RESUMO: Aurático, o livro revela-se um objecto único, que, como um corpo superior, sobrepuja os aspectos negativos e resplende sobre quaisquer despojos.
PALAVRAS-CHAVE: Livro – Poder – Literatura.
“Há livros que trazem em si um tal poder…”
(João de Barros, Presenças Eternas)
O livro é sonho e ilusão que com o homem cruza, retirando-o da agrafia e nele se somatizando. António de Sousa de Macedo, um dos grandes intelectuais do Seiscentismo português, utiliza, num dos seus inúmeros tratados morais e culturais, cerca de 170 vezes a palavra livro, não hesitando mesmo em apodar os autores de «graves» e em ver na língua um instrumento de dilucidação de discretos dísticos, emblemas e inscrições. Fundo, o livro e a língua permitem o acesso às «línguas dos mármores e aos bronzes mudos» (Macedo, 16). Mais de trezentos anos passados, que poder o do livro e que lugar para o autor?
Há escassos anos, numa feira de velharias e antiguidades que ocorre mensalmente em Vila do Conde, um casal de livreiros vindo do Porto estabeleceu a sua banca no lugar habitual. Ainda era cedo e a vendedora portuense, cansada da monotonia de início de dia, decidiu, como tantas vezes fizera, dar uma vista de olhos pelos livros e alfarrábios dos seus vizinhos, deixando ao marido o habitual “Volto já!...”. Habituada a distinguir o trigo do joio, ou não fosse ela também profissional assalariada num dos mais conceituados livreiros da Invicta, eis, que na exposição de uma colega vimaranense, um “livro” desencorpado e simples lhe prendeu a atenção. Lábil, juntou à encomenda mais um título e pagou, no cômputo, 5 euros por cada exemplar. Os seus olhos não enganavam: uma estranha aura recobriu-lhe o rosto e algo se passara naquela apressada e certeira compra. De regresso à banca em que deixara o marido, exultante, a senhora não se conteve que não dissesse, enquanto abanava energicamente um dos livros, ter ali valor para pagar o baptizado do neto. O cônjuge, rindo afectuosamente, zombou da tirada, lançando um altaneiro “Com isso?”. Em assentimento, a mulher abanou a cabeça, enquanto o homem assestava os olhos num livro mal amanhado e pouco apelativo, subscrito por José Maria dos Reis Pereira, de título As correntes e as individualidades na moderna poesia portuguesa, editado em Vila do Conde, a expensas do autor, no ano de 1925. A publicação era a dissertação para licenciatura na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra e o nome completo escondia ainda o do futuro José Régio. A espécie, raríssima, um in-4º de 59-V págs., deu para pagar o baptizado, passou por mais uma mão, ao que penso, e apareceu recentemente à venda por 2.000 euros, num alfarrabista do Porto. Ou seja, dos menos de 20 cêntimos por página da fonte, passando pelos quase 80 cêntimos atingidos na vendedora de Guimarães, a publicação atingiu agora os 31, 25 euros por página, valorizando-se, face ao preço anterior, em 30 euros e 45 cêntimos (por página, pois). Dizem-me ainda que alguém comprou há pouco os cinco primeiros números da revista Contemporânea, também por 5 euros, na Feira da Ladra de Lisboa.
O livro é assim um objecto único, fonte de riqueza e rendimento, alvo mesmo de um público atento e especialista. E, no entanto, não há aura sem reverso. Ainda ontem, imerso que estou em mais de 20.000 livros que me ocupam a pequena casa, choquei, como tantas vezes acontece, com uma das muitas estantes, loco caindo meia dúzia de livros ocupando a parte possível (impossível!) da prateleira. Um Rocha Martins, um Manuel Ribeiro, um Antero de Figueiredo, uma Judith Teixeira, um João Grave e uma Virgínia de Castro e Almeida jaziam em conjunto no corredor e uma memória súbita irrompeu-me no cérebro, trazendo-me as palavras de Gualdino Gomes que, em 1928, como Director da Biblioteca Nacional, organizou uma lista dos “doze mais notáveis literatos contemporâneos”, sendo escolhidos, pela ordem, Eugénio de Castro, Rocha Martins, Antero de Figueiredo, Júlio Dantas, Agostinho de Campos, Aquilino Ribeiro, João Grave, Albino Forjaz de Sampaio, Raul Brandão, Virgínia de Castro e Almeida, Virgínia Vitorino e Augusto Gil. À frente no tempo, quantos resistirão ainda e quem lembrará sequer o escândalo da literatura dissolvente em que os «guardiães da moralidade» envolveram Judith Teixeira? Prestes recolhi os livros caídos e depositei-os nos seus lugares, porque um livro tem sempre o seu lugar e nem o aviso dos muitos me prova o contrário, por mais que se clame contra o interesse dos escritores menos conhecidos.
Por um lado, não deixa de ser decepcionante lidar com o desânimo que expressões utilizadas por grandes nomes sempre causam, do género da ideia do livro como objecto museológico ou da hölderliniana afuncionalidade dos poetas em tempos de indigência; por outro, o livro é, continua a ser, a mais acabada representação mitológica da vida.
Aurático, o livro combate o reverso pela voz dos poetas que agora sigo. «Fiamo-me» mesmo na funda e certeira poesia que diz que o «conceito de livro é límpido» (Fiama, 2006) e que o “livro alucina o exegeta” (Fiama, 2006), porque os livros belos “ardem e ressuscitam / com a força das próprias árvores vivas, / como aquelas dos hortos de Alexandria / de onde renasceram os textos / que entre o pergaminho e o papel, / guardaram para a Europa as mãos magníficas / dos Árabes e dos Gregos mortos.” (Fiama, 2006) E assim a poeta é o pó e os livros: “Assim os meus versos são o meu pó / na poeira dos livros já delidos.” (Fiama, 2006)
Em Luís Miguel Nava (Nava, 2002), o livro irrompe («maravilhado de água surges entre / livros») brilhando “como / se fosse o mar que nele ao rebentar depositasse o texto” ou forçando através dos “interstícios do mundo” até chegar às mãos do leitor, esperando dele a benevolência antes do ardimento comum.
O livro é um objecto extraordinário. A favor do conhecimento necessário há sempre um livro que haveremos de encontrar. Os livros são caminhos inscritos contra a cidade. Não espanta, pois, que a gordura da pólis expluda no centro ígneo da usura: o poder invoca o fogo, porque não pode domar a “arca do espírito”, desarticulando o manto comunitário, como se, no sentido cervantino, as letras levassem os homens às chamas. É, no entanto, de ti, leitor com memória da biblioclastia da história, que nasce em cada dia de leitura, vida por sobre a morte de cada círculo hermenêutico por ti traçado, um livro sempre incombustível. Inscrito e correctivo, o texto livresco manchado pela negrura da imprensa ilude a diferença epocal e abraça a rede aurática do saber, não obstante o avanço das tecnologias da informação que apertam contra a cidadela que sempre resiste. Resistirá sempre? O hipertexto à distância do dedo é suficientemente informe e gigantescamente disforme, plástico e refractário ao sentido, para que, mesmo que assinado, divirja da tonalidade anódina do anonimato. Incomensurável, vai ser sonegado pelas viroses e pelos fungos do esquecimento – em volta, agora vejo, aglomeram-se os ácaros para o manjar digital. Não temo, pois, que o “interland” da literatura, com inscrição remota e sempre moldável, feneça agrilhoada pelas estocadas do internauta. A cidade abre-se à leitura, agora que a «máquina hermenêutica» carece de afinação e de um pouco mais de silêncio. Aliás, muita da crise propalada (índices de leitura, de alfabetização, de cultura…) tem origem nos demagogos que tomaram as universidades e as escolas, destruindo os textos primigénios em prol das leituras didácticas, das “fotocópias” fundamentais, da informação acessória, do discurso secundário… Abandonando os textos à escavação ocasional, fragmentária, transforma-se a literatura em burocracia, em vanidade, esgrimida sumptuosamente pelos guardiães da impostura que impõem Dan Brown e não conhecem António Franco Alexandre ou Daniel Faria. Eis o perigo da ilusão da literatura: deseja-se menos ao lado e muito mais ao centro. Outras vezes, atira alguém com um rol de títulos que nunca leu. Sem lisura intelectual, a morte do livro vai saindo à rua. Quem lê, hoje, um livro completo? Quem vem matar o livro com a sua vaidade? Ao fim da escuta, as prensas não param quando o objecto celebrado é um livro de um nomoteta, que existe para ser lido do princípio até ao fim. Desprendidas as letras do objecto maior, ei-las no mundo e na cidade à espera de serem lidas. E assim lemos o mundo, com Deleuze, olhando a fragmentada cidade que arde. Esta é a nossa cidade. Com uma memória activa, ela reescreve-se, construindo-se em cada momento por mão irreconhecível, assim se condenando o cidadão a uma leitura «in fabula» (Flor, 2004).
A língua de pedra da cidade solta um queixume junto à pele. O texto do aglomerado, já ilegível, dói-se na superfície do granito que luta contra o ácido dos dias novos. Opaco e cinzento, temo, em cidades às vezes ditas “jardins”, que a pressa continue a debilitar as zonas verdadeiramente inscritas. A balbúrdia da pregnante intervenção, quase sempre obra sem ideia, convoca uma tensão insuperável: ou o antigo burgo era nuvem sem espessura ou o ritmo alucinante dos golpes cegos e desrespeitadores do cidadão é ferida incisa na memória que se destrói. Pego na cidade desde o bolso e aproximo-me dos seus signos agudos. Rodeio-lhe a aspereza com o calor da inscrição. Leio o texto desalentado pela memória destruída. Não ler depressa, antes devagar. Assim, na algaravia do texto das nossas cidades. Fora dela, neste tempo de não-inscrição (José Gil), limpamos o corpo da aparência à sombra da textualidade. O texto já não habita a cidade. Leia-se, pois, contra a cidade, praticando em cada dia que nos reste a cultura do objecto impresso, partilhando-o, no sentido de Brecht, até porque a unidade social mínima não é um homem. Antes dois ou mais…
Livro, aura e reverso, pois. Assusta mesmo a admonição de Fiama Hasse Pais Brandão, que diz:
Toda a literatura está não lida.
Toda a literatura foi traída.
E, além de sua natureza sempre nula,
no futuro mais será perdida.
Também o papel, que hoje
em belíssimas folhas se folheia,
entre os dedos humanos,
será roído um dia.
Encoste-se o texto à pele e temperem-se os ouvidos com o “modo de ler, de acender um texto / de amor nos ouvidos”, como o prescreve Luís Miguel Nava em Películas. Mais pacificado, um eco de Fiama afirmará a misticidade do livro. Al Berto, com quem termino, deixa-nos no poema “Livro antigo” (Al Berto, 1991) uma poderosa imagem da força transfiguradora do livro, esse objecto único que nos faz sonhar como nenhum outro:
violetas secas entre páginas de um livro
onde em tempos anunciaram o amargor da noite
e a humidade tremenda das insónias
o mar
o mar ao longe
debruça-se então para o interior do livro
lê qualquer coisa sobre o coração dos líquenes
ou deambula de sílaba em sílaba onde
os dedos se mancham de tinta e no cérebro
ergue-se uma planta de cinza noite adiante
fechou o livro ao amanhecer
era como se tivesse envelhecido séculos
com as violetas
fecha a persiana e adormece
Assim se afirma a literatura. Lê-la, em aura e reverso, é o trabalho do leitor que não denega a lição de João de Barros, em Presenças Eternas, de serem as obras literárias «voos cortando o espaço, desabrochando no espaço, de verdades vitoriosas e de aspirações aladas» (Barros, 1943).
Referências Bibliográficas:
AL BERTO (1991). O medo. Trabalho poético 1974-1990. Lisboa: Contexto / Círculo de Leitores.
BARROS, João de (1943). Presenças eternas. Lisboa: Livraria Sá da Costa – Editora.
BRANDÃO, Fiama Hasse Pais (2006). Obra breve. Poesia reunida. Lisboa: Assírio & Alvim.
FLOR, Fernando R. de la (2004). Biblioclasmo. Por uma prática crítica da lecto-escrita. Lisboa: Livros Cotovia.
GIL, José (2005). Portugal, hoje. O medo de existir. Lisboa: Relógio d’Água.
NAVA, Luís Miguel (2002). Poesia completa (1979-1994). Lisboa: Publicações Dom Quixote.