2011-05-30

2011-05-21

Apresentação do livro de Manuel de Lima Bastos "Na luz da sombra de Mestre Aquilino" por Miguel Veiga ("Aquilino Ribeiro visto, lido e respigado por Manuel de Lima Bastos", Moimenta da Beira, aos 21 dias do mês de Maio de 2011)


Devoto (embora laico) leitor de Aquilino Ribeiro, o último gigante (Baptista-Bastos) da nossa literatura, começo por me confessar admirador convicto do excelente trabalho literário de Manuel de Lima Bastos nas suas obras “Na Luz da Sombra de Mestre Aquilino” e “De Novo a Sombra de Mestre Aquilino”, cuja leitura vem lançar novas e penetrantes “luzes” sobre a magnifica produção aquiliniana e com que podemos gulosamente dar de beber aos olhos à sombra tutelar do génio luminoso do mestre.
Ele que dizia “sou um escritor mais conhecido do que lido”. Ele que publicou 69 livros, 17 dos quais são romances. O resto é história, biografia, polémica, investigação literária, cultural, literatura infantil, memórias, jornalismo, crónica. Na sua obra há uma súmula de toda a literatura. O balanço daquilo que fomos e somos. Espantosa aventura que foi a sua vida porque a sua vida é um romance. Como seu “alter-ego”, tão constante e lúcida é a sua apaixonada fidelidade ao Mestre, Lima Bastos retratou impressivamente a sua personalidade como ninguém o fez.
Homem vulcânico, fez tudo apaixonadamente. 
Hedonista, panteísta, caçador, pescador, sibarita, iluminista, conspirador, republicano, jacobino, carbonário, anti-salazarista (Salazar, tão avaro em tudo, disse dele: é um inimigo do regime, irá dizer-lhe mal de mim. Mas não importa. É um grande escritor). Ferozmente apaixonado pela liberdade individual, solidário com todos os movimentos que tinham por fim a liberdade, quando lhe perguntaram se era comunista, respondeu: “Sou apenas inconformista, não sou propriamente político. Sou inconformista. Em política, nunca passei de um franco-atirador”. Aquilino chegou até a oferecer a sua casa na Soutosa como refúgio a clandestinos. Homem de tendências libertárias, partidário de um socialismo mais à Saint-Simon do que à Saint-Just, permanentemente mergulhado nos banhos lustrais da liberdade e da fraternidade, autoritário, impositivo, individualista, hedonista, galvanizado pelo prazer, um “civilizado” da aldeia, jamais capitulando ante uma boa peleja ou um bom…prato de orelheira de porco…, o beirão tinha pelos comunistas a desconfiança relativa e comum a quem trata com homens provindos da sombra, do mistério do segredo. Apenas isso. Acrescentado pela ideia que alimentava segundo a qual sem liberdade irrestrita, uma educação humana, humanista, é impossível.
Cultor do rigor, trabalhador incansável (“ já escrevi um livro em cima de uma porta”), Aquilino disse ao jornal “República” em Novembro de 1939: Trabalho, com igual paciência, no silêncio absoluto do campo ou na chinfrineira da cidade. Em Paris, por exemplo, tinha a “gare” de Sceaux-Ceinture diante de mim; neste momento, tenho dois “caterpillars” a petardear e não me sinto importunado. Trabalho, com igual disposição, de noite ou de dia. Umas vezes tomo o meu café, outras um copo de água! Já escrevi um livro em cima de uma porta; gosto porém, confesso o meu pecado, do meu escritório, revestido de quadros, pelo menos agradáveis à vista, se bem que não possua Rembrandts nem Velásquez, de livros, de pequenas bugigangas, para distrair a vista”.
Admirável Aquilino, formidável Aquilino, incomensurável e inimitável Aquilino!!
A sua obra, excelentemente iluminada por Lima Bastos em novas e insuspeitadas focagens, em novas e insuspeitáveis interpretações, em novos e imprevistos contextos, é uma sequência desmultiplicada e alternante de paisagens, árvores, matagais e bichos, estações do ano, montes e vales, perspectivas longínquas e próximas, céus, nuvens e cursos de água, solares e casas, espigueiros e descampados, amores e ódios, paixões e indiferenças, sexo e cupidez, profissões, ofícios, actividades, rituais, indumentárias, alfaias, armas, refeições, paladares, sons e cheiros, texturas, cores, efeitos de luz e de sombra, um sentido do tempo intimamente conexo com esses espaços e com a variação de todos os outros aspectos que referi, e um desfilar de tipos e comportamentos humanos que vão atravessando as páginas, palpitando numa extraordinária vitalidade e numa desvairada sucessão. É como se Aquilino manobrasse um caleidoscópio inesgotável de formas e de cores, ou como se estivesse a filmar deslocando constantemente a câmara em todos os sentidos, variando os planos e fazendo zoom para todos os lados: e tudo acaba por ser diferente na sua prosa esperta e azougada que varia incessantemente as perspectivas, que não dá descanso ao dicionário em que os clássicos coabitam com as expressões mais chãs e populares e há uma economia “nervosa” da energia estilística na abordagem da cada pormenor ou de cada cena de conjunto, de tal modo que vemos os homens e as mulheres formigarem alacremente através da paisagem e as devoções, as tentações, as músicas, os ruídos, as falas e as comezainas, os bosques e até as sombras do cair da noite prenunciarem os instantes genésicos que estavam na mira do autor e das suas criaturas.
Sucede que, mesmo ao falar do Minho, na “Casa Grande de Romarigães”, naquele seu jeito mais ou menos pícaro, Aquilino provavelmente sabia que estava a falar de nós, de Portugal inteiro.  
A gente desta Casa, até a altura em que chegaram os do meu sangue, tem as virtudes e os defeitos em inho, honradinho, bonzinho, marotinho, ladrãozinho. É um côvado especial para esta província, cujo nome precisamente parece mesmo o eco de tais dimensões.
Tudo a rimar com Minho…
Um mundo que fervilha e rodopia, um mundo de fidalgos, campónios, criadagem, almocreves, salteadores, militares, padres, devotos, comerciantes, bastardos, gente sem eira nem beira. Um mundo que em grande parte prolonga o de Camilo e também goza com ele. Um mundo de gente que se move por instintos directos e muitas vezes primitivos, por cálculos de imediato ganho material ou erótico, por sentimentos de coragem e de cobardia, de altivez e de manha, que se eleva e se degrada outra vez e outra. Tudo isto é dado de forma algo esquemática, mas – e é esse um dos segredos da eficácia de Aquilino – com uma intensidade, um ritmo narrativo, um colorido, um a-propósito, uma capacidade de sugestão, uma sucessão de contrastes, uma frescura de imagens inesperadas e justíssimas, que o presenciamos como se fôssemos espectadores directos das cenas e das peripécias que se vão desenrolando através das páginas (Vasco Graça Moura).

Senhoras e Senhores:

O homem aquiliniano não é um ser derivado de grandes teorias filosóficas nem de grandes desígnios escatológicos. É o bicho da terra tão pequeno, talvez capaz de grandeza mas sobretudo pronto a fazer valer os seus direitos, a sua vontade e os seus desejos, pela força ou pela astúcia, instável e andarilho, estruturalmente céptico e por vezes cínico, mas também de uma religiosidade elementar, quando não pagã, mesmo no culto dos santos, o bípede sem plumas, terra a terra e pão-pão-queijo-queijo, que não conhece o tédio nem o spleen, que teoriza pouco, filosofa ainda menos, e obedece aos impulsos primários da Natureza e ao instinto animal, distanciando-se das noções de pecado e de remorso herdadas da tradição judaico-cristã na sua busca do prazer e no seu sentido prático, e que (na sua exaltação de viver) come e dorme, ri e chora, ama e estupra, engendra e mata, ganha e perde, anda à chuva e ao sol, ao vento e à caça, tem uma sabedoria imemorial e uma proverbial capacidade de desenrascanço – para, como tudo o que é obra da mesma e ancestral Natureza, passar e desaparecer para logo dar lugar a outros seres como ele” (fim de citação de Vasco Graça Moura).
A sua obra revela um irreprimível conflito entre dois estratos fundamentais da sua formação: uma cultura latino-eclesiástica e uma cultura de tradição voltairiana-anatoliana.
Constata-se um persistente artigo de filosofia aquiliniana: perante uma Natureza “de todo insensível, neutra em matéria de bem e de mal”, a vida individual não duraria, afinal, mais que um bater de pálpebras. “Todavia esse momento ou parêntese representava no panorama universal, com a sua beleza e o seu drama, uma razão suficiente para valer a pena o Mundo existir.” Esta a heróica lição mais emotiva do radical imanentismo de toda a obra de Aquilino.
É o desaparecimento da divindade e a emergência da própria genesíaca e criadora Natureza de que o Homem se torna partícipe. Se no princípio era Deus, agora no princípio é a Terra (Óscar Lopes).
             Ao manifestar o seu deslumbramento perante a natureza e a terra, como a sua estância de contemptor do Mundo, o espectáculo emocionante e trágico é, para ele, a vida. Entrado o ano de 1960, Aquilino vai para Soutosa, retemperar-se das feridas da alma, das canseiras da carne; caça, come, bebe, ama, escreve. Escreve sempre. “O que convulsiona o mundo não é a loucura. O que convulsiona o mundo é o atrito entre a consciência do ser livre e a restrição imposta por quem se julga detentor da verdade e senhor do mando. O arrepio da dúvida não é uma metáfora. A dúvida causa arrepios. Quem não duvida, quem não sentiu, alguma vez, o sainete da incerteza não passa de um banal imbecil e todo o imbecil possui o estofo de um canalha.
Mas voltemos à sua terra, às “terras do demo” e ouçamo-  -lo numa entrevista dada em 1952 no Brasil:
             “Nasci numa pequena aldeia da Beira Alta, sem história o que não quer dizer que seja feliz. A Beira não tem símile na terra. Em poucas dezenas de quilómetros está nela representado o mundo todo: amenidade e braveza, a montanha e o vale, a civilização e a selvajaria. Em volta da aldeia, no inverno uivam os lobos ao desafio com o vento. Na primavera, alteiam-se do solo e pelos caminhos, flores que ainda não figuram na botânica sapiente. O rio que produz o peixe mais saboroso de toda a fauna das águas, as trutas, escarpa-se e lembra ao fundo da colina a hidra das histórias, ao que vai de raivoso e indomável
E nessa mesma entrevista à pergunta “Como iniciou a vida de escritor?” – disse: “Seria longo explicar-lhe como comecei a escrever. Num acaso? Num acto providencial? Num instinto? Entra-se nas letras um pouco como os patos entram na água”.
E pelo seu inexcedível afecto a Aquilino, sustentado pelos seus saberes (o coração tem razões que a razão reconhece) o escritor Lima Bastos faz-nos viajar deliciosamente pelas suas águas mais profundas e silenciadas enquanto, de braço dado com ele, leva-nos a percorrer, palmo a palmo, as suas terras amadas por terras de Lamego, por terras de Viseu, de Vila Nova de Paiva, de Sernancelhe, por terras de Moimenta da Beira, de Aguiar da Beira e de Sátão.
 A majestade da Beira Alta – berço, chão e coração de Aquilino – impregnada das paisagens, dos bichos e da flora do território beirão (“carrega-se o berço às costas como uma geba! – a frase é de Aquilino como bem observa Lima Bastos) é magnificamente tratada na obra de Manuel de Lima Bastos já no plano literário, já no campo estilístico, histórico, iconográfico, arquitectónico, culinário e até fotogénico, enraizando o Mestre á sua identidade matricial.
Tudo servido por uma envolvente e atraente narrativa, desenvolvida através de uma prosa ritmada, rigorosa, colorida, sugestiva, fresca de imagens inesperadas e justíssimas, atravessada de uma irreverente ironia como lúcida forma de conhecimento, o que o Mestre segura e gostosamente muito apreciaria.
Aqui poderíamos dizer de Lima Bastos que o “amador se transformou na coisa amada”.
Sigamos, nalguns trechos e por espaços, o seu roteiro. Aquilino Ribeiro nasceu (13 de Setembro de 1885) e deu os seus primeiros passos até aos dez anos na freguesia de Carregal, do concelho de Sernancelhe, em que seu Pai o Padre Joaquim Francisco Ribeiro regia a paróquia. É internado a contragosto no Colégio dos Jesuítas para estudar na instrução primária, mesmo ao lado do Santuário de Nossa Senhora da Lapa, com a sua famosa romaria em que a sincera devoção se misturava com a mais tosca profanidade. Nas circunvizinhanças a Quintela da Lapa, “terra pobre de gente mais que pobre, e mais para baixo Lamosa, aldeia muitas vezes referida pelo escritor por daí serem naturais amigos de toda a vida e companheiros de caça e pesca, Freixinho com a sua bela igreja matriz e as suas saborosas cavacas, e a Faia. Se o concelho de Sernancelhe se ufana de ter sido o berço de Mestre Aquilino, Moimenta da Beira pode justamente orgulhar-se de ter sido na Soutosa, lugar da freguesia de Peva, pertencente ao concelho de Moimenta, que o escritor se fez homem e onde passou vários meses do ano durante quase toda a sua vida. E, em boa e feliz hora, a esta biblioteca municipal foi dado o nome de Aquilino Ribeiro.
“A Casa da Soutosa, que Aquilino Ribeiro amava acima de todas as coisas e à qual era raro o ano em que não regressasse durante os meses que medeiam entre o fim da Primavera e os princípios do Outono, altura em que as primeiras aragens frias o faziam regressar à amenidade de Lisboa.” “O seu pátio é fechado pelo renque das famosas tílias que Aquilino plantara pelas suas mãos e eram o seu enlevo, abrigando na sua ramaria a colónia de pássaros que o Mestre sempre protegeu e a que chamou falanstério  alado”.
 “Dizia o escritor – mais nos relata Lima Bastos – que tinha na Beira umas árvores para lhes gozar a sombra”.
E, antes de terminar, para não abusar mais da vossa paciência, seja-me permitida uma nota pessoal de ordem afectiva e, porque não dizê-lo, emotiva e sentimental.
Nascido embora no Porto, sempre me senti e afirmei como beirão de sangue e de carácter, da Beira Alta, de Moimenta da Beira. De Moimenta foram oriundos todos os meus passados desde o meu tetravô até ao meu Pai, Luís Veiga, um dos maiores advogados portugueses do seu tempo, e meu tio Pedro Veiga, o famoso “Petrus” que nos deixou um legado de algumas dezenas de obras de investigação e criação literária, extremamente significativas e relevantes para a nossa cultura, ambos denodados combatentes contra a ditadura salazarista e que, tendo vivido no Porto onde minha Avó os levou para estudar, o município consagrou dando o seu nome, cada um a cada um, às artérias citadinas.
Menino e moço, e depois adolescente, a grande parte das minhas férias de Verão passei-as em Penso, a pouca distância de Moimenta, nas propriedades de minhas tias avós Palmira, Cacilda Veiga e Adozinda Veiga Ricca, nas quintas de S. Luís, do Rio, (vulgo, o Mijão) e do Paço, na alegria e companhia de meus primos Veiga Leitão e Gentil Guedes Gomes, tendo como companheiro diário de diversão e excursão, montados num burro, o meu amigo íntimo pela vida fora e pela vida dentro o excelente poeta Luís Veiga Leitão, justamente celebrado em Moimenta.
Vinha também muitas vezes na carreira visitar os meus primos Paiva Gomes a Moimenta e a Leomil que me presenteavam com lanches de chorar por mais e com uma manteiga de que nunca mais senti igual sabor. Desses tempos despreocupados e felizes, que trago sempre pela mão, fiquei intimamente ligado às gentes, às paisagens, às fragas, aos chãos destas terras com que me identifico e revejo a minha meninice. E por hoje voltar aqui fico grato ao meu amigo e colega Dr. Manuel de Lima Bastos, ao Senhor Presidente da Câmara, a todos, Senhoras e Senhores aqui presentes e, sobretudo, ao imortal Mestre Aquilino Ribeiro.

Senhoras e Senhores:

Peço-vos o vosso aplauso e a vossa aclamação em louvor e gratidão ao Dr. Manuel de Lima Bastos.

                                                                      
Na Foz do Douro, aos dias 16 de Maio de 2011.

                                                                                              MIGUEL VEIGA