2010-11-28

arde: 50 anos de palavras vallianas





arde: 50 anos de palavras vallianas

“Como o coração duro,
as coisas crescendo e andando,
a navalha cortando o poema
na sua lágrima , no choro,
na parcela mais sombria,
deixando o céu mais claro,
o cão mais branco, a toalha
mais limpa…”

Cinquenta anos exactos, prenhes, caem sobre o eterno século das palavras e, do embate, resulta um continuado equilíbrio, como se, afinal, houvesse na escritura do tempo um eco das três perfeições destinado aos lugares maiores, aos altos lugares. Das iniciais às lacerações poéticas últimas do escritor tondelense e nacional nunca tem andado afastado um tónus interrogativo e indagativo sugestivo sempre do melhor espanto, da intensa e produtiva perplexidade sugestiva.
Ardendo, a carne impregna-se de veias e o sangue é o tempo protelado. Mas haverá tempo para tão grande espera? É que dizer José Valle de Figueiredo é dizer lima laboriosa, memória fascinante e insuperável rigor. E depois há, desde o início, aquele ambivalente “no fundo a língua” , que cruza toda a malha aracnídea da obra do Poeta (“Esplêndido o silêncio para tecer a aranha./ Teia?/ Tecido o da aranha?” ) e o faz um artista de plurímodas qualidades – e digo de requintado estranhamento retórico-estilístico, original idiolecto poético de linhagem cratilista e metabólica, com as suas argúcias anagramáticas, ecfrásticas e seu curso anagógico; e digo de intencionada orientação transcendentalista e de confirmada feição ritualista , com claras alusões aos mistérios redentivos cristãos, à noese esotérica e ao profetismo lusíada.
Um galgo corre na folha branca e a matéria intensa do ardimento é sempre celebração da palavra, ritualidade e “ars poetica” assinalada: “Criada / do berço, na lavra / do verso terso, cresce / a poesia caça e caçadora.”
A língua à vida vem e do seu curso vário ressaltam memórias e cesuras temporais que convocam os códigos opticografemáticos do medievalismo e do classicismo operantes (e os exemplos seriam sempre muitos! ) – tal tonalidade poética alimenta-se, por exemplo, da proveniência mirandina e camoniana.
Nem pouco nem muito, a incisão sobre o vulgar dizer, dita faca e lâmina e navalha, escava-se, cava-se, entranha-se, distende-se, diz-se em modo disseminativo-recolectivo, nas suas isotopias estruturantes, dando-se, estendendo-se, demonstrando-se no templo aplacador da “poesia mais alta” imersa no encaixe de palavras vindas do tempo raso, do tempo fundo. E, então, as palavras ardem, significativas, enleando-se em bailado correlato, inebriante, articulando-se, amiúde fundindo-se (“mudave”, “barcalva”…) e antiquando-se (“Traz da natureza avorrecida” , “no dia mais fermoso” …), semas perdendo arestas e contornos ganhando no macrotexto poemático.
As palavras de José Valle de Figueiredo são naus de um mar bem antigo que não cessa de estuar na nossa pele, desafiando, desafiando sempre – As cinco regras do equilíbrio (1959), o por tempos inédito e depois quase integralmente desaparecido A palavra palavra (1960), Poemário (1966), A poesia animada (1968), Poemavra (1970), Gradual (1974), Portuguesimentos (1977), O provedor de vivos (1988), As três perfeições (2002) e O seu a seu poema (2006) são titulações seguras dentro da casa da poesia. Todas elas, em articulação macrotextual , cantam o supletivo, o magistério do mais alto e do mais poema, o TÃO enigmático como lavrantes sementes nascendo do chão ao tecto, da folha ao poema.
Poesia sobre a poesia, o ouriço de Jacques Derrida anima-se em busca da essência, de medidas e reflexões sobre o fazer-se. Abrindo-se e fechando-se, o ouriço poético de José Valle de Figueiredo é economia da memória, nas suas elipses e na sábia Verdichtung, e cardiografia explicativa.
Energia portadora, este “árduo labor / que da pedra cresce” e se abre em ferida é uma constante e crepitante arte poética sobre a fogueira da criação, repito. E mesmo quando parece existir um certo fechamento e uma intencionada deriva autotélica restam sempre os inversos signos agudos, para fora, mostrando “a parte que falta” . E a parte que falta é, tantas vezes, a geodesia de um roteiro sacro-sentimental, uma “líquida saudade” desaguando no branco da página, na carne e no sangue: desfilam, então, os mitemas das fundas guerras, os ruídos da história e os flashes metálicos roendo a memória, as dores fantasmáticas minando a Pátria e a poesia pragmática trazendo, longe e perto, dentro do corpo e da escrita, um eco da estranha paz guineense, volteando no esplendor e na explosão do poema:

A guerra em sua paz,
o canto em seu verso;
a palavra paz
em sua guerra,
vem seca ao mundo,
e o poema cresce
e lavra a terra.
A poesia é esta guerra.

De “visão clara, certa”, tal “a condição da poesia” de José Valle de Figueiredo, o poeta não empresta a faca e semeia o seu fio com mestria, lembrando eu, no passo, a semelhança da figura com as criações, também maiores, herbertinas e fortianas . Siga, na íntegra, o excelente poema VII da parte “A palavra Guiné” de Corpo de guerra:

O frio e a faca,
o dia e a poesia,
a tarde cortada mais fria,
seca e mais fria,
o frio e a faca.
Ou a morte ou o dia,
a terra ou a paz,
a água e a maresia;
o sol em sua claridade,
vem crescendo, vem andando.
O frio e a faca.

Quaisquer palavras mais alarmadas, empenhadas e circunstanciais (e destas poucas existem) são canto, organização de verso, secura de adiposidade, necessária vigilância oficinal e corpo sintáctico preso à terra – portugalidade, memorialismo, história funda, império sonhado e perfeição poética, eis uma enumeração em divisa que António de Sousa de Macedo, grande vulto do nosso Seiscentismo, há muito condensou na tríade entendimento-imaginação-memória e que agora tão cabalmente se pode aplicar a José Valle de Figueiredo e à sua laborante lavra.
É uma poesia silente e funda aquela que se levanta de antiga ara que congraça o rito do espanto perante o inefável poético. Como no poema “Na gruta de Camões” , entre ficar e não ficar, também as palavras do nosso poeta tondelense e português estão inscritos em gruta que não tem lugar e é o LUGAR. Do verso ao canto, em continuum de meio século, há desvelação e mostragem dentro de casa sábia e antiga que se faz e refaz como os gestos e as danças do incrível e tangente bestiário que tonifica a base selectiva e ilumina o múnus criativo. Assim no poema IV da parte “O animal” de Poemário:

Sem uma rosa
inviolada, longe
do olhar menos casto,
vem a faca mais afiada
trazer a consoada
ao nosso rasto.
Sem uma pena, dor,
com a caça mais conseguida,
uma flor já cantada
traz a faca mais afiada;
no coração mais longe,
na ilha descoberta,
vem o sol donde vai
a ferida mais aberta
- como um cão,
a sua coleira, a cauda,
com a plumagem do céu,
a ventura, aventuroso
como a flor, a lua
mais cheia, o nascente
que na praia alumia
uma rosa longe e casta.
Sem que uma flor
descubra o seu rasto,
uma faca vai rasgando
o seu sudário.

Em derrame, o poeta recolhe-se e trabalha as rescendentes fulgurações declinadas, erguendo sinais de si e de uma diáspora que é também insaciedade poética:

Despertam pelo espaço os caminhos
e de cada fulguração nascem pedaços
de todos nós: assim repartidos,
pelos claros sinais vamo-nos derramando
por lugares e andamentos.

E dessa antiguidade remota, ao crescerem poemas, afirmam-se cortes epistemológicos, mudanças operativas e esperanças mais esperançosas, porque “o que é de longe está mais perto, / tudo se pinta no poema certo.”
Olhando a criação valliana, de ontem até hoje esse “incêndio / do mistério mais secreto” tem vindo em crescendo, nunca descurando o compresente rigor limae e antes evoluindo para uma beleza emocionada e suspensa. Os estilhaços poéticos se, numa primeira fase, eram brilhantes e perfeitos, passaram, depois da funda pérola que sempre será o “Requiem por Jan Palach”, a ser decisivos e totalizadores. Lembro, por exemplo, o “rilkeano passo” “cada casa onde chegava / já não era a casa onde chegava” – e as sugestões a partir desta grande poesia serão sempre muitas ) e outros passos de disrupção como o trajecto de ruínas que se vai instalando em palco poético devastador (“Ruínas cresciam pelos versos / no discurso das mágoas” ), o mundo desconcertado (“a vida muda-se, muda-se a poesia / - mas não se muda nada, / não se muda a agonia” ) e o estilhaçamento do sujeito poético, que exemplifico com este caso avassalador que leio e cito integralmente:

Na mesa em que escrevo
já só tenho restos de mim:
cousas passadas, alegrias perdidas,
encantamentos desfeitos, caminhos não percorridos,
uma viagem que outra por fazer.
E a morte iluminada cresce
na orla do poema que vivi.

E depois vem à poesia uma redentora movência que nos diz “e mudando se ilumina / o que era encoberto” , bem como uma sublimante autofagia (“E assim continuamente, / vivia com poemas / a comer novos poemas / - mas já não morria” ), parecendo que, no sentido de Ricardo Reis, poder ver-se o que não pode ver-se. Assim a grande poesia, desvelando o oculto, decifrando o impossível e dando norte ao incompreensível.
É esta a infindável busca de José Valle de Figueiredo e assim são estes espantosos e luminosos cinquenta anos de uma textura movente, “misteriando” e “singulando” , imersa em sinais culturais (e as magníficas epígrafes e motivemas são iluminantes emblemas ), que desagua em “consoado poema / aquém-poema” . Venha a faca, em todo o momento, “com o seu fio, / cortar outro poema”, pois ele será brilho na distância e “verdadeira heteronímia das coisas” , como o diria um Roland Barthes. E, agora, é o momento de ceder o espaço ao oblativo e mistagógico texto que importa, até porque, como o diria o Poeta, “só dizemos o que calamos” . E tal é o segredo da língua, que Valle de Figueiredo claramente possui. Junto, Wittgenstein convida-nos ao silêncio.

BIBLIOGRAFIA ACTIVA
1959. "As cinco regras do equilíbrio", in Cidadela – Cultura Viva, Coimbra.
1961. “segundo poema a Rosa Cândida onde se exalta a sua primeira adolescência”, in tempo presente. Revista portuguesa de cultura, nº 23, III ano, p. 50.
1961. “Europa – sentido e acção”, ”, in tempo presente. Revista portuguesa de cultura, nº 27, III ano, pp. 82-84.
1966. “De propósito”, in Commedia. folha de poesia e crítica, Coimbra, 1966, pp. V-VI.
1966. “4 Poemas: ‘Primeiro discurso dos cristãos no coliseu de Roma’, ‘Flor de Florença’, ‘Segundo discurso dos cristãos’ e ‘Onde o amor canta’ ”, in Commedia. folha de poesia e crítica, Coimbra, 1966, pp. XI-XIV.
1966. Poemário, Coimbra, Commedia.
1968. A poesia animada, Lisboa, Commedia.
1970. Poemavra, Lisboa, Editorial Verbo.
1971. Antologia da poesia brasileira, “Livros RTP”, Lisboa, Verbo.
1972. Reforma universitária e política académica (Subsídios para um processo), “Futuro-Hoje”, Lisboa, Livraria Sampedro Editora.
1972. Diário do ano de 1971, Lisboa, Verbo. Com Armando Luiz.
1973. Diário do ano de 1972, Lisboa, Verbo. Com Armando Luiz.
1974. Gradual, Lisboa, Índex.
1974. Significado e valor das eleições: o país real, Braga, Editora Pax. Em co-autoria com Pinharanda Gomes e António Marques Bessa.
1977. Portuguesimentos, Lisboa, Índex.
1987. Exposição comemorativa de Fontes Pereira de Melo (Catálogo), Lisboa, Câmara Municipal de Lisboa.
1988. O provedor de vivos, Lisboa.
1998. Antologia poética de Luís de Magalhães, Maia, Câmara Municipal da Maia.
1999. As portas da graça: discurso breve sobre a obra de Vieira, Porto.
2000. Geografia literária da Maia, Maia, Câmara Municipal da Maia.
2001. Antologia poética de Tomás Ribeiro, Tondela, Câmara Municipal de Tondela.
2001. Cartas de Camilo Castelo Branco a Tomás Ribeiro, Tondela, Câmara Municipal de Tondela.
2001. Eça de Queirós e Luís de Magalhães, Maia, Câmara Municipal. da Maia.
2002. “Ao que vimos”, in Dom Jaime. cadernos de cultura, ano I, nº 1, Junho, p. 7.
2002. As três perfeições, Macau, Instituto Internacional.
2002. “De propósito”, in Dom Jaime. cadernos de cultura, ano I, nº 2, Dezembro, p. 7.
2002. “Camilo, Tomás Ribeiro e a Beira Alta”, in Dom Jaime. cadernos de cultura, ano I, nº 2, Dezembro, pp. 9-18.
2002. “Ao tom do Caminho”, in Dom Jaime. cadernos de cultura, ano I, nº 2, Dezembro, p. 108.
2003. Aproximações à vida e obra de Luís Magalhães, Maia, Câmara Municipal da Maia.
2003. “Levar e trazer recados”, in Dom Jaime. cadernos de cultura, ano II, nº 3, Dezembro, pp. 65-66.
2004. "Prefácio", in Uvas e champanhe:…segredos ao ouvido, de Eugénia Frazão.
2006. O seu a seu poema (1959-2002), “Biblioteca de Autores Portugueses”, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda.

BIBLIOGRAFIA PASSIVA

2006. José Carlos Seabra Pereira, “Da poesia anagramática como arcaica disciplina”, in O seu a seu poema (1959-2002), “Biblioteca de Autores Portugueses”, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2006, pp. 7-44.


CRONOLOGIA

1942. José Valle de Figueiredo nasce em Tondela.
1959. Dirige, com Artur Anselmo e Rui Abreu, a revista Cidadela-Cultura Viva, de que saíram dois números, durante o Outono e Inverno de 1959.
1966. Dirige Commedia. folha de poesia e crítica.
1972. O autor publica Reforma universitária e política académica (Subsídios para um processo).
1987. Coordenação e investigação no âmbito da Exposição comemorativa de Fontes Pereira de Melo, que decorreu em Lisboa.
2000-2002. Coordena os Cadernos do Mosteiro na cidade da Maia.
2001. Coordena, com José Augusto Maia Marques e Paulo Sá Machado, o “Colóquio Nacional sobre o Romance Histórico”, bem como as respectivas Actas.
2001. Organiza, prefacia e anota uma antologia poética de Tomaz Ribeiro, publicada em Tondela.
2001. Organiza, prefacia e anota as Cartas de Camilo Castelo Branco a Tomaz Ribeiro, publicadas em Tondela.
2002. Dirige, a partir de 2002, a revista D. Jaime. Cadernos de Cultura e o Centro de Estudos Tomaz Ribeiro.

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