2015-11-19

Inscrituras de AlbuQ por Moimenta da Beira - mais Aquilino...


INSCREVA-SE UM CERTO MODO DE USAR: Aquilino por Albuq [BULA 2]

Convocando-nos para um mundo transmigrado e aberto a múltiplas apropriações, o extenso trabalho de Pedro Albuquerque sobre a obra de Aquilino Ribeiro é, indubitavelmente, um dos mais consistentes fenómenos de dialogismo artístico entre um escritor e um artista plástico. Sobre Aquilino e o seu mundo, o artista viseense inscreveu no devir temporal cerca de duas centenas de trabalhos. Um quinto deles formará o núcleo da exposição que se deixa em proposta, sabendo nós que esta viagem é um regresso à nossa condição, à condição do que somos. Olhar estes trabalhos, entrecruzá-los com a facúndia aquiliniana, é também privar com um espaço de localização que é nosso e importa conservar, interpretar e recriar. São lugares fundos aqueles que se insinuam vindos da mestria de Aquilino até às incisões criativas de Pedro Albuquerque – este é um espaço de verdade e ilusão.
Já o disse, mas repito-o: É esta exposição um filme de sangue e o respirar de uma casa comum- um regresso à condição, como diria Aquilino Ribeiro. Os quatro andamentos aqui revelados desvelam uma ficha antropológica, uma etologia, uma força erótica e um movimento, que, existindo nesse lugar de nome Aquilino que Óscar Lopes tão bem assinalou, são também clara conquista expressiva de AlbuQ. Os trabalhos plásticos aqui tornados presentes, sendo mera possibilidade mostrativa de universo cinco vezes mais lato, não são univocais, líticos, fechados. Antes criações dinâmicas, vindas de lugares aquilinianos, aparentemente identificáveis, mas logo totalizadoras e dialogantes com a enciclopédia de cada um, com as específicas gramáticas do mundo de cada indivíduo. Todos estamos implicados neste universo aparentemente desaparecido mas ressonante no sangue, como se todos estivéssemos dentro de uma mesma casa.
Possam pois os espectadores agir emancipadamente, sem quaisquer linhas virtuosas de leitura, para uma interação que a todos convém. Aquilino é brilho, vitalismo e movimento transbordante, mesmo que pontualmente a vida levasse o Mestre a uma certa descrença – lembro, por exemplo, aquele ano de 1920 em que Aquilino, em carta a Álvaro Pinto[1], confidencia: «A vida aqui tornou-se insuportável; insuportável para mim e mormente para mim vilipendiado como me sinto. […] A literaturasinha nacional cada vez mais trôpega, de resto como tudo. Isto tornou-se um inferno. V. é feliz em estar longe. A única solução dum homem honesto e digno é fugir». Nunca esta frustração, de sabor tão moderno, povoou, no entanto, a obra literária de Aquilino e, em propriedade, o que sempre ressuma é uma indesmentível força vital.
Força essa que, diga-se, uma outra «central de energia» de nome Albuq, qual cadáver adiado procriando, retomou e para nós baralhou sob o preceito da ambiguidade produtiva. Aliás, estas albuquianas «inscrituras» servem para nos descobrirmos nas incisões que repetem, como no poema de valter hugo mãe, uma incrível relação:
aos traços
traço a traço
envelheci
tenho os desenhos
servem para alcançar o
tempo do mundo
incrível idade do artista.[2]

Assim Pedro Albuquerque no tempo do mundo, dando-se, incrivelmente dando-se! Friso, e já o tinha dito a um bom par de amigos, dormindo com deus e um navio na língua, para repetir uma belíssima intitulação de Eduardo White[3], Pedro Albuquerque, o velho e defunto AlbuQ procriante, é assim um cineasta[4] da pintura, um escrevivente do movimento que é a vida, indo sempre mais além.
Expodemo, Moimenta da Beira, 25 de setembro de 2015
Martim de Gouveia e Sousa



[1] Carta de Aquilino Ribeiro a Álvaro Pinto,
[2] valter hugo mãe, egon schiele, auto-retrato de dupla encarnação, Porto, Associação dos Jornalistas e Homens de Letras do Porto, 1999, p. 23.
[3] Refiro-me a Eduardo White, Dormir com deus  e um navio na língua, Fafe, Labirinto, 2001.
[4] Não me parece descabido aplicar a Pedro Albuquerque essa característica única de fixar o movimento e todas as particularidades cinéticas, um tanto ao jeito do que Eisenstein fez para El Greco. Cf. S. M. Eisenstein, El Greco, cineasta, Barcelona, )intermedio(, 2014,

2015-11-10

Cunhal escritor no dia do seu nascimento

Álvaro Cunhal por João Abel Manta (2008)

Um escritor não nasce logo, não cessa de nascer. Maria Alzira Seixou guindou, desde há anos, Manuel Tiago a uma posição bem acima de meritória; Urbano Tavares Rodrigues, por exemplo, dedicou-lhe mesmo um volume de ensaios, escrutinando nele características apaixonantes de excelência literária.Não acabando de nascer, neste dia profundamente simbólica para o sonho e a mudança, é Manuel Tiago, e o mesmo é dizer Álvaro Cunhal, um profundo escritor vindo, como o diria o subtilíssimo Urbano Tavares Rodrigues, «da grande seara da dignidade conquistada».
Lembra o evento uma outra deriva da doxa literária - a de todos quererem ser muito escritores, muito amigos até da literatura, laborando em coutadas de interesses pouco límpidos, muito opacos. Dizia António Franco Alexandre, imenso poeta nascido em Viseu, que com muita dificuldade se via escritor, se dizia escritor. Ainda assim, quantos escritores tão mais escritores que Manuel Tiago? Que criadores literários tão adentrados na beleza feminina?