2013-11-16

Apresentação de «Montemuro» de Carlos Clara Gomes


AXIOMÁTICA DE «MONTEMURO»

A [ALFA] - Experiencial, este romance diz estar onde está – no lugar escolhido que é profunda morada de responsabilidade. A
[DOIS] – Evocativo, multiforme e larvar, o texto clariano dimana palavras alarmadas e responsabilizantes, em tempo sem tempo e em momento avassaladoramente trágico para as democracias, os povos e as gentes.
[TRÊS] – George Steiner, em conferência proferida em Amesterdão no ano de 1969, afirmou: «A Europa suicidou-se, ao matar os seus judeus.» Transcorridos mais de 40 anos, assistimos, quase impávidos, à destruição das nossas vidas, por força das medidas «inevitáveis» que nos levam a nova barbárie – e dizer escravatura não é exagero, no meio de chavões e palavras disruptivas como ‘corte brutal’, ‘autoagressão’, ‘submissão a lógicas estratégicas e económicas’, ‘derrapagem’, ‘esmagamento’, ‘tortura’, ‘desalojado’, ‘violação’, ‘dolo’, ‘suicídio’, ‘espiral recessiva’, ‘cortes’, ‘inevitabilidades’ e outros que bem conhecem.
[QUATRO] – Deseuropeus e desumanistas, os tempos obrigam a contrações, fechamentos e regressos. É do regresso à condição cultural que falo, da preservação e da dignificação dos lugares do espírito que, assim o queiramos, não podem ser esmagados. Envelhecer hoje num dos países mais envelhecidos do mundo é desesperante. Como desanimador é também vermos o corrupio dos nossos jovens mais ou menos talentosos para longínquas terras à míngua de Pátria. Este livro de Clara Gomes fala de nós, dos nossos lugares, das nossas gentes. E isso é já um incentivo a sermos.
[CINCO] – Como em Luís Miguel Nava, estamos em Viseu e «o tempo dá de súbito um salto para trás»[1], e eis que o magnífico objeto que é o livro esplende como o ouriço de Derrida à espera do nosso corpo. Fugindo à escravidão latente, é o livro, como nas mediévicas eras, um refúgio seguro. Dos poucos, acrescento, e quiçá o único!
[SEIS] - Eis Montemuro que nos convida para o significado e para o poder da arte – aqui passarão marginados e incompreendidos; equívocos, logros e lealdades; interditos e contrastes; lugares próximos e muito próximos; diáspora e equilíbrios; amores e desatinos; vida e morte – e tudo somando vida para a morte.
[SETE] – Montemuro é um luminoso in memoriam. Sabendo que tudo se decide no pormenor e no estancamento das modernidades detersivas, a obra de Clara Gomes articula-se em rosácea, a partir de uma «carranca de espectador», deflagrando círculos de fogo, de vida, que se fecharão fulgurantemente em clave aquática sobre a gesta de uma família.
 Ω [ÓMEGA] – Platão ordenou que não entrasse na sua academia nenhum ageómetra. Julgo que aqui não terão entrado desabituados da leitura e não leitores. Os tempos são de vigilância e de reflexão. Estes textos, assim escavando a nossa íntima condição são, mais do que úteis, necessários. Perante nós está este Montemuro, na sua «quididade», que vamos comer e também beber, porque a leitura «reclama silêncio e um isolamento feroz»[2] com um outro texto que estas palavras ainda não são, nem poderiam ser. E muito por isso a existência vale a pena – por este modo sobrevivente de contar uma estória que é a nossa história. Ensinando-nos o coração, Montemuro é um convite à Jacques Derrida:
«Come, bebe, engole a minha letra, porta-a, transporta-a em ti como lei de uma escrita em que o teu corpo se tornou: a escrita em si[3] Ω.
À leitura, pois…

                                                                                    Viseu, 15 de novembro de 2013
                                                                       Martim de Gouveia e Sousa

                                                                                                               




[1] Luís Miguel Nava, O céu sob as entranhas, Porto, Limiar, 1989, poema “Regresso».
[2] George Steiner, No castelo do Barba Azul. Algumas notas para a redefinição de cultura, Lisboa, Relógio d’Água, 1992, p. 123.
[3] Jacques Derrida, Che cos’ è la poesia?, Coimbra, Angelus Novus, Editora, 2003, p. 7.

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