Devoto (embora
laico) leitor de Aquilino Ribeiro, o último
gigante (Baptista-Bastos) da nossa literatura, começo por me confessar
admirador convicto do excelente trabalho literário de Manuel de Lima Bastos nas
suas obras “Na Luz da Sombra de Mestre
Aquilino” e “De Novo a Sombra de
Mestre Aquilino”, cuja leitura vem lançar novas e penetrantes “luzes” sobre a magnifica produção
aquiliniana e com que podemos gulosamente dar de beber aos olhos à sombra
tutelar do génio luminoso do mestre.
Ele que dizia “sou um escritor mais conhecido
do que lido”. Ele que publicou 69 livros, 17 dos quais são romances. O
resto é história, biografia, polémica, investigação literária, cultural,
literatura infantil, memórias, jornalismo, crónica. Na sua obra há uma súmula
de toda a literatura. O balanço daquilo que fomos e somos. Espantosa aventura
que foi a sua vida porque a sua vida é um romance. Como seu “alter-ego”, tão constante e lúcida é a
sua apaixonada fidelidade ao Mestre, Lima Bastos retratou impressivamente a sua
personalidade como ninguém o fez.
Homem
vulcânico, fez tudo apaixonadamente.
Hedonista,
panteísta, caçador, pescador, sibarita, iluminista, conspirador, republicano,
jacobino, carbonário, anti-salazarista (Salazar, tão avaro em tudo, disse dele:
é um inimigo do regime, irá dizer-lhe mal
de mim. Mas não importa. É um grande escritor). Ferozmente apaixonado pela
liberdade individual, solidário com todos os movimentos que tinham por fim a
liberdade, quando lhe perguntaram se era comunista, respondeu: “Sou apenas inconformista, não sou
propriamente político. Sou inconformista. Em política, nunca passei de um
franco-atirador”. Aquilino chegou até a oferecer a sua casa na Soutosa como
refúgio a clandestinos. Homem de tendências libertárias, partidário de um
socialismo mais à Saint-Simon do que à Saint-Just, permanentemente mergulhado
nos banhos lustrais da liberdade e da fraternidade, autoritário, impositivo,
individualista, hedonista, galvanizado pelo prazer, um “civilizado” da aldeia,
jamais capitulando ante uma boa peleja ou um bom…prato de orelheira de porco…,
o beirão tinha pelos comunistas a desconfiança relativa e comum a quem trata
com homens provindos da sombra, do mistério do segredo. Apenas isso.
Acrescentado pela ideia que alimentava segundo a qual sem liberdade irrestrita,
uma educação humana, humanista, é impossível.
Cultor
do rigor, trabalhador incansável (“ já
escrevi um livro em cima de uma porta”), Aquilino disse ao jornal
“República” em Novembro de 1939: Trabalho,
com igual paciência, no silêncio absoluto do campo ou na chinfrineira da
cidade. Em Paris, por exemplo, tinha a “gare” de Sceaux-Ceinture diante de mim;
neste momento, tenho dois “caterpillars” a petardear e não me sinto
importunado. Trabalho, com igual disposição, de noite ou de dia. Umas vezes
tomo o meu café, outras um copo de água! Já escrevi um livro em cima de uma
porta; gosto porém, confesso o meu pecado, do meu escritório, revestido de
quadros, pelo menos agradáveis à vista, se bem que não possua Rembrandts nem
Velásquez, de livros, de pequenas bugigangas, para distrair a vista”.
Admirável Aquilino, formidável Aquilino,
incomensurável e inimitável Aquilino!!
A
sua obra, excelentemente iluminada por Lima Bastos em novas e insuspeitadas
focagens, em novas e insuspeitáveis interpretações, em novos e imprevistos
contextos, é uma sequência desmultiplicada e alternante de paisagens, árvores,
matagais e bichos, estações do ano, montes e vales, perspectivas longínquas e
próximas, céus, nuvens e cursos de água, solares e casas, espigueiros e
descampados, amores e ódios, paixões e indiferenças, sexo e cupidez,
profissões, ofícios, actividades, rituais, indumentárias, alfaias, armas,
refeições, paladares, sons e cheiros, texturas, cores, efeitos de luz e de
sombra, um sentido do tempo intimamente conexo com esses espaços e com a
variação de todos os outros aspectos que referi, e um desfilar de tipos e
comportamentos humanos que vão atravessando as páginas, palpitando numa
extraordinária vitalidade e numa desvairada sucessão. É como se Aquilino
manobrasse um caleidoscópio inesgotável de formas e de cores, ou como se
estivesse a filmar deslocando constantemente a câmara em todos os sentidos,
variando os planos e fazendo zoom para
todos os lados: e tudo acaba por ser diferente na sua prosa esperta e azougada
que varia incessantemente as perspectivas, que não dá descanso ao dicionário em
que os clássicos coabitam com as expressões mais chãs e populares e há uma
economia “nervosa” da energia estilística na abordagem da cada pormenor ou de
cada cena de conjunto, de tal modo que vemos os homens e as mulheres formigarem
alacremente através da paisagem e as devoções, as tentações, as músicas, os
ruídos, as falas e as comezainas, os bosques e até as sombras do cair da noite
prenunciarem os instantes genésicos que estavam na mira do autor e das suas
criaturas.
Sucede
que, mesmo ao falar do Minho, na “Casa
Grande de Romarigães”, naquele
seu jeito mais ou menos pícaro, Aquilino provavelmente sabia que estava a falar
de nós, de Portugal inteiro.
A gente desta Casa, até a altura em que
chegaram os do meu sangue, tem as
virtudes e os defeitos em inho, honradinho, bonzinho, marotinho, ladrãozinho. É
um côvado especial para esta província, cujo nome precisamente parece mesmo o
eco de tais dimensões.
Tudo a rimar com
Minho…
Um
mundo que fervilha e rodopia, um mundo de fidalgos, campónios, criadagem,
almocreves, salteadores, militares, padres, devotos, comerciantes, bastardos,
gente sem eira nem beira. Um mundo que em grande parte prolonga o de Camilo e
também goza com ele. Um mundo de gente que se move por instintos directos e
muitas vezes primitivos, por cálculos de imediato ganho material ou erótico,
por sentimentos de coragem e de cobardia, de altivez e de manha, que se eleva e
se degrada outra vez e outra. Tudo isto é dado de forma algo esquemática, mas –
e é esse um dos segredos da eficácia de Aquilino – com uma intensidade, um
ritmo narrativo, um colorido, um a-propósito, uma capacidade de sugestão, uma
sucessão de contrastes, uma frescura de imagens inesperadas e justíssimas, que
o presenciamos como se fôssemos espectadores directos das cenas e das
peripécias que se vão desenrolando através das páginas (Vasco Graça Moura).
Senhoras e
Senhores:
O
homem aquiliniano não é um ser derivado de grandes teorias filosóficas nem de
grandes desígnios escatológicos. É o bicho da terra tão pequeno, talvez capaz
de grandeza mas sobretudo pronto a fazer valer os seus direitos, a sua vontade
e os seus desejos, pela força ou pela astúcia, instável e andarilho,
estruturalmente céptico e por vezes cínico, mas também de uma religiosidade
elementar, quando não pagã, mesmo no culto dos santos, o bípede sem plumas,
terra a terra e pão-pão-queijo-queijo, que não conhece o tédio nem o spleen, que teoriza pouco, filosofa
ainda menos, e obedece aos impulsos primários da Natureza e ao instinto animal,
distanciando-se das noções de pecado e de remorso herdadas da tradição
judaico-cristã na sua busca do prazer e no seu sentido prático, e que (na sua
exaltação de viver) come e dorme, ri e chora, ama e estupra, engendra e mata,
ganha e perde, anda à chuva e ao sol, ao vento e à caça, tem uma sabedoria
imemorial e uma proverbial capacidade de desenrascanço – para, como tudo o que
é obra da mesma e ancestral Natureza, passar e desaparecer para logo dar lugar
a outros seres como ele” (fim de citação de Vasco Graça Moura).
A
sua obra revela um irreprimível conflito entre dois estratos fundamentais da
sua formação: uma cultura latino-eclesiástica e uma cultura de tradição voltairiana-anatoliana.
Constata-se
um persistente artigo de filosofia aquiliniana: perante uma Natureza “de todo insensível, neutra em matéria de bem
e de mal”, a vida individual não duraria, afinal, mais que um bater de
pálpebras. “Todavia esse momento ou
parêntese representava no panorama universal, com a sua beleza e o seu drama,
uma razão suficiente para valer a pena o Mundo existir.” Esta a heróica
lição mais emotiva do radical imanentismo de toda a obra de Aquilino.
É
o desaparecimento da divindade e a emergência da própria genesíaca e criadora
Natureza de que o Homem se torna partícipe. Se no princípio era Deus, agora
no princípio é a Terra (Óscar Lopes).
Ao
manifestar o seu deslumbramento perante a natureza e a terra, como a sua
estância de contemptor do Mundo, o espectáculo emocionante e trágico é, para
ele, a vida. Entrado o ano de 1960, Aquilino vai para Soutosa, retemperar-se
das feridas da alma, das canseiras da carne; caça, come, bebe, ama, escreve.
Escreve sempre. “O que convulsiona o
mundo não é a loucura. O que convulsiona o mundo é o atrito entre a consciência
do ser livre e a restrição imposta por quem se julga detentor da verdade e
senhor do mando. O arrepio da dúvida não é uma metáfora. A dúvida causa
arrepios. Quem não duvida, quem não sentiu, alguma vez, o sainete da incerteza
não passa de um banal imbecil e todo o imbecil possui o estofo de um canalha.”
Mas
voltemos à sua terra, às “terras do demo” e ouçamo- -lo numa entrevista dada em 1952 no Brasil:
“Nasci numa pequena aldeia da Beira Alta, sem
história o que não quer dizer que seja feliz. A Beira não tem símile na terra.
Em poucas dezenas de quilómetros está nela representado o mundo todo: amenidade
e braveza, a montanha e o vale, a civilização e a selvajaria. Em volta da
aldeia, no inverno uivam os lobos ao desafio com o vento. Na primavera,
alteiam-se do solo e pelos caminhos, flores que ainda não figuram na botânica
sapiente. O rio que produz o peixe mais saboroso de toda a fauna das águas, as
trutas, escarpa-se e lembra ao fundo da colina a hidra das histórias, ao que
vai de raivoso e indomável”
E
nessa mesma entrevista à pergunta “Como
iniciou a vida de escritor?” – disse: “Seria
longo explicar-lhe como comecei a escrever. Num acaso? Num acto providencial?
Num instinto? Entra-se nas letras um pouco como os patos entram na água”.
E
pelo seu inexcedível afecto a Aquilino, sustentado pelos seus saberes (o
coração tem razões que a razão reconhece) o escritor Lima Bastos faz-nos viajar
deliciosamente pelas suas águas mais profundas e silenciadas enquanto, de braço
dado com ele, leva-nos a percorrer, palmo a palmo, as suas terras amadas por
terras de Lamego, por terras de Viseu, de Vila Nova de Paiva, de Sernancelhe,
por terras de Moimenta da Beira, de Aguiar da Beira e de Sátão.
A
majestade da Beira Alta – berço, chão e coração de Aquilino – impregnada das
paisagens, dos bichos e da flora do território beirão (“carrega-se o berço às costas como uma geba! – a frase é de Aquilino
como bem observa Lima Bastos) é magnificamente tratada na obra de Manuel de
Lima Bastos já no plano literário, já no campo estilístico, histórico,
iconográfico, arquitectónico, culinário e até fotogénico, enraizando o Mestre á
sua identidade matricial.
Tudo
servido por uma envolvente e atraente narrativa, desenvolvida através de uma
prosa ritmada, rigorosa, colorida, sugestiva, fresca de imagens inesperadas e
justíssimas, atravessada de uma irreverente ironia como lúcida forma de
conhecimento, o que o Mestre segura e gostosamente muito apreciaria.
Aqui
poderíamos dizer de Lima Bastos que o “amador
se transformou na coisa amada”.
Sigamos,
nalguns trechos e por espaços, o seu roteiro. Aquilino Ribeiro nasceu (13 de
Setembro de 1885) e deu os seus primeiros passos até aos dez anos na freguesia
de Carregal, do concelho de Sernancelhe, em que seu Pai o Padre Joaquim
Francisco Ribeiro regia a paróquia. É internado a contragosto no Colégio dos
Jesuítas para estudar na instrução primária, mesmo ao lado do Santuário de
Nossa Senhora da Lapa, com a sua famosa romaria em que a sincera devoção se
misturava com a mais tosca profanidade. Nas circunvizinhanças a Quintela da
Lapa, “terra pobre de gente mais que pobre, e mais para baixo Lamosa, aldeia
muitas vezes referida pelo escritor por daí serem naturais amigos de toda a
vida e companheiros de caça e pesca, Freixinho com a sua bela igreja matriz e
as suas saborosas cavacas, e a Faia. Se o concelho de Sernancelhe se ufana de
ter sido o berço de Mestre Aquilino, Moimenta da Beira pode justamente
orgulhar-se de ter sido na Soutosa, lugar da freguesia de Peva, pertencente ao
concelho de Moimenta, que o escritor se fez homem e onde passou vários meses do
ano durante quase toda a sua vida. E, em boa e feliz hora, a esta biblioteca
municipal foi dado o nome de Aquilino Ribeiro.
“A
Casa da Soutosa, que Aquilino Ribeiro amava acima de todas as coisas e à qual
era raro o ano em que não regressasse durante os meses que medeiam entre o fim
da Primavera e os princípios do Outono, altura em que as primeiras aragens
frias o faziam regressar à amenidade de Lisboa.” “O seu pátio é fechado pelo
renque das famosas tílias que Aquilino plantara pelas suas mãos e eram o seu
enlevo, abrigando na sua ramaria a colónia de pássaros que o Mestre sempre
protegeu e a que chamou falanstério alado”.
“Dizia
o escritor – mais nos relata Lima Bastos – que tinha na Beira umas árvores para
lhes gozar a sombra”.
E,
antes de terminar, para não abusar mais da vossa paciência, seja-me permitida
uma nota pessoal de ordem afectiva e, porque não dizê-lo, emotiva e
sentimental.
Nascido
embora no Porto, sempre me senti e afirmei como beirão de sangue e de carácter,
da Beira Alta, de Moimenta da Beira. De Moimenta foram oriundos todos os meus
passados desde o meu tetravô até ao meu Pai, Luís Veiga, um dos maiores
advogados portugueses do seu tempo, e meu tio Pedro Veiga, o famoso “Petrus”
que nos deixou um legado de algumas dezenas de obras de investigação e criação
literária, extremamente significativas e relevantes para a nossa cultura, ambos
denodados combatentes contra a ditadura salazarista e que, tendo vivido no
Porto onde minha Avó os levou para estudar, o município consagrou dando o seu
nome, cada um a cada um, às artérias citadinas.
Menino
e moço, e depois adolescente, a grande parte das minhas férias de Verão
passei-as em Penso, a pouca distância de Moimenta, nas propriedades de minhas
tias avós Palmira, Cacilda Veiga e Adozinda Veiga Ricca, nas quintas de S.
Luís, do Rio, (vulgo, o Mijão) e do Paço, na alegria e companhia de meus primos
Veiga Leitão e Gentil Guedes Gomes, tendo como companheiro diário de diversão e
excursão, montados num burro, o meu amigo íntimo pela vida fora e pela vida
dentro o excelente poeta Luís Veiga Leitão, justamente celebrado em Moimenta.
Vinha
também muitas vezes na carreira visitar os meus primos Paiva Gomes a Moimenta e
a Leomil que me presenteavam com lanches de chorar por mais e com uma manteiga
de que nunca mais senti igual sabor. Desses tempos despreocupados e felizes,
que trago sempre pela mão, fiquei intimamente ligado às gentes, às paisagens,
às fragas, aos chãos destas terras com que me identifico e revejo a minha
meninice. E por hoje voltar aqui fico grato ao meu amigo e colega Dr. Manuel de
Lima Bastos, ao Senhor Presidente da Câmara, a todos, Senhoras e Senhores aqui
presentes e, sobretudo, ao imortal Mestre Aquilino Ribeiro.
Peço-vos o vosso aplauso e a vossa
aclamação em louvor e gratidão ao Dr. Manuel de Lima Bastos.
Na Foz do Douro, aos dias 16 de Maio de 2011.
MIGUEL VEIGA
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