2013-05-27

HISTÓRIA DA SERVIDÃO: A LITERATURA É AQUILINO



HISTÓRIA DA SERVIDÃO: A LITERATURA É AQUILINO

“Iminente para sempre”[1], como no verso de Herberto Helder, assim Aquilino Ribeiro irrompe nos dedos dos leitores em quentes ritos de espanto. E não é a couraça do ritualismo que o escuda, nem tão pouco a coorte processional dos encartados aquilinianos, ciosos de uma especialização a que literatura viva foge. Cedam, pois, os finos lábios da privatização à liberdade da vida, à fogueira imensa que é a obra de Aquilino, com a sua luz exorbitante, com a probante alegria que não se abandona ao cansaço ou à inércia da acédia, enfim, com a procidente deflagração amorosa que inunda páginas e páginas de dádiva  e explosão rubiflora. Assim a iminente literatura que vem aos dedos, incomensurável de vigor, inconcussa de destreza oficinal.
Neste dia de Aquilino, de celebração literária e linguística, recordo ainda os importantes contributos de David Mourão-Ferreira, Óscar Lopes e Eduardo Lourenço para o desbravamento de algumas das principais linhas hermenêuticas na obra do grande escritor e que, no parágrafo anterior, foram devidamente salientadas nos tópicos da exorbitância e da efusão, bem como na execração de quaisquer tibiezas.
A história que se conta é uma história de servidão. À língua, à literatura, ao país, com uma determinação admirável, com uma consistência inusual, rumo a um monumento valiosíssimo e plurímodo, que não é “apenas literatura”. Seccionando os saberes, o desempenho de Aquilino escreve-se também na vida, na biografia, na “performance”. Vivendo revoluções, prisões, fugas, clandestinidades, exílios, refúgios, em tudo isso estava um manancial que viria a ser suporte de escrita – o que de pícaro não haverá neste acúmulo de vivências e que transbordamentos disso não serão literatura e memorialismo?!...
Obrigando o leitor a contemplar a natureza, há neste vezo um regresso a casa que é um lídimo amor às coisas pátrias e hino a uma autenticidade desinfluenciada, original e produtiva. Quaisquer padres Ambrósios e todas as Celidónias valem uma filosofia, uma psicologia e uma grácil sensualidade. A servidão de Aquilino à mesa de trabalho era uma faca cerce sobre o fingimento e ousava descer a arte sobre “a bronca, flagrante e sincera Serra” e tal não era pouco, não poderia ser pouco. Mas não só, e basta uma leitura de Jardim das tormentas para que se desvele a panóplia temática aquiliniana.
Não absolutamente estimado pela presença, que ocasionalmente lhe assinalava os defeitos (Régio, Gaspar Simões), é deveras interessante que o único romance surrealista (Apenas uma narrativa de António Pedro) contenha uma dedicatória a Aquilino, assim se provando o leque irradiante da sua literatura. Nesta sutura de linhas e contralinhas, cose sem lassidão o fio camilianista, que Aquilino perseguiu (lembre-se a grande “biografia”, os ensaios…) e congraçou nessa obra maior que é A Casa Grande de Romarigães.
Durante décadas até à sua morte, Aquilino Ribeiro ocupou lugar cimeiro no tabuleiro da digladiação canónica. Incalculável, é um filão contra o silêncio.
                                                                                       Viseu, 27 de maio de 2013

                                                                                   Martim de Gouveia e Sousa



[1] Herberto Helder, Servidões, Porto, Assírio & Alvim, 2013, p. 20.

Sem comentários: