2009-05-27

Viseu, 12 de Agosto de 1948: Aquilino e a ponta do fio


Viseu rebentava debaixo do calor da tarde. Aqui ao lado, nem muito longe, Aquilino, em aposição indelével – e olhe-se o título deste texto -, inscrevia uma data, uma cidade e um nome em Cinco Réis de Gente, livro publicado nesse ano de 1948 e claro exemplo do bildungsroman que o Autor cultivou e recriou em, pelo menos, mais três casos maiores.
Aquilino está na literatura sob o signo de Aracne. Tecendo e bordando, em jeito de prosador sem par, o fio da urdidura passa e repassa por temas e motivos, por sítios e lugares, libertando marcos geodésicos e orientações. Na ponta do fio, a nossa cidade espraia-se desde sempre no fogo aquiliniano e esses sinais electivos, disseminados por uma obra vasta e perene, logo transbordam ao mais breve contacto.
Como Aracne, também Aquilino estava certo do seu talento, pouco se dando à influência. Pesa aqui o juízo de Pessoa, que, em carta a Adriano del Valle e referindo-se a Jardim das Tormentas e Filhas de Babilónia, refere serem os mencionados livros daqueles que “vale a pena ter” e que, não obstante a menor perfeição estrutural das narrativas face às de António Patrício, são obras de “um grande prosador”. Os assertos são de Pessoa e isso só pode ter um peso, e grande…
O relativo isolamento literário de Aquilino é, a meu ver, uma torre de marfim que o escritor construiu e desejou. “Sem família” no passado, dentro de uma teia poderosa, o futuro transmutou o passado e no espectro literário é comum ouvir-se falar de escritores “à Aquilino”, e isso é claramente uma posição original, superior, livre e desobrigada, com um claro-escuro que é vida e sobrevivência.
Dentro do mito, Aracne, hábil e auto-confiante, tece, borda, desafia, revolta-se, denuncia e quase morria pela sua perfeita arte de entretecimento, acossada pela naveta de Palas; junto ao mito que procria, Aquilino, urdindo formosa teia, em jeito sanchiano que assinalei na revista aquilino, continua a escrever depois da morte.
De Julho a Agosto de 1948, de Lisboa a Viseu, é este romance Cinco Réis de Gente, que Aquilino assinou no coração da cidade e que faço correr nos meus dedos, uma peça fundamental no festim da aranha aquiliniana: do desafiante começo à Francisco Sanches ao enigmático final de estranha contemplação há um tapete simbólico que nos fita convidando-nos à memória e ao sonho, “até nos sumirmos no côncavo do caminho”. Assim, como nesse início de 27 de Maio de 1963…
Viseu, ao pequeno-almoço de 22 de Maio de 2009

[Agradecimentos a Rui Macário, pelo espaço, e a Jerónimo Costa, pelo incremento e pela voz.]

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