

2013-03-07

dos "Diários" de Al Berto - 20


" há um cedro em frente à janela do quarto". [p. 519]

Doloroso o dia espraia-se na pele do cedro e anuncia a perturbação de mim. Em volta, há todo um mar de dúvidas nas vísceras, uma sinfonia de líquidos bailando - a chuva. Visitando-me, o calor da melancolia acolhe-me e expulsa os cardos de chumbo. Nos vidros a chuva pinta um sudário cristalino. Na pele as tuas mãos trabalham todos os longes. Eis-me corpo no corpo. O plâncton aí. Como um peixe vou, nestas águas, nesse corpo sou.

2013-03-03

dos "Diários" de Al Berto - 19


"Não podemos saber o que é a vida sem olhar para um rosto." [p. 514]

É uma longa viagem essa, a do rosto. Torcicoladas, as linhas da pele são geodesia indisputável, nítida, misteriosa. A vida no rosto, o coração aí. Toda a diferença aí.

2013-03-01

dos "Diários" de Al Berto - 18


"escavar a terra até encontrar o silêncio do teu nome." [p. 494]

Escavar sempre dentro do silêncio. Ouvir o calor do nome, a voz íntima que se resguarda. Ser-te no corpo. Com todas as mãos tocar-te. Uma ave sobre a música vindo. Toda a fogueira nisso - na pele breve.