2014-04-17

LIMIARES DA ESCRITA - A ponte: «as cinco regras do equilíbrio» (1959) de José Valle de Figueiredo

[fotografia retirada de O Beirão Online]

LIMIARES DA ESCRITA
A ponte: «as cinco regras do equilíbrio» (1959) de José Valle de Figueiredo

No princípio estava a ponte. E um corpo sobre. Ou melhor, a ponte era o corpo. E do corpo a ponte. E a nudez analítica desta crónica nasce assim, kafkianamente, da celebérrima parábola «A ponte», que é texto que fica e sempre nos obriga a mágico pestanejamento. Parabolizo: «Eu estava rígido e frio, era uma ponte, lançada sobre o abismo». Mas este era o início pedindo um fim: «Uma ponte que se volta! Ainda me não tinha virado, e já me desmoronava, desmoronava-me e despedaçava-me, espetava-me nas pedras aguçadas que sempre me tinham olhado, tão pacíficas, do meio das águas em fúria». E esta a magia de Kafka! E dela parto, em tradução de João Barrento, para a grande poesia, aqui nascente, de José Valle de Figueiredo.
Com capa de Manuel Varella, «as cinco regras do equilíbrio» de José Valle de Figueiredo, sob chancela das Edições Cidadela, serão desde o dealbar uma ponte inexpugnável de equilíbrio – assim se diz nos múltiplos sinais que são o título, as dedicatórias familiares, a palavra autoritária de Philéas Lebesgue, os signos de amizade e a submissão à sageza chinesa.
Sendo aquilo que ousava ser, este livro primicial de palavras aguçadas como as pedras da estória de kafka lavrava na história da poesia portuguesa um legítimo lugar – que outra ponte assim tão clássica e moderna? Desfibrando a agudeza dos signos linguísticos, intersetando neles as relações e o vetores culturais, explorando os significativos cratilismos, o Poeta vindo a nós no quase início dessa década devoradora dos sessentas desvelava ser uma clara central de energia.
José Valle de Figueiredo nasceu, na nossa circunstância, em 1942, ali por terras de Tondela, vindo a desenvolver o seu múnus cultural por várias regiões do país. Grande poeta, mas também editor, conferencista, divulgador, diretor de publicações, doutrinador, crítico literário, investigador e homem de cultura, Valle de Figueiredo viu em 2006 ser recolhida a sua poesia em «O seu a seu poema (1959-2002)» (Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda). Uma dúzia de anos se acrescentaram já à usura do tempo tornando essa obra completa em incompleta.
Irresistível apelo este o de olhar para os pormenores, os fechamentos, os entraves, as linhagens – da epígrafe lebesguiana colho a estrutura inicial «Le Verbe», que conjugo com o verso inicial do derradeiro poema da obra poética de mais de quarenta anos que diz «Exilava-se a Palavra», para concluir que muito se explica nestas traves que são pedras de catedral.
Transcendente e formalista, rigorosa e transformadora, espiritual e anagramática, vanguardista e clássica, aguda e esotérica, sábia e oficinal, a poesia de José Valle de Figueiredo nasceu há muito, isto é, muito tempo antes de ter nascido, porque se afirmava já nos melhores rituais poéticos de transmissão (em Camões, Sá de Miranda, Vieira, Pound, Afonso Lopes Vieira, João Cabral de Melo Neto e outros…).
Volto a Kafka e deixo de Valle de Figueiredo o trecho poemático inicial do livrinho de 1959:

Unção a morte que junto vem? Unção a dor,
unção a ponte que me retém? A morte?
Ungida a ponte, a dor também? Lúcida
a barra que se opõe? Jugulada aragem de forte vento
corpos nus na praia estende. Decente?
Decente é a vida, nem por isso se vende.


Ponte sobre ponte, a ponte. Ungidamente poética.

2014-04-16

[a casa]

[a casa]

afundo-me nas palavras esses espelhos
do mundo que me são ilhas e verticais
líquidos. a água devém sopro matéria
chuva fraterna construindo esta casa.

da raiz da terra um imenso músculo sou.

2014-04-15

LIMIARES DA ESCRITA - «Matinas» (1907) de Branca de Gonta Colaço


 LIMIARES DA ESCRITA - «Matinas» (1907) de Branca de Gonta Colaço

Despertam estas «Matinas» (1907) de Branca de Gonta Colaço uma clara expetativa literária. Ao tempo, não eram muitas as mulheres que enfrentavam assim o sortilégio dos prelos e das publicações. Serve a intitulação para nos conduzir a um horizonte de expetativa sobre uma carreira então ainda apenas nascente.
Pagando desde logo o tributo devido a seu pai – o célebre escritor Tomás Ribeiro -, porque a tanto se obriga quem integra uma linhagem de intelectuais, é esse poema inicial sob a forma de dedicatória lírica que cava desde logo uma bela psicologia e um nobre caráter: «Que eu não herdei teu génio nem teu jeito, / mas estas rimas diz-mas a meiguice / do teu amor, que eu sinto no meu peito!». Assim se apresentava Branca de Gonta Colaço nesse já distante ano de 1907.
A escritora, nascida em Lisboa em 8 de julho de 1880, filha, como se disse, do autor de «D. Jaime» e de mãe inglesa (a poetisa Ann Charlotte Syder), veio a casar, muito jovem ainda, em 1898, com o artista plástico Jorge Rey Colaço, acabando por falecer na capital, em 22 de março de 1945, depois de uma vida intelectual produtiva e multiforme como poetisa, dramaturga e conferencista, por exemplo.
De nome completo Branca Eva de Gonta Syder Ribeiro Colaço é justo destacar-se a integração no nome da escritora de parte do topónimo natal de seu pai: aquele ‘de Gonta’ refere-se a Parada de Gonta, local tão da nossa circunstância.
E é do fascínio do lugar que se levanta esta memória dentro da crónica. Afinal, os lugares são palcos de transmissão, de emoção transferida. «Meu pai!», diz a poetisa no poema inicial das suas primícias literárias, «Do meu sentir, minha ternura, / fiz estes versos que em raminho escasso / venho depor na tua sepultura».
Obra do início e início ainda de um caminho cultural, estas «Matinas» abraçam o verso de Musset que diz ser este livro toda a juventude da escritora. Assim é, de facto, e já reflexão poética de emoções onde se destacam a saudade, o sofrimento e o esquecimento. Não espanta ainda a submissão de uma das partições poéticas à voz autoritária de Tomás Ribeiro – tal era o tributo do sangue… -, voltando ainda sob forma epigráfica.
«Qual é o corpo sem órgãos de um livro?», perguntam-se perguntando-nos Gilles Deleuze e Felix Guattari em «Rizoma». Organicamente, a poesia nascente de Branca de Gonta Colaço é já uma completude que se desfibra até à fímbria mais íntima da emoção e da portugalidade:
«se num momento, em águas de veludo,
meu sangue rubro parecesse o escudo
dessa Bandeira Portuguesa enorme!»

 Perpendicularmente, dos pés à raiz da alma, as margens do sonho são roídas despudoradamente. Até quando?                                                                                       [Correio Beirão, nº 11.]

2014-04-12

[dolorosa]

[dolorosa]

incisa  a dor irrompe da memória
da água oblíqua da compreensão
a irrisão escorre dos lugares em volta
e nessa treva às apalpadelas és.

revelando-se a dor vence rindo-te.

2014-04-10

«Aura em La Toilette» de José Craveirinha

[Aura Cristina Geithner]

AURA EM LA TOILETTE

[Ao] Ricardo Rangel

Acho 
que é tempo
de me distrair.

Pelo
que peço licença ao pintor
dispo-me e muito respeitoso
vou ajudar a Aura desnuda
a pentear-se ao espelho
na tela.

E
a bela Aura
inclina a cabeça
com permissão de uma pincelada
do mestre Pablo Picasso.

Em 
La Toilette
a mulher é a Aura 
e eu quem a penteia.

1962 [José Craveirinha, Poemas eróticos, Maputo-Lisboa, Moçambique Editora-Texto Editores, 2004, p. 61.]