Este livro é para ser lido, passe a tautologia, porque não obedece ao ilegítimo interesse e à vontade individualista. Apetece mesmo, na esteira bíblica do Apocalipse, repetir as palavras do anjo, lançando de imediato o convite ao leitor: “Toma este livro, e come-o.”
Fica a movência como sendo o motivema desta grande aventura (reaventura, afinal, de muitos anos) pelos textos de Mestre Aquilino, “essa figura maior de Sernancelhe” e “também da literatura em prosa de todo o século XX português”. E, de facto, essa estrada de Damasco está anunciada desde a dedicatória. Como recusar, pois, um lugar no lugar que é lugar?
O tom prefacial da abertura é esclarecedor. A matéria dita antes anuncia ser este livro uma incisão da abjuração, até porque quem se acoita na penumbra de Aquilino, cedo regressa ao desafio da escritura e da doce movência sobre um seu émulo gigante dito o “maior, melhor e mais virtuoso prosador”.
É de andanças e deambulações que falamos. Daquelas que no rasto de Aquilino cruzam evidências e “semideiros” de Vila Nova de Paiva, Sernancelhe, Moimenta da Beira, Aguiar da Beira e Sátão, e nos transportam, em virtuoso renovo, aos sabores-saberes da mesa aquiliniana, sem que nesse estendal prandial falte sequer uma emocionante carta para além do tempo a Mestre Aquilino, em jeito posfacial, bem como uma inicial explicação contra o perfunctório a respeito da sorte do primeiro À sombra de Mestre Aquilino.
Repito, movência, isto é, errância. O autor, qual judeu errante, peregrina, repetidas “vezes sem conta”, por lugares electivos aquilinianos e deles colhe o espírito do artista, como se não houvesse morte e olvido. Citando Aquilino pelas ideias e nem sempre pelas palavras (e ainda bem), Lima Bastos diz desconfiar o autor de Estrada de Santiago de quem não se compraz “com os honestos prazeres da mesa”. Assim se legenda uma imagem da impossibilidade de se chegar ao prazer de quaisquer artes sem o verdadeiro sabor das coisas. Bem desconfiava Aquilino do carácter dessa gente sem esfera gustativa, afastada do génio e da criação!...
Múltipla e multívora, a proposição de Lima Bastos leva-nos a aprendizagens profundas que connosco chocam plenas de inconfutação: lembro aqui a magnífica aposição do intelectual feirense e nacional, pegando no dito materno, ser a morte de um idoso o ardimento de uma biblioteca.
O autor escava e aprofunda, lacera e fixa, desvelando quadros imemoriais e perdidos dos forrageadores da jeira aquiliniana. E aí as informações ingurgitam e reganham foros de cidadania, “novificando-se” e perenizando-se.
Desafiante, o juízo de Lima Bastos avança pela esfera institucional da canonização literária, não hesitando em avançar pela ideia de que “só mais duas ou três” obras poderão aspirar “a disputar-lhe a primazia” no século XX. E resulta muitíssimo bem o tom rendido ao engenho e ao esplendor de uma escrita cujos liames referenciais se foram perdendo no tempo dissoluto.
E, no fim, está aquela já mencionada carta a Aquilino que irrompe dentro do corpo, despedindo setas pelas veias. E volta-se ao início e ao sangue. Este livro, sombra iluminada, é um texto para ser comido. Poderia um autor desejar mais?
[jornal do centro, nº 458, de 23 de Dezembro de 2010]
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