POSOLOGIA [BULA]: MODO DE USAR
«Quando a peste
cerca a comunidade, a confusão e o salve-se quem puder entram na ordem do dia.
Mas não só. As pessoas atropelam-se, as pessoas morrem, as pessoas tentam fugir
(e algumas, efetivamente, fogem). Sobreviver ou não sobreviver, eis a questão.
Mas não só – repetimos. O ser humano é isto e é aquilo mas é também, às vezes,
um ser obcecado – pela criação, por exemplo. Pela meditação.»[1]
Meditação,
dizia. E por aí sigo. Olhando estas «inscrituras» de AlbuQ, tal como acontece
no poema de Luís Miguel Nava, apetece dizer:
Estou em Viseu, o tempo dá de súbito um salto para trás.
É um filme muito antigo, entre cujas imagens, devolvidas assim à
realidade, me movo hipnoticamente, em cada uma das coisas que me cercam
pressentindo o sangue de que, dentro de mim, durante todos estes anos se
nutriram. Cada contorno aqui é um sublinhado.[2]
Ou, então, apetece chamar para
esta mostração um outro grande nome da poesia portuguesa, António Franco
Alexandre, que, evocando a sua condição, diz:
vejo a pequena terra em que nasci
o sossego das grandes chuvas desabando no pátio e o respirar da casa
o rosto de minha mãe[3]
É, pois, esta exposição um filme
de sangue e o respirar de uma casa comum. Ou um regresso à condição, como diria
Aquilino Ribeiro. Os quatro andamentos aqui revelados desvelam uma ficha
antropológica, uma etologia, uma força erótica e um movimento, que, existindo
nesse lugar de nome Aquilino que Óscar Lopes tão bem assinalou, são também
clara conquista expressiva de AlbuQ. Os trabalhos plásticos aqui tornados
presentes, sendo mera possibilidade mostrativa de universo cinco vezes mais
lato, não são univocais, líticos, fechados. Antes criações dinâmicas, vindas de
lugares aquilinianos, aparentemente identificáveis, mas logo totalizadoras e dialogantes
com a enciclopédia de cada um, com as específicas gramáticas do mundo de cada
indivíduo. Todos estamos implicados neste universo aparentemente desaparecido e
ressonante na corrente sanguínea, como se todos dentro de uma mesma casa.
Neste regresso à condição que
celebramos hoje, fica um desejo e uma posologia: que este diálogo persistente e
consistente entre dois nomes – um dos mais alargados, sem dúvida, da cultura
portuguesa – convoque os espectadores emancipadamente, sem quaisquer linhas
virtuosas de leitura, para uma interação que a todos convém. Aquilino é brilho,
vitalismo e movimento transbordante. E esse é, felizmente, um filme que aqui
claramente vemos e incorporamos.
Criando, meditando, dizia há
pouco. Assim o vai fazendo o nosso artista. Sempre.
Viseu, 16 de maio de
2015
Martim de Gouveia e
Sousa