“A compreensão vulgar
chamou-me por isto, é claro,
imoral e
dissolvente!...”
(Judith Teixeira, De mim)
Vieram as palavras e os
homens. E, de repente, não havia ainda ágora para as mulheres. Estranho
equívoco, este, que não adivinhava o postulado de Mario Vargas Llosa da
tendência universal das mulheres se aproximarem da literatura e dos homens dela
se afastarem[1]. Acho até que Llosa não
quer significar aquilo que parece e antes aludirá a uma sensibilidade comum a
mulheres e homens que permite a tal aproximação.
Como em Luís Miguel Nava ,
“o tempo dá de súbito um salto para trás”[2]. Judith
irrompe na cultura portuguesa com um certeiro sonetilho publicado na fulgurante
e belíssima revista Contemporânea, de
José Pacheco, objecto também estético (e muito!) feito “expressamente para
gente civilizada” e “para civilizar gente”[3].
Estávamos em 1922 e a criação judithiana, de título “Fim”[4], iria
provocar um enorme alvoroço na nossa capital – o sonetilho, bem além da
subpoesia de José-Augusto França[5],
referia umas impossíveis “orgias de morfina”. Esta é, pois, verdadeiramente a
entrada de Judith Teixeira no palco das letras nacionais:
Era esta uma entrada
infungível anunciando o que aí vinha. No ano seguinte, em 1923, a colectânea Decadência será uma das obras a
integrar, juntamente com Canções de
António Botto e Sodoma divinizada de
Raul Leal, o auto-de-fé em que as citadas serão reduzidas a cinzas, sob a
acusação de infame “literatura de Sodoma”. Dita dissolvente, que podiam as criações
contra o “pudico rigor” do biblioclasmo? Espantoso é ainda que a mola
demolidora tenha sido agitada por uns quantos jovens ciosos da moralidade.
Pressuroso, Pessoa
defenderá Botto e Leal, juntando assim a tríade homossexual masculina e omitindo o par feminino,
atribuindo-lhe mesmo um não lugar, que, por exemplo, um Aquilino contestará ao
dizer a escritora uma “poetisa de valor”.
Rente ao corpo e aos
sentidos não poucas vezes, a poesia decadente e modernamente sáfica de Judith
Teixeira incendeia opiniões e escandaliza meio mundo. O genial Raul Brandão não
entende mesmo que um sujeito lírico feminino possa ter como objecto amoroso uma
mulher e pudesse escrever um poema como “A minha amante”! E, afinal, o que
havia na poeta que fizesse Marcello Caetano falar de “versalhadas ignóbeis à
Judith Teixeira”? Só palavras, como estas, que leio:
Esta entrada corajosa e
irreverente na literatura portuguesa custaria a Judith Teixeira um longuíssimo
esquecimento, uma quase trágica pulverização. A escritora não esquecerá, na
conferência De mim (1926), depois da
apreensão de Decadência, as críticas
violentas feitas aos outros dois livros de poemas, Castelo de sombras (1923) e Nua.
Poemas de Bizâncio (1926), e fá-lo-á plena de inteligência e elegância.
O explicit da composição lírica judithiana “O poemeto das sombras”, a
última que eu conheço e publicada na revista Terras de Portugal [6] em
1928, bem alude a umas “trevas ululando” e a
“longos fantasmas / de negras silhuetas!”. Em breve, um estranho e significativo silêncio cairia sobre
a mulher-poeta. Um ano antes do ominoso poema publicara Judith Teixeira as
novelas de Satânia – e que título,
senhores!
No meio de todos os
horrores, ser poeta é um enorme poder. Atacada pelo estertor da Primeira
República e pelo Estado Novo nascente, a Judith Teixeira só restava cumprir a
pena e o látego do desassombro. Muito estranho um país assim, que fez com a
poeta o que, por exemplo, Estaline não fez[7] com
Akhmatóva (e como a temia!) e com Pasternák, …
Modulando um título[8] de
Herberto Helder, eis um corpo, um luxo e uma obra que não podem ser apagados,
tanto mais que, no dizer habilíssimo de George Steiner, a poesia é um “luxo
absolutamente necessário”[9].
Aqui, por dentro da
terra, na terra que lhe foi nascimento, a poesia cresce. Quem não a ouve?
[1] Esta
ideia expende-a Mario Vargas Llosa no artigo “Carta de amor - A cultura no
gineceu”, in Mulheres. Sonhos possíveis
nos anos 90, Suplemento do Público,
22 de Outubro de 1994.
[2] Luís Miguel Nava, poema
“Regresso”, in O céu sob as entranhas,
Porto, Limiar, 1989.
[3] Cf., v. g. , o cabeçalho da Contemporânea
com o nº 3.
[4] Contemporânea. Grande Revista Mensal, nº 2, Junho de 1922, p.
59.
[5]
José-Augusto França, “Contemporânea e
os anos 20 portugueses”, in Contemporânea,
vol. IV, Lisboa, Contexto, editora, 1992.
[6] Cf. Terras de Portugal, 1928.
[7] Embora tenha liquidado,
por exemplo, Isaac Babel.
[8] Refiro-me ao título
poético herbertino O corpo O luxo A obra
(1978).
[9] Cf. “A necessidade de
ler”, in Ler(Livros & Leitores),
nº 100, Março 2011, p. 36.
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