2011-02-28

degustação

comendo e dormindo o mundo
como se um vasto tapete azul
tombasse no sangue no branco
das páginas inconsúteis fundente
metal largando grossas pingas
no coração uivos dentro da alma.

2011-02-27

agonia

quem a bordo para alimentar a ânsia
se sob o pendão meras ruínas pairam
roendo as glórias os mistérios espraiam
os choros a decadência a velha errância
os muros com fungos o breu das almas
os reis presos na memória obliterantes
os novos tempos declinados as incertas
sortes de borco agonizando nas ondas.

2011-02-24

"O Corpo Os Corpos" de David Mourão-Ferreira


O teu corpo O meu corpo E em vez dos corpos
que somados seriam nossos corpos
implantam-se no espaço novos corpos
ora mais ora menos que dois corpos

Que escorpião de súbito estes corpos
quando um espelho reflecte os nossos corpos
e num só corpo feitos os dois corpos
ao mesmo tempo somos quatro corpos

Não indagues agora se o meu corpo
se contenta só corpo no teu corpo
ou se busca atingir todos os corpos

que no fundo residem num só corpo
Mas indaga sem pausa além do corpo
o finito infinito destes corpos

2011-02-21

frase da noite

"Cínico é aquele que sabe o preço de tudo, mas não sabe o valor de nada."


Oscar Wilde

2011-02-20

lalande

lágrimas furtivas caem do angelical rosto
e nem a brisa nascente suaviza o momento
porque as ondas da madrugada nuamente
descarnam o corpo a nudez aí escurecida.

2011-02-19

frase da noite

"Uma pessoa só tem o direito de olhar outra de cima para baixo quando está a ajudá-la a levantar-se."


Gabriel Garcia Marquez

2011-02-18

letzele

no velho casarão as baratas esperam a noite
enquanto na praça a jovem clarice aspira o ar
da manhã que percorre o seu corpo jovem
e se projecta nas janelas coloniais nas telhas
breves que recobrem as junturas do edifício;
antes do declinar do dia as tábuas do soalho
balançam como a jovem que bebe sodevosser
no jardim plantado lá longe no tempo fugido.

2011-02-17

visceral

nunca um dia assim fora fundo
nem um rosto decapitara a pele
como no certeiro dia do encontro
um vento nas veias a flor no peito
e no regaço mãos e pés adentro
uma massa viscosa víscera certa.

2011-02-15

os dias ardem

levantados ardem os dias
a chuva estuando na pele
um ardor subindo do vento
como sibilino braço amigo
contornando-te o peito...
então o concerto do mundo
és tu e de ti vai percutindo
um eco no dorso do tempo.

2011-02-13

poema para agostinho da silva

e agora há um hiato no tempo e não existem conversas assim ao vento]
como lençóis redemoinhando no bairro filosófico ideias rodopiando
nos dedos volteando nos pneus do velho volkswagen creme asserto
brotando dos pulsos da algibeira nascendo um turbilhão pensamento
aceso contra o rosado das paredes os fungos afundando nas fendas
o olhar felino do mestre condescendendo um gato plantado na mão.

2011-02-11

o lírio branco

no peito nu explodia um lírio um lago imenso aberto
reflectia as longas raízes as veias estuavam nas mãos
e os pássaros mais tenebrosos aí afluíam sequiosos…
que flor assim no peito contra as dores dos homens?

2011-02-10

"É impróprio ser famoso", por Boris Pasternak

É impróprio ser famoso



É impróprio ser famoso
Pois não é isso que eleva.
E não vale a pena ter arquivos
Nem perder tempo com manuscritos velhos.

O caminho da criação é a entrega total
E não fazer barulho ou ter sucesso.
Infelizmente, nada significa
Como uma alegoria andar de boca em boca.

Mas é preciso viver sem pretensões,
Viver de tal modo que no fim de contas
Venha até nós um amor ideal
E ouçamos o apelo dos anos que hão-de vir.

O que é preciso rever
É o destino, não antigos papéis;
Lugares e capítulos de uma vida inteira
Anotar ou emendar.

E mergulhar no anonimato,
E ocultar nele os nossos passos,
Como foge a paisagem na neblina
Em plena escuridão.

Que outros nesse rasto vivo
Seguirão o teu caminho passo a passo,
Mas tu próprio não deves distinguir
A derrota da vitória.

E não deves por um só instante
Recuar ou trair o que tu és,
Mas estar vivo, e sói vivo,
E só vivo – até ao fim.

Tradução de Manuel de Seabra

2011-02-08

Segredos da Ikea na última "Sábado"




Há segredos bem escondidos e aversões que a razão não explica. Ou explica-las-á o texto de Ana Taborda?

2011-02-07

um dia, em 1919

no verão de mil novecentos e dezanove em haysyn
um dia antes houve em que as metralhadoras ainda
não feriam a cidade nem chamas cortavam poemas
como no preciso dia o sangue que corria nas árvores
lembrava os corpos inteiros a venalidade circular
a ridícula paisagem do terror a cobardia dos fortes.

2011-02-06

Vieira é a língua portuguesa

Vieira é a língua e o seu bom uso. Poucos como ele foram tão longe na manipulação do sistema semiótico primário. Vieira nasceu hoje e nunca acaba de nascer.

2011-02-05

derrubação

derrubada uma porta sobre o estômago
o gonzo pouco mais é do que imagem
tortuosa de um mundo inabitável oco
de vidros quebrados nos intestinos
e cérebro ardendo em álcool breve…
de pé os olhos vazados contemplam.

2011-02-04

No dia de Garrett


Penso não estar devidamente consolidada a ideia de que Almeida Garrett é o primeiro prosador moderno da literatura portuguesa e o principal arejador da inscrição sintagmática. Afinal, que escritores contemporâneos não sorveram os mais notórios sortilégios no cadinho garrettiano? E depois de Garrett, quantos escritores menos ágeis e desempoeirados?
Há uma flecha perdurativa que vai de Garrett a Eça, entrando em Brandão, Soares, Vergílio, Pires e Tavares… Dito isto, é alarmante não serem as Viagens o mais fiel prontuário do bom uso da língua, afastadas que estão do convívio estudantil pré-universitário!
Garrett nasceu hoje. De 1799 até aqui o melhor Garrett nada envelheceu e resistirá para sempre aos ataques do parasitário descaso dos decisores políticos. E Garrett, para que conste, foi um político, um brilhante parlamentar e um intenso actor da nossa história moderna…

Gonçalo M. Tavares em entrevista no último "Magazine Littéraire", a propósito do prémio para melhor livro estrangeiro em França






2011-02-01

1º de fevereiro


nem rei nem lei dizia pessoa na prognóstica menção
de havermos uma nação derrocada enlodada adiada
e o tempo apurou a verdade nem tiros alguns ferem
os olhos ardentes o sonho do procriador cadáver até
irrompe pelos pulsos a verdade o sangue no chão
assinalando o tempo que há-de vir terreiro imenso
dentro da vontade um sonho que assassino não mata.