AXIOMÁTICA
DE «MONTEMURO»
A
[ALFA] - Experiencial, este romance diz estar onde está – no lugar escolhido
que é profunda morada de responsabilidade. A
[DOIS]
– Evocativo, multiforme e larvar, o texto clariano dimana palavras alarmadas e
responsabilizantes, em tempo sem tempo e em momento avassaladoramente trágico
para as democracias, os povos e as gentes.
[TRÊS]
– George Steiner, em conferência proferida em Amesterdão no ano de 1969,
afirmou: «A Europa suicidou-se, ao matar os seus judeus.» Transcorridos mais de
40 anos, assistimos, quase impávidos, à destruição das nossas vidas, por força
das medidas «inevitáveis» que nos levam a nova barbárie – e dizer escravatura
não é exagero, no meio de chavões e palavras disruptivas como ‘corte brutal’,
‘autoagressão’, ‘submissão a lógicas estratégicas e económicas’, ‘derrapagem’,
‘esmagamento’, ‘tortura’, ‘desalojado’, ‘violação’, ‘dolo’, ‘suicídio’,
‘espiral recessiva’, ‘cortes’, ‘inevitabilidades’ e outros que bem conhecem.
[QUATRO]
– Deseuropeus e desumanistas, os tempos obrigam a contrações, fechamentos e
regressos. É do regresso à condição cultural que falo, da preservação e da
dignificação dos lugares do espírito que, assim o queiramos, não podem ser
esmagados. Envelhecer hoje num dos países mais envelhecidos do mundo é
desesperante. Como desanimador é também vermos o corrupio dos nossos jovens
mais ou menos talentosos para longínquas terras à míngua de Pátria. Este livro
de Clara Gomes fala de nós, dos nossos lugares, das nossas gentes. E isso é já
um incentivo a sermos.
[CINCO]
– Como em Luís Miguel Nava, estamos em Viseu e «o tempo dá de súbito um salto
para trás»[1], e
eis que o magnífico objeto que é o livro esplende como o ouriço de Derrida à
espera do nosso corpo. Fugindo à escravidão latente, é o livro, como nas
mediévicas eras, um refúgio seguro. Dos poucos, acrescento, e quiçá o único!
[SEIS]
- Eis Montemuro que nos convida para
o significado e para o poder da arte – aqui passarão marginados e
incompreendidos; equívocos, logros e lealdades; interditos e contrastes;
lugares próximos e muito próximos; diáspora e equilíbrios; amores e desatinos;
vida e morte – e tudo somando vida para a morte.
[SETE]
– Montemuro é um luminoso in memoriam. Sabendo que tudo se decide
no pormenor e no estancamento das modernidades detersivas, a obra de Clara
Gomes articula-se em rosácea, a partir de uma «carranca de espectador»,
deflagrando círculos de fogo, de vida, que se fecharão fulgurantemente em clave
aquática sobre a gesta de uma família.
Ω
[ÓMEGA] – Platão ordenou que não entrasse na sua academia nenhum ageómetra.
Julgo que aqui não terão entrado desabituados da leitura e não leitores. Os
tempos são de vigilância e de reflexão. Estes textos, assim escavando a nossa
íntima condição são, mais do que úteis, necessários. Perante nós está este Montemuro, na sua «quididade», que vamos
comer e também beber, porque a leitura «reclama silêncio e um isolamento feroz»[2]
com um outro texto que estas palavras ainda não são, nem poderiam ser. E muito
por isso a existência vale a pena – por este modo sobrevivente de contar uma
estória que é a nossa história. Ensinando-nos o coração, Montemuro é um convite à Jacques Derrida:
«Come, bebe, engole a minha letra, porta-a,
transporta-a em ti como lei de uma escrita em que o teu corpo se tornou: a escrita em si.»[3] Ω.
À
leitura, pois…
Viseu,
15 de novembro de 2013
Martim de Gouveia e Sousa
[1] Luís
Miguel Nava, O céu sob as entranhas,
Porto, Limiar, 1989, poema “Regresso».
[2]
George Steiner, No castelo do Barba Azul.
Algumas notas para a redefinição de cultura, Lisboa, Relógio d’Água, 1992, p.
123.
[3] Jacques
Derrida, Che cos’ è la poesia?,
Coimbra, Angelus Novus, Editora, 2003, p. 7.
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