2008-09-20

"A cultura dos presépios" por Carlos Vieira e Castro

Já estava quase a deixar-me convencer: "se calhar Viseu é mesmo a cidade com melhor qualidade de vida, eu é que devo andar distraído". Aflorou-me este pensamento depois de ouvir dizer que o nosso presidente camarário tinha afirmado, numa reportagem televisiva sobre a passagem por Viseu da Volta a Portugal em Bicicleta, que a nossa cidade era das que mais dinheiro investia em cultura. Onde?... Não estava a ver... Felizes os que acreditam sem precisarem de ver! Eu bem queria acreditar. Fiz um esforço: compulsei a última edição do Via Rápida em busca das declarações do ministro da Cultura, quando se deslocou a Viseu, há cerca de três semanas, para inaugurar a Feira de S. Mateus. Também o ministro elogiou a qualidade de vida e a dinâmica cultural de Viseu. Estava visto, o defeito devia se mesmo meu, que não via...Continuei a ler: "O mote para a intervenção do ministro tinha sido lançado por Fernando Ruas, quando o autarca fez questão de salientar que "é difícil encontrar outra cidade de média dimensão com tanta actividade, nomeadamente na área cultural". "Deu como exemplos a conclusão, em Outubro, da recuperação da Cava de Viriato; a rede de museus que será "extremamente apelativa a quem nos visita"; a futura sinagoga e o museu militar na Rua Direita; o Museu de Arte Contemporânea projectado para a Quinta da Cruz; e os museus do Quartzo, no Monte de Santa Luzia, e o Museu de Várzea de Calde. Estes últimos com abertura condicionada à instalação dos conteúdos". Ah, afinal não via porque nada disto existia. Fernando Ruas falava de obras ainda não concluídas e de outras que ainda nem sequer começaram. Tudo se resume a uma questão de fé. Ando há muitos anos a ouvir falar do Museu de Arte Contemporânea na Quinta da Cruz, numa parceria com o Museu de Serralves, mas a verdade é que ainda não passou tudo de profecias.
Então, se a pujante actividade cultural de Viseu não pode resultar de obras futuras, deixemos a ficção científica e olhemos para o presente. O Teatro Viriato impõe-se à nossa observação. Aliás, Fernando Ruas começou mesmo por lhe chamar, nos primeiros tempos da sua interminável governação, um "elefante branco". Hoje, é a jóia da coroa. Passados quatro décadas de inactividade, o Teatro Viriato reabriu em 29.01.1999, cumprindo o seu papel de espaço de fruição cultural graças à criação, em 1997, do então ministro da Cultura, Manuel Maria Carrilho, do Centro Regional das Artes do Espectáculo das Beiras. Co-financiado pelo Ministério da Cultura e pela CMV, o teatro municipal de Viseu tem um orçamento global que andará à volta dos 750 mil euros, não tendo, ao que me é dado saber, recebido nenhum reforço durante quase uma década de existência. Recordo que Dalila Rodrigues, aquando do lançamento do seu livro sobre Grão Vasco, defendeu publicamente o reforço do orçamento do Teatro Viriato.
Com todas as limitações que lhe possam ser apontadas, a programação do Teatro Viriato veio por fim ao deserto cultural da cidade que não dava outra alternativa aos viseenses amantes da cultura que não fosse deslocarem-se a Tondela para se saciarem nesse oásis luxuriante chamado ACERT.
Para além do Teatro Municipal que podemos ver nós de política cultural em Viseu? O "Viseu Naturalmente"? A programação da Feira de S. Mateus? O Festival de Teatro Jovem? Tudo muito incipiente, pouco inovador, muito ao nível de qualquer vila ou cidade pequena. Então, onde está o investimento na cultura? A menos que seja verdade que na CMV se misture cultura com desporto... Aliás, há muitas associações culturais, desportivas e recreativas que de cultura pouco ou nada tratam. Na verdade, quase tudo o que mexe no campo da cultura, em Viseu, resulta da iniciativa de associações ou empresários particulares, sem intervenção ou apoio por parte da autarquia. Estou-me a lembrar das actividades promovidas pelo Café Lugar do Capitão, onde já pudemos apreciar boas exposições de artes plásticas, bons concertos musicais e espectáculos de teatro e de stand up comedy; ou o bar Lusco Fusco que também tem uma animação cultural, embora mais irregular; ou a excelente Galeria António Henriques. Mesmo o Cine Clube de Viseu, um dos mais prestigiados do país, que tem realizado óptimos ciclos de cinema, não tem merecido o reconhecimento e o apoio que mereceria, apesar de constituir a única alternativa à miserável programação dos cinemas dos centros comerciais, que vieram liquidar as duas salas de cinema que existiam na cidade.
Mas foi o próprio director do Teatro Viriato, Paulo Ribeiro, quem, durante a apresentação à comunicação social da programação do Teatro Viriato para o próximo quadrimestre, lançou um sério aviso aos viseenses, aos empresários e às instituições: "As cidades vão medir-se cada vez mais, não pelos equipamentos que têm, mas pelas capacidades criativas" (...) "A cidade tem crescido muito, mas se ela não der este passo também em termos de projecção criativa, será sempre uma cidade pequena, mesmo que cresça muito em betão”. E o coreógrafo desabafou: “Estou farto de ser desafiado para animar presépios".
Paulo Ribeiro, partindo do seu desapontamento perante os fracos apoios e parcerias conseguidas no ano passado, com o "Viseu a 15 do 6", admitiu mesmo levar iniciativas com aquela ambição para outras cidades de média dimensão que têm demonstrado ter maior capacidade para dinamizar iniciativas alargadas, apontando Guimarães como exemplo de cidade com uma mais afirmativa actividade cultural.
Pois é: Guimarães pode não ter tantos hipermercados e centros comerciais como Viseu, mas tem um centro histórico que é um exemplo de preservação e reabilitação arquitectónica e histórica. Desde há muitos anos. E isso também é cultura. Viseu tem um centro histórico a cair de podre. A
desertificação humana do centro da nossa cidade está a criar problemas até de segurança. Fernando Ruas anunciou a intenção de criar um sistema de videovigilância no centro histórico, mas o que verdadeiramente o centro da cidade precisava era de biovigilância.
"Viseu a 15 do 6" foi uma boa iniciativa, prejudicada pelo excesso de expectativas, pelo mau tempo, pela falta de experiência da cidade em acolher actividades desta dimensão. Mas esse é o caminho. Só que primeiro há que semear para depois se colher. A ACERT é um caso de sucesso porque anda há mais de trinta anos a formar público, sem facilitar na qualidade. Hoje consegue realizar um dos melhores Festivais de Músicas do Mundo do país, com os bilhetes mais baratos. O Festival de Músicas do Mundo de Sines, um dos melhores da Europa, começou há dez anos com entradas livres para atrair sete mil pessoas e hoje, com 50 mil espectadores, continua a facultar concertos gratuitos.
Também o Teatro Municipal de Vila Real anda há cinco anos a promover um Concertos de Verão, agora também Festival de Músicas do Mundo com 12 espectáculos gratuitos, de música e dança, de grande qualidade, com um orçamento de 90 mil euros (quase o triplo do de "Viseu a 15 do 6"). O mesmo acontece noutras cidades. Há que criar público. Há que investir. A Ópera de Viena faculta à população menos abonada de dinheiro lugares a 2,50 euros. Podíamos falar dos londrinos Concertos Promenade.
A Cultura tem de deixar de ser um mero arranjo de flores na mesa de betão do orçamento, para passar a ser o melhor indicador da qualidade de vida das cidades.
Cultura é mais do que a fruição passiva das artes e dos bens culturais; é, sobretudo, a transformação das pessoas em seres criativos, logo, mais livres.

Carlos Vieira e Castro (crónica no jornal Via Rápida, 4.09.2008)

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