HISTÓRIA DA SERVIDÃO:
A LITERATURA É AQUILINO
“Iminente para
sempre”
,
como no verso de Herberto Helder, assim Aquilino Ribeiro irrompe nos dedos dos
leitores em quentes ritos de espanto. E não é a couraça do ritualismo que o
escuda, nem tão pouco a coorte processional dos encartados aquilinianos, ciosos
de uma especialização a que literatura viva foge. Cedam, pois, os finos lábios
da privatização à liberdade da vida, à fogueira imensa que é a obra de
Aquilino, com a sua luz exorbitante, com a probante alegria que não se abandona
ao cansaço ou à inércia da acédia, enfim, com a procidente deflagração amorosa
que inunda páginas e páginas de dádiva e
explosão rubiflora. Assim a iminente literatura que vem aos dedos, incomensurável
de vigor, inconcussa de destreza oficinal.
Neste dia de
Aquilino, de celebração literária e linguística, recordo ainda os importantes contributos
de David Mourão-Ferreira, Óscar Lopes e Eduardo Lourenço para o desbravamento
de algumas das principais linhas hermenêuticas na obra do grande escritor e
que, no parágrafo anterior, foram devidamente salientadas nos tópicos da
exorbitância e da efusão, bem como na execração de quaisquer tibiezas.
A história que
se conta é uma história de servidão. À língua, à literatura, ao país, com uma
determinação admirável, com uma consistência inusual, rumo a um monumento
valiosíssimo e plurímodo, que não é “apenas literatura”. Seccionando os
saberes, o desempenho de Aquilino escreve-se também na vida, na biografia, na “performance”.
Vivendo revoluções, prisões, fugas, clandestinidades, exílios, refúgios, em
tudo isso estava um manancial que viria a ser suporte de escrita – o que de
pícaro não haverá neste acúmulo de vivências e que transbordamentos disso não
serão literatura e memorialismo?!...
Obrigando o
leitor a contemplar a natureza, há neste vezo um regresso a casa que é um
lídimo amor às coisas pátrias e hino a uma autenticidade desinfluenciada,
original e produtiva. Quaisquer padres Ambrósios e todas as Celidónias valem
uma filosofia, uma psicologia e uma grácil sensualidade. A servidão de Aquilino
à mesa de trabalho era uma faca cerce sobre o fingimento e ousava descer a arte
sobre “a bronca, flagrante e sincera Serra” e tal não era pouco, não poderia
ser pouco. Mas não só, e basta uma leitura de Jardim das tormentas para que se desvele a panóplia temática
aquiliniana.
Não
absolutamente estimado pela presença,
que ocasionalmente lhe assinalava os defeitos (Régio, Gaspar Simões), é deveras
interessante que o único romance surrealista (Apenas uma narrativa de António Pedro) contenha uma dedicatória a
Aquilino, assim se provando o leque irradiante da sua literatura. Nesta sutura
de linhas e contralinhas, cose sem lassidão o fio camilianista, que Aquilino
perseguiu (lembre-se a grande “biografia”, os ensaios…) e congraçou nessa obra
maior que é A Casa Grande de Romarigães.
Durante décadas
até à sua morte, Aquilino Ribeiro ocupou lugar cimeiro no tabuleiro da digladiação
canónica. Incalculável, é um filão contra o silêncio.
Viseu, 27 de maio de 2013
Martim de Gouveia e Sousa