[fotografia retirada de O Beirão Online]
LIMIARES DA ESCRITA
A ponte: «as cinco
regras do equilíbrio» (1959) de José Valle de Figueiredo
No princípio estava a ponte. E um corpo
sobre. Ou melhor, a ponte era o corpo. E do corpo a ponte. E a nudez analítica
desta crónica nasce assim, kafkianamente, da celebérrima parábola «A ponte»,
que é texto que fica e sempre nos obriga a mágico pestanejamento. Parabolizo: «Eu
estava rígido e frio, era uma ponte, lançada sobre o abismo». Mas este era o
início pedindo um fim: «Uma ponte que se volta! Ainda me não tinha virado, e já
me desmoronava, desmoronava-me e despedaçava-me, espetava-me nas pedras
aguçadas que sempre me tinham olhado, tão pacíficas, do meio das águas em
fúria». E esta a magia de Kafka! E dela parto, em tradução de João Barrento, para
a grande poesia, aqui nascente, de José Valle de Figueiredo.
Com capa de Manuel Varella, «as cinco
regras do equilíbrio» de José Valle de Figueiredo, sob chancela das Edições
Cidadela, serão desde o dealbar uma ponte inexpugnável de equilíbrio – assim se
diz nos múltiplos sinais que são o título, as dedicatórias familiares, a
palavra autoritária de Philéas Lebesgue, os signos de amizade e a submissão à
sageza chinesa.
Sendo aquilo que ousava ser, este livro
primicial de palavras aguçadas como as pedras da estória de kafka lavrava na
história da poesia portuguesa um legítimo lugar – que outra ponte assim tão
clássica e moderna? Desfibrando a agudeza dos signos linguísticos, intersetando
neles as relações e o vetores culturais, explorando os significativos
cratilismos, o Poeta vindo a nós no quase início dessa década devoradora dos
sessentas desvelava ser uma clara central de energia.
José Valle de Figueiredo nasceu, na
nossa circunstância, em 1942, ali por terras de Tondela, vindo a desenvolver o
seu múnus cultural por várias regiões do país. Grande poeta, mas também editor,
conferencista, divulgador, diretor de publicações, doutrinador, crítico
literário, investigador e homem de cultura, Valle de Figueiredo viu em 2006 ser
recolhida a sua poesia em «O seu a seu poema (1959-2002)» (Lisboa, Imprensa
Nacional-Casa da Moeda). Uma dúzia de anos se acrescentaram já à usura do tempo
tornando essa obra completa em incompleta.
Irresistível apelo este o de olhar para
os pormenores, os fechamentos, os entraves, as linhagens – da epígrafe
lebesguiana colho a estrutura inicial «Le Verbe», que conjugo com o verso
inicial do derradeiro poema da obra poética de mais de quarenta anos que diz
«Exilava-se a Palavra», para concluir que muito se explica nestas traves que
são pedras de catedral.
Transcendente e formalista, rigorosa e
transformadora, espiritual e anagramática, vanguardista e clássica, aguda e
esotérica, sábia e oficinal, a poesia de José Valle de Figueiredo nasceu há
muito, isto é, muito tempo antes de ter nascido, porque se afirmava já nos
melhores rituais poéticos de transmissão (em Camões, Sá de Miranda, Vieira,
Pound, Afonso Lopes Vieira, João Cabral de Melo Neto e outros…).
Volto a Kafka e deixo de Valle de
Figueiredo o trecho poemático inicial do livrinho de 1959:
Unção a morte que junto vem? Unção a
dor,
unção a ponte que me retém? A morte?
Ungida a ponte, a dor também? Lúcida
a barra que se opõe? Jugulada aragem de
forte vento
corpos nus na praia estende. Decente?
Decente é a vida, nem por isso se vende.
Ponte sobre ponte, a ponte. Ungidamente
poética.