2008-08-07

"Rádio, Altares e Milagres", por Marcia Frazão

Nas casas de minhas avós os altares se espalhavam por todos os cantos. "Nichos de recordações", Vitalina explicava a qualquer visita que perguntava. "Saudades de Portugal", Virgínia respondia, oferecendo ao curioso uma taça de ovos nevados.

As respostas chegavam aos ouvidos das visitas como excêntricas heresias. "Perversão carola", eu cheguei a ouvir de um vizinho de Vitalina, um senhor que batera à sua porta para reclamar da bagunça que as crianças da rua faziam em seu jardim e se assustara com o pequeno altar que Vitalina erguera sobre um pomposo rádio de madeira. Sobre ele, um enorme cachorro de porcelana branca, um copo de água, imagens de Nossa Senhora Aparecida, São Benedito, Iemanjá, São Cosme e São Damião, um anjo de asa quebrada, um retrato de minha falecida tia Nadir e uma foto de Francisco Alves, o cantor das multidões. Tudo isso sobre um escandaloso pano de crochê turquesa, arrematado nas pontas por exibidas rosas vermelhas.


"Elogio à cafonice", talvez dissesse alguém com rígidas normas de decoração. "Tropicalismo católico", certamente Vitalina replicaria. Se os altares eram ou não heresia, cafonice ou tropicalismo cristão, isso não vinha ao caso. O importante é que eles funcionavam. E como!


Se analisado por estudiosos de teologia, certamente o "funcionamento" também seria considerado uma heresia, mas, como nenhum teólogo jamais visitou as casas de minhas avós, os altares seguiam livres, operando pequenos (e grandes) milagres.


O altar fonográfico de Vitalina, por artes dos latidos do cão de São Lázaro, pela persistência de Nossa Senhora Aparecida ou pelos acordes afinados de Francisco Alves, endireitou a gagueira de Mauro, meu irmão. Na época muita gente se recusou a admitir que um rádio pudesse operar tamanho milagre. "Desconjuro, dona Vitalina, de onde já se viu rádio fazer milagre?", dizia Benedita, sua amiga fiel, benzendo-se.


O que as pessoas não percebiam é que, por mais carnavalizados e estranhos que fossem, naqueles altares residia "o poder do impossível", como Virgínia costumava dizer. Ali, entre imagens sacras, flores, retratos, velas, botões, medalhas, moedas, galos de cerâmica, notas de jogo de bicho, lembrancinhas de aniversário e quinquilharias, Vitalina e Virgínia se fundiam com o coração do mundo, o coração da Senhora dos Muitos Olhos e Braços.


E assim fundidas elas agarravam o tempo e dele faziam o que queriam. Esticavam o futuro, atravessavam o presente, cerziam o passado e faziam de conta que podiam voar e mover montanhas.


Um dia, sem muito espalhafato e poucas testemunhas, nasceram-lhes asas. Voaram e sumiram nas nuvens em busca da Mãe.


Vez por outra elas me visitam nos altares que me ensinaram a erguer...





Texto extraído do meu livro Guadalupe e as Bruxas publicado pela Editora Planeta.
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