INSCREVA-SE UM CERTO MODO DE USAR:
Aquilino por Albuq [BULA 2]
Convocando-nos para um mundo transmigrado e aberto a
múltiplas apropriações, o extenso trabalho de Pedro Albuquerque sobre a obra de
Aquilino Ribeiro é, indubitavelmente, um dos mais consistentes fenómenos de
dialogismo artístico entre um escritor e um artista plástico. Sobre Aquilino e
o seu mundo, o artista viseense inscreveu no devir temporal cerca de duas
centenas de trabalhos. Um quinto deles formará o núcleo da exposição que se
deixa em proposta, sabendo nós que esta viagem é um regresso à nossa condição,
à condição do que somos. Olhar estes trabalhos, entrecruzá-los com a facúndia
aquiliniana, é também privar com um espaço de localização que é nosso e importa
conservar, interpretar e recriar. São lugares fundos aqueles que se insinuam
vindos da mestria de Aquilino até às incisões criativas de Pedro Albuquerque –
este é um espaço de verdade e ilusão.
Já o disse, mas repito-o: É esta exposição um filme
de sangue e o respirar de uma casa comum- um regresso à condição, como diria
Aquilino Ribeiro. Os quatro andamentos aqui revelados desvelam uma ficha
antropológica, uma etologia, uma força erótica e um movimento, que, existindo
nesse lugar de nome Aquilino que Óscar Lopes tão bem assinalou, são também
clara conquista expressiva de AlbuQ. Os trabalhos plásticos aqui tornados
presentes, sendo mera possibilidade mostrativa de universo cinco vezes mais lato,
não são univocais, líticos, fechados. Antes criações dinâmicas, vindas de
lugares aquilinianos, aparentemente identificáveis, mas logo totalizadoras e
dialogantes com a enciclopédia de cada um, com as específicas gramáticas do
mundo de cada indivíduo. Todos estamos implicados neste universo aparentemente
desaparecido mas ressonante no sangue, como se todos estivéssemos dentro de uma
mesma casa.
Possam pois os espectadores agir emancipadamente,
sem quaisquer linhas virtuosas de leitura, para uma interação que a todos
convém. Aquilino é brilho, vitalismo e movimento transbordante, mesmo que
pontualmente a vida levasse o Mestre a uma certa descrença – lembro, por
exemplo, aquele ano de 1920 em que Aquilino, em carta a Álvaro Pinto[1],
confidencia: «A vida aqui tornou-se insuportável; insuportável para mim e
mormente para mim vilipendiado como me sinto. […] A literaturasinha nacional
cada vez mais trôpega, de resto como tudo. Isto tornou-se um inferno. V. é
feliz em estar longe. A única solução dum homem honesto e digno é fugir». Nunca
esta frustração, de sabor tão moderno, povoou, no entanto, a obra literária de
Aquilino e, em propriedade, o que sempre ressuma é uma indesmentível força
vital.
Força essa que, diga-se, uma outra «central de
energia» de nome Albuq, qual cadáver adiado procriando, retomou e para nós
baralhou sob o preceito da ambiguidade produtiva. Aliás, estas albuquianas
«inscrituras» servem para nos descobrirmos nas incisões que repetem, como no
poema de valter hugo mãe, uma incrível relação:
aos
traços
traço
a traço
envelheci
tenho
os desenhos
servem
para alcançar o
tempo
do mundo
incrível
idade do artista.[2]
Assim Pedro
Albuquerque no tempo do mundo, dando-se, incrivelmente dando-se! Friso, e já o
tinha dito a um bom par de amigos, dormindo com deus e um navio na língua, para
repetir uma belíssima intitulação de Eduardo White[3],
Pedro Albuquerque, o velho e defunto AlbuQ procriante, é assim um cineasta[4]
da pintura, um escrevivente do movimento que é a vida, indo sempre mais além.
Expodemo,
Moimenta da Beira, 25 de setembro de 2015
Martim
de Gouveia e Sousa
[1] Carta de
Aquilino Ribeiro a Álvaro Pinto,
[2]
valter hugo mãe, egon schiele,
auto-retrato de dupla encarnação, Porto, Associação dos Jornalistas e
Homens de Letras do Porto, 1999, p. 23.
[3]
Refiro-me a Eduardo White, Dormir com
deus e um navio na língua, Fafe,
Labirinto, 2001.
[4]
Não me parece descabido aplicar a Pedro Albuquerque essa característica única
de fixar o movimento e todas as particularidades cinéticas, um tanto ao jeito
do que Eisenstein fez para El Greco. Cf. S. M. Eisenstein, El Greco, cineasta, Barcelona, )intermedio(, 2014,