2011-09-21

ISTO: JUDITH TEIXEIRA REGRESSA A VISEU




“A compreensão vulgar chamou-me por isto, é claro,
imoral e dissolvente!...”
(Judith Teixeira, De mim)


Vieram as palavras e os homens. E, de repente, não havia ainda ágora para as mulheres. Estranho equívoco, este, que não adivinhava o postulado de Mario Vargas Llosa da tendência universal das mulheres se aproximarem da literatura e dos homens dela se afastarem[1]. Acho até que Llosa não quer significar aquilo que parece e antes aludirá a uma sensibilidade comum a mulheres e homens que permite a tal aproximação.
Como em Luís Miguel Nava, “o tempo dá de súbito um salto para trás”[2]. Judith irrompe na cultura portuguesa com um certeiro sonetilho publicado na fulgurante e belíssima revista Contemporânea, de José Pacheco, objecto também estético (e muito!) feito “expressamente para gente civilizada” e “para civilizar gente”[3]. Estávamos em 1922 e a criação judithiana, de título “Fim”[4], iria provocar um enorme alvoroço na nossa capital – o sonetilho, bem além da subpoesia de José-Augusto França[5], referia umas impossíveis “orgias de morfina”. Esta é, pois, verdadeiramente a entrada de Judith Teixeira no palco das letras nacionais:

Era esta uma entrada infungível anunciando o que aí vinha. No ano seguinte, em 1923, a colectânea Decadência será uma das obras a integrar, juntamente com Canções de António Botto e Sodoma divinizada de Raul Leal, o auto-de-fé em que as citadas serão reduzidas a cinzas, sob a acusação de infame “literatura de Sodoma”. Dita dissolvente, que podiam as criações contra o “pudico rigor” do biblioclasmo? Espantoso é ainda que a mola demolidora tenha sido agitada por uns quantos jovens ciosos da moralidade.
Pressuroso, Pessoa defenderá Botto e Leal, juntando assim a tríade homossexual  masculina e omitindo o par feminino, atribuindo-lhe mesmo um não lugar, que, por exemplo, um Aquilino contestará ao dizer a escritora uma “poetisa de valor”.
Rente ao corpo e aos sentidos não poucas vezes, a poesia decadente e modernamente sáfica de Judith Teixeira incendeia opiniões e escandaliza meio mundo. O genial Raul Brandão não entende mesmo que um sujeito lírico feminino possa ter como objecto amoroso uma mulher e pudesse escrever um poema como “A minha amante”! E, afinal, o que havia na poeta que fizesse Marcello Caetano falar de “versalhadas ignóbeis à Judith Teixeira”? Só palavras, como estas, que leio:


Esta entrada corajosa e irreverente na literatura portuguesa custaria a Judith Teixeira um longuíssimo esquecimento, uma quase trágica pulverização. A escritora não esquecerá, na conferência De mim (1926), depois da apreensão de Decadência, as críticas violentas feitas aos outros dois livros de poemas, Castelo de sombras (1923) e Nua. Poemas de Bizâncio (1926), e fá-lo-á plena de inteligência e elegância.
O explicit da composição lírica judithiana “O poemeto das sombras”, a última que eu conheço e publicada na revista Terras de Portugal [6] em 1928, bem alude a umas “trevas ululando” e a “longos fantasmas / de negras silhuetas!”. Em breve, um estranho e significativo silêncio cairia sobre a mulher-poeta. Um ano antes do ominoso poema publicara Judith Teixeira as novelas de Satânia – e que título, senhores!
No meio de todos os horrores, ser poeta é um enorme poder. Atacada pelo estertor da Primeira República e pelo Estado Novo nascente, a Judith Teixeira só restava cumprir a pena e o látego do desassombro. Muito estranho um país assim, que fez com a poeta o que, por exemplo, Estaline não fez[7] com Akhmatóva (e como a temia!) e com Pasternák, …
Modulando um título[8] de Herberto Helder, eis um corpo, um luxo e uma obra que não podem ser apagados, tanto mais que, no dizer habilíssimo de George Steiner, a poesia é um “luxo absolutamente necessário”[9].
Aqui, por dentro da terra, na terra que lhe foi nascimento, a poesia cresce. Quem não a ouve?     





[1] Esta ideia expende-a Mario Vargas Llosa no artigo “Carta de amor - A cultura no gineceu”, in Mulheres. Sonhos possíveis nos anos 90, Suplemento do Público, 22 de Outubro de 1994.
[2] Luís Miguel Nava, poema “Regresso”, in O céu sob as entranhas, Porto, Limiar, 1989.
[3] Cf., v. g. , o cabeçalho da Contemporânea com o nº 3.
[4] Contemporânea. Grande Revista Mensal, nº 2, Junho de 1922, p. 59.  
[5] José-Augusto França, “Contemporânea e os anos 20 portugueses”, in Contemporânea, vol. IV, Lisboa, Contexto, editora, 1992.
[6] Cf. Terras de Portugal, 1928.
[7] Embora tenha liquidado, por exemplo, Isaac Babel.
[8] Refiro-me ao título poético herbertino O corpo O luxo A obra (1978).
[9] Cf. “A necessidade de ler”, in Ler(Livros & Leitores), nº 100, Março 2011, p. 36.

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