2007-06-20

"Cariocas e ostras", por Marcia Frazão

Quando as primeiras palavras brotaram na minha boca, o "s" saiu aconchegado e embrulhado dentro de uma ostra; um "s" redondo e chiado como as ondas de Copacabana. A princípio não me dei conta do clausuro aquático de uma letra e pensei que todos nós, brasileiros, éramos filhos de Afrodite e Posídon....
O tempo foi passando dependurado no bonde que ligava a cidade ao Flamengo. Vez por outra era era cortado por um negro táxi guiado por Manuéis ou Joaquins. Táxis que se pegava no ponto e que tictavam como relógios escondidos bem atrás do taxímetro... O Rio era então uma enorme ostra que arredondava os "s" e badalava sinos nos bondes e tictava relógios nos taxímetros...
Nesse tempo não havia tempo para sermos violentos e inseguros. A violência não combinava com os ruídos, e vamos convir que não se pode ser inseguro dentro do aconchego das ostras. E mesmo quando o mesmo ultrapassava os trilhos dos bondes e assumia a face do improvável, mesmo assim o inesperado, por mais bizarro que fosse, travestia-se de romance. E foi assim, entre o desvio do mesmo e os travestimentos, que me deparei com a primeira violência : A Fera da Penha! Mas as ostras teimam em transformar as impurezas em pérolas, e a fera, por acaso ou sina, transformou-se em romance. A professora feiosa, leitora de fotonovelas e romances, confundiu-se entre a piedade e o ódio. A vítima, uma menina de cachinhos negros, num piscar de olhos virou santa.
Depois, ávida pelos dramas e santificações, vi Mineirinho, um bandido baixinho e simpático, vestir a roupa de Robin Hood e se juntar ao bando dos desvalidos. Sucedeu-lhe Cara de Cavalo, o centauro. Naquela época éramos ainda amantes do belo e costumávamos nos divertir no carnaval. Costurávamos estrelas no céu e os barracões tinham tetos de estrelas. Dizíamos bom-dia aos vizinhos e desconhecidos e nunca esquecíamos os nomes dos porteiros. Éramos pérolas polidas pela polidez das virtudes. Não éramos ingênuos. Não, foi muito depois que a generosidade travestiu-se em ingenuidade. Éramos gentis e redondos como as pérolas. Tínhamos o dom de transmutar o feio e torná-lo romance.
O tempo passou e pensamos que ele correu depressa demais. E começamos a correr como loucos. Esquecemos o bom-dia e os romances. Caímos na armadilha.
Mas... o Rio continua lindo, esperando pelos romances. E aos pessimistas ele só diz: só as pérolas conhecem o segredo da transmutação do impuro!
Marcia Frazão

obs: se vc gostou do texto (tá legal, é chantagem mesmo) dá uma lidinha em meu novo livro, O Armário da Bruxa, editora Planeta.

3 comentários:

isabel mendes ferreira disse...

"Éramos gentis e redondos como as pérolas. Tínhamos o dom de transmutar o feio e torná-lo romance."


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obrigada Martim.


de pérola.

Mário Casa Nova Martins disse...

Martim, a Márcia?

Ab.
M

hfm disse...

Gostei de ler a Márcia que conheço de outras andanças.