2010-12-05

Intervenção de Jerónimo Costa na apresentação do livro de Manuel de Lima Bastos "De novo à sombra de Mestre Aquilino"


Sernancelhe aprofunda e alimenta incansavelmente o seu areópago das letras. Raro é o mês em que a equipa autárquica não nos reserve, de modo ecléctico, iniciativas de aturado esmero, alcance e valor cultural. Irradiando uma especial luz sobre um dos seus maiores vultos, a edilidade, pela mão do seu timoneiro José Mário Cardoso, tem feito de Aquilino Ribeiro e da sua celebrada obra, motivo bastante para constante louvor. Desta feita, as portas do Auditório Municipal abriram-se de par em par porque


Manuel de Lima Bastos está de novo metido na liça dos livros.

Convoca o mostajeiro da Beira Alta para, num assomo projectivo, nos comunicar que isto são mostajos, quais centelhas mortiças, nos frios do Inverno. Certo é que desde que o revelou [Outubro de 2009], o prelo já viu um livrinho de poemas, esbugalhando-se agora para o segundo volume da trilogia devotada a Mestre Aquilino. Portanto o mostajeiro da Feira, rijo de porte e de fruto não pode, com desculpa tão safada, desobrigar-se de continuar na senda de Aquilino, revelando-o.

Mas quem é Manuel de Lima Bastos? Sendo advogado, também é lícito que ampare a sua causa e lendo-lhe o Itinerário da vida de um Homem Comum, roteiro que muito recomendo, podemos aí colher retrato de corpo inteiro, onde, de alto a baixo, diz de si ter a presunção de pensar que nunca calcou o fraco para servir o forte, humilhou o desvalido para agradar ao poderoso ou sacrificou a consciência em troca de pecúnia. Parece pouco? Aqui mora quase tudo o que poderíamos desejar para fruirmos uns lampejos do Éden desfeito. Dadas as primeiras tintas na tela, tentarei não deslustrar o autor, nem afadigar o auditório.

Conheço o Dr. Lima Bastos por entre mim e ele se ter intrometido um dos maiores vultos da língua e da literatura portuguesa. Ambos labutamos na Confraria Aquiliniana, enquanto o seu espírito foi confrádico. Ambos, entre muitos outros, ajudamos a levar Aquilino ao Panteão Nacional. Já por essa altura – e até um pouco antes –, ciente das virtudes da mesa e do cardápio da Beira, Lima Bastos, uma e outra vez, ora em jornais, ora nas duas primeiras e únicas Letras Aquilinianas publicadas, se acomodou “à mesa com Aquilino Ribeiro”, fruto de intensa degustação que foi fazendo dos livros do escritor, lidos uma e outra vez, até lhe decorar os segredos esparsos por entre as páginas que lhe espicaçaram o olfacto e o gosto que foi debitando em crónicas à volta dos opíparos sabores.

O êxito das croniquetas, como gosta de lhes chamar, o gosto pelas comedorias e o muito que havia para divulgar abriram, em boa hora, o caminho ao manjar dos livros. Primeiro À Sombra de Mestre Aquilino, cuja edição e as saborosas histórias à volta da publicação, que agora se conhecem, haveriam de levar o opúsculo ao veredicto da Ordem dos Advogados que, por lhe reconhecer mérito bastante, o galardoou com o Prémio Literário com que anualmente, havendo valimento, destaca um dos seus. Se abriu mão dos proventos da edição, a safra do reconhecimento não lhe rendeu menor pecúlio, cimentando amizades dispersas e angariando novas – e de vulto – onde fica bem nomear, entre outras, as do Engenheiro Aquilino Ribeiro Machado e do Bispo Emérito de Setúbal, D. Manuel Martins, amigos que, pelo que se lhes conhece, todos gostariam de ter por perto.

Iremos então ao livrinho De Novo à Sombra de Mestre Aquilino, molhando a pena [electrónica] no tinteiro do afecto, como Lima Bastos faz questão de anunciar na dedicatória familiar que antecede o prefácio. E se um livro vive dos seus leitores, bem podemos afiançar-lhe que o que supõe na contabilidade de quem o lê, exactamente pelas razões inversas do que evoca: as de não aspirar ser mais que um amador ou um diletante da escrita, são, por mérito seu e de Mestre Aquilino, apesar dos tempos de penúria, larguíssimas centenas que também desmentem um qualquer jogo de ilusões que os deuses encaminham para os que, por deslumbramento, destinam perder. Com mais de meio século de convívio literário com o inventor das Terras do Demo, Lima Bastos traça-nos o itinerário por cinco concelhos, fortemente impregnados de saborosas histórias, imortalizadas na pena do escritor e aqui revividas e recriadas por alguém que, de as saber contar a preceito, mais se aparenta um companheiro do Mestre, metido nas suas tertúlias, do que um comensal impenitente da sua obra.

Por volta das trinta e cinco páginas e ainda mal joeiradas vão as Terras do Demo e já Lima Bastos se apreça a estender-nos o cardápio ensopado em champanhe, que há-de ser bruto, sendo afável no preço e ostentando no frontispício o busto e as terras do criador que segundo o próprio, não teriam visto sandália de apóstolo. Estamos no périplo que começa em Vila Nova de Paiva e o autor, como cicerone avisado e conhecedor, vai-nos descrevendo, sempre com o olhar crítico de quem não desculpa o abandono ou a incúria, os restos de património que ainda moram e resistem por aqui. Moinho de Pisões e a incompreensível peregrinação da sua cruz visigótica; o homem que, por Quintela, prometeu uma vaca a Santo Antão e lhe pagou com um galo, não esquecendo o mordomo da capela do santo, obstinado conversador e assertivo perguntador, de resposta pronta, dirigindo-se ao Santo: - Santo Antão, bebes? - Não bebes, pagas!

O elogio das bibliotecas, salientando as de Moimenta da Beira e Sernancelhe, referindo que é sempre com curiosidade alvoroçada que percorre(o) as estantes onde se perfilam os livros, com as suas lombadas ao alto, como se passasse revista a amigos que há muito não vê(ejo) mas que sabe onde os pode encontrar disponíveis, concluindo que ao entrar num destes santuários, não é difícil reparar que se sente mais espiritualidade do que em muitos templos. Em suma, para Lima Bastos os livros são como soldados que promovem a paz e a concórdia a par do conhecimento e da reflexão. E na senda dos livros seguimos para uma das suas mais ricas oficinas: a casa de Soutosa. Terra e casa a que Aquilino devotou tempo e afecto que aspergiu com parcimónia pelas suas obras. Aqui é ponto de paragem demorada. O autor de À Sombra de Aquilino, de tão conhecedor da obra do Mestre, ficciona nacos de prosa, tão ao jeito do escritor, como se lhe adivinhasse os pensamentos. Cito um deles: E de lá para cá e de cá para lá, dando voltas ao pátio para ver se lhe saltava à cabeça a palavra idónea que lhe andava a fazer negaças, recolhia às pressas ao seu escritório quando a sarabanda de um ventinho ponteiro já penetrava as defesas do pátio fazendo revolutear as folhas caídas e lhe provocava o primeiro arrepio.

Este é também um livro repositório da nossa história recente, recuperando aqui e ali memórias compreensivas do que foi a duradoura luta contra o Estado Novo; trabalho sociológico onde são visíveis as marcas de uma justiça indolente e comprometida com o litigante errado. Voltemos ao património e ao seu recorrente abandono. Estamos em Caria, temos à vista, como refere Lima Bastos, as miseráveis ruínas do Mosteiro de S. Francisco mas não é apenas a ruína do património, perante nós exposto (p. 81 e seguintes), segue o retrato de um Portugal, ainda e sempre, ocupado em fazer do mais fraco o bombo da festa em qualquer romaria. Vem isto a propósito de Francisco Rodrigues da Silveira, soldado e proprietário da desanexada Quinta do Ribeiro, outrora parte e agora vizinha do Mosteiro de Caria, cuja história de prisões arbitrárias e perseguição infame e pertinaz, Lima Bastos recolhe directamente da pena do Mestre e constitui um libelo fundado contra uma tal Casa da Relação do Porto. Sobre as farpas e críticas certeiras, só o livro nos pode elucidar.

Estamos a meio da jornada; passemos por Alvite, que se faz tarde e daí recolho, a propósito do então temperamento picaresco das gentes do lugar, um dito atribuído por Aquilino ao seu próprio pai e que hoje, tanto ou mais do que ontem, volta a ter carta de alforria garantida, podendo e devendo também ser remetido, com urgência ao governo e cito: Só há duas maneiras de não se ser pobre: ganhar muito ou gastar pouco. Arqueologia, Etnologia, Antropologia, História, são matérias que por aqui abundam e ilustram qualquer leitor que se arvore companheiro de Lima Bastos, calcorreando as muitas obras do Mestre. Mesmo antes de nos acolhermos a terras de Aguiar, vale a pena contrapor um parêntesis para uma vez mais meter na ordem o Dr. Lima Bastos, dizendo-lhe que são infundadas as suspeitas de não merecer honras próprias de exímio divulgador do legado de um dos melhores artífices e dos mais influentes escritores de língua portuguesa. Fazer ciência é insuficiente se não houver quem a possa e saiba divulgar. Muito antes das crónicas e dos livros, Lima Bastos peregrinou pela obra do Mestre para, apanhando-lhe o jeito, ser já um dos seus ilustres divulgadores e referência obrigatória em qualquer bibliografia passiva que se queira honesta.

Por outras geografias, chegamos a Cabicanca e a mais uma das histórias saborosas que mora nos livros de Aquilino. Recuperá-la em Lima Bastos ou ir à procura dela no alfobre do Mestre, há-de ser tarefa do leitor. O frade das Dores, protagonista, a mando do Malhadinhas, do excêntrico grito à côa, dispersor de lobos na serrania, tem boa teoria sobre o que em matéria de brincadeira se passa de telhas abaixo; mas isso, só lendo o livro se compreende. Entretanto Lima Bastos inventaria mosteiros, renova projectos, dá vida a personagens esquecidas ou postas em sossego em quantas obras o Mestre escreveu e dos escaparates ainda andam arredias. Dá voltas com o Elucidário em torno dos étimos onde mora uma identidade que nos leva pelas origens do que fomos (p.100), tudo pontilhado de histórias que prendem a nossa atenção, muito para além do tempo, que psicólogos avisados nos confidenciam não ser possível.

Sobre o Convento e Frei Joaquim de Sta Rosa Viterbo, que é patrono da Escola Secundária do Sátão, cito Georgino Marques: O convento de Santo Cristo da Fraga, este em particular, encontra-se hoje na mais indigna ruína, esventrado, vandalizado pelos homens e pelo tempo, transformado em verdadeira "terra de ninguém". Como podem homens e poderes desta terra esconder tamanha iniquidade e lamentável desprezo a que foi votado este monumento, por trás de cujas pedras, bem vivas, paira uma outra riqueza humana e cultural que teima em não desaparecer. Perante os restos mortais deste laborioso humanista, sepultado num qualquer sítio onde apenas se vê silvas e entulho, curvo-me com o maior sentido de respeito e gratidão pela grandeza deste Homem e dos que o acompanharam e contenho a minha revolta pela incúria de todos aqueles que voluntária ou involuntariamente se possam sentir responsabilizados por tamanha blasfémia. Portanto não está Lima Bastos só, na denúncia, restando acrescentar que o frade repousa no silvedo do convento, desde 13 de Fevereiro de 1822, e a sua obra (2 tomos do Elucidário), por efeito da maravilha da técnica, está acessível a qualquer um, em formato digital, no sítio da Biblioteca Nacional.

Vale também a pena recordar, pela raridade e pelo desuso dos princípios, o que Aquilino Ribeiro, na sua Geografia Sentimental afirma sobre o franciscano: Frei Joaquim de Santa Rosa de Viterbo era homem íntegro e de costumes invulneráveis à maledicência. Por isso não compreendia a torpeza do seu semelhante e erguia a sua voz contra abusos e prepotência, da cátedra mansíssima do seu glossário. E, a propósito do ELUCIDÁRIO, dizia o autor de O Malhadinhas: Quanto lhe devo, não o sei eu dizer. Que mais não seja o ELUCIDÁRIO, além de me abrir uma larga janela para o passado, explicou-me como um cicerone de museu a antiga província das Beiras.
A encerrar a viagem por Aguiar da Beira, mais uma história burlesca que reúne um santo e uma vaca. O nome do Santo? O santo mata vacas!

Por volta da página 131 e seguintes fez bem Lima Bastos corrigir as heresias de substância, semeadas na prosa de Luís de Oliveira Guimarães, fundamentalmente sobre a qualidade, variedade e abundância da mesa beiroa do escritor. A justificação é de antologia: Lima Bastos espreita o prefácio dispensado por Aquilino à obra de Luís Guimarães e, parecendo-lhe um telegrama, conclui pela distância entre a obra e o Mestre.
Sobre Manuel da Cruz Malpique de que Lima Bastos se socorre uma ou outra vez, referir apenas que tendo nascido em Nisa, deixou o nosso convívio em 6 de Setembro de 1992.

O livro De Novo à Sombra de Mestre Aquilino tem outras curiosidades como o bife à Leal, casado com umas fatias de presunto de Lamego e tantas outras, desde o encontro de Trotsky e Lenine no atelier de Leal da Câmara, até ao discorrer sobre as características do ventre Português.

A terminar este já longo périplo, o vaticínio de Lima Bastos sobre a obra do Mestre
Ficarão os seus livros como compêndios onde os vindouros poderão estudar a vida dos homens ao longo de tempos pretéritos mas dos quais sempre se evolará o suave perfume de eras cada vez menos reconhecíveis nestes dias em que se vai correndo atrás de coisa nenhuma es e perderam, quase de todo, os valores e as referências.

Lima Bastos encerra a sua obra com uma carta a Mestre Aquilino, mas isso são coisas íntimas que devem ficar entre o autor e os seus leitores, na certeza, porém, de que aí encontrarão, para além do requinte do enlevo filosófico, um texto do mais fino recorte aquiliniano, que bem poderia ter sido assinado pelo Mestre que muito poucos lhe notariam a diferença.

Por mim, que tive o ensejo e o gosto de lhe ler os pensamentos escritos em letra de forma, tomei por recompensa o tempo passado entre ambos.

Seguiremos para Viseu, Lamego, Paredes de Coura e Lisboa, lugares da geografia aquiliniana que rematam a trilogia anunciada. Ficamos à espera de os visitar, guiados pelo cicerone das letras que, à semelhança do Mestre, apoiado no condão da sua varinha mágica, nos constrói o enredo que só os grandes narradores de histórias conseguem edificar.

Sernancelhe, 27 de Novembro de 2010
Jerónimo Costa

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