SOBRE UM LIVRO DE ANTÓNIO GIL: UMAS POUCAS PALAVRAS DE UM EDITOR SEM NOME
Afinal, não houve um regresso a casa, como nos poemas de Rilke. E ainda bem, porque as palavras de uma homenagem devem ser as dos agentes principais, as dos poetas, só eles merecedores do afeto vindo de dentro, do avesso da pele e do calor do sangue - e quantas vezes as palavras se tingem dessa seiva!
Quase sempre os poetas essenciais cruzam com editores desleixados e ausentes. Eu sou um caso, reconheço, até porque verdadeiramente a edição me coube por sortilégio do Autor e por genética criativa que abraço, que profundamente estimo. Nada sei, pouco sei, no entanto, sobre os corredores do comércio da mercadoria espiritual. E essa é uma falha que a mim se deve e nada tem que ver com o editado, que melhor sorte merecia para o seu Canto desabitado, livro que é canto - canto luminoso, sábio e euforicamente sombrio.
Canto desabitado é o primeiro e, para já, único livro editado pela revista Ave Azul, e integra a colecção “Coisa que não existe”, nomeação que persegue as fundas pegadas de Teixeira de Pascoaes. Considero-o um livro fulgurante e intenso.
Ler poesia e escrevê-la carecem de um “oeil vivant”, como o diz um Jean Starobinski. E desse esforço produtivo resulta uma lição adveniente do poeta checo Jan Skacel: a de que “O poema está algures lá atrás / Há muito muito tempo que lá está / O que o poeta faz é descobri-lo”. Tal olhar e tal capacidade superabundam
Canto desabitado biparte-se em ruído silêncio e
Desalento, silêncio e desmemória são, enfim, as ambiências espirituais de uma luta entre a liberdade e o servilismo, como o parece comprovar aquele indagativo passo que sobre o leitor age:
…mas como, como trocarias tu, tuas soberanas tristezas por vassalas alegrias, tuas imperiais fraquezas, por servis valentias, tuas nobres incertezas por escravas garantias? (p. 24)
Nem seria preciso pensar em Leavis e Steiner para dizer que todo o acto crítico é avaliativo e resultante de uma escolha. E aqui resta ainda dizer que este acto hermenêutico é singularmente único: quantas vezes, afinal, um editor colhe assim uma oportunidade de dizer umas poucas palavras sobre um amigo fundo que é desde há muito um imenso poeta e um habitante de uma casa que sinto ainda como minha, como nossa?
O texto vai longo e, como diz Bloom, nós somos “o nosso único método” de leitura. Nada do que pudesse eu dizer teria interesse sem um trabalho inicial que a todos cabe. Ler poesia e os poetas é amar. Sem decifração total, os ecos gilianos são uma espécie de metal fundente que tornam transparente uma arte poética originalíssima: na oficina, in medias res, como na melhor épica, o Poeta recolhe no sangue o fulgor que rápido sobe à pele, em si espalhando o alarme de três décadas de verbo iluminado.
entre paisagens e noites de gasto esforço, de viagem em viagem, o escorço se fez curso, nas margens do vento, colho a vagem e a semente que recolhe ao solo que escolho. nele acampo e sonho a tenda que levanto: esse o campo, onde implanto o rebento que me reinventa e me suplanta… (p. 36)
Transformando-nos, bem se pode dizer que a poesia de António Gil prova existir a “fisiologia da leitura” entrevista por Manuel Gusmão: inscritas no corpo, as palavras do nosso poeta arrepiam e abalam. E assim fica tudo dito e tudo para cada um de vós, leitores, poder dizer.
É um arguto João de Araújo Correia quem,
Viseu, 17 de Maio de 2009,
50 anos que passam sobre a morte de Judith Teixeira
[Homenagem a António Gil, no dia 22 de Maio de 2009 - Escola Infante D. Henrique]
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