Por que é que os inocentes, pobrezinhos,
não têm pão?
(Judith Teixeira, “O Poemeto das Sombras”)
Demarcando a fronteira entre o que é prolongamento cediço do sentimentalismo romântico ao tempo do Realismo, do Naturalismo e do Parnasianismo e o que é germinação tendencial nos últimos três lustros do século XIX, já em litígio com um passado e em complemento opositivo à disjunção decadentista e simbolista, diremos que essa latência finissecular, o Neo-Romantismo, ganha consistência no dealbar do novo século, hegemoniza-se no primeiro quartel - não obstante a revolução orfaica, ainda assistémica -, penetra o dito 2º Modernismo e prolonga-se epigonalmente até à exaustão ou até a revivescência ocasional, com vigência por todo o século XX.
O Neo-Romantismo postula a sagração poética pelo individualismo heróico e pelo avatarismo da Sehnsucht progressiva - esse anelo indefinível que puxa numa busca sem visibilidade -, manifestando-se numa poética regressiva, com secundarização do estranhamento, da sugestão, do esteticismo...
Tipifica-se na literatura portuguesa, desde o fim-de-século até, principalmente, ao primeiro quartel do século XX, um entrecruzar de correntes neo-românticas, com tonalidades diversas, nos seus matizes de surto, evolução, exaurimento e/ou actualização.
Assim, emergem neste lapso de tempo - cerca de cinquenta anos, sem contar os prolongamentos mais difusos -, o neo-romantismo vitalista, o neo-romantismo lusitanista e o neo-romantismo saudosista, partilhando todos esses romantismos de uma mesma poética, de imaginário afim e retórica similar, não obstante o hipotético conflitualismo ideológico-político dos seus autores.
Relativamente às motivações fundantes e à linha evolutiva, é marca do Neo-Romantismo, no seu conjunto, o dissídio entre a vocação e a condição, a estabilidade da nacionalidade e da tradição, a acessibilidade artística através do popularismo, a presunção recorrente da vidência e da inspiração gnóstica, a precedência da poesia face ao texto, o sincerismo afirmativo, o primado e a subrogação da arte, a emocionalidade e o conforto como função literária, o civilismo, o heterotelismo sociomoral e um imaginário rico de errância marginal e nobilitante, com notações naturistas, mediévicas, religiosas, históricas nacionais...
Separando agora as correntes, o neo-romantismo vitalista, que domina o primeiro decénio, aparece alicerçado nas filosofias nietzschianas e monistas-transformistas, consagrando uma poética do revoltado social, com matizes naturistas, dinâmicos, erótico-hedonistas e de aglomeração estilística.
Por seu turno, o neo-romantismo lusitanista, devedor das filosofias espiritualistas, consagra o indíviduo-poeta desventurado, veículo de um Volksgeist redentor e de valores tradicionalistas e nacionalistas - em oposição à modernidade -, que exalça a língua pátria, o historicismo pátrio e a democracia artística. A inquietação existencial e a crise da modernidade que o neo-romântico lusitanista vive particularizam-se no excurso caracterizador de José Carlos Seabra Pereira, que respigo no Dicionário de Literatura de Álvaro Manuel Machado, e que tão capazmente se aplica ao caso de Alzira Vieira, abrindo janela dilucidativa:
O vitalismo neo-romântico chama a si, desde o surto em 1902, com ascenso e manifestações em revistas, jornais, livros ou plaquettes até ao fim da década -, com adesão continuada ou conluio episódico, nomes como os de Fausto Guedes Teixeira, Augusto Gil, João de Barros, Afonso Lopes Vieira, Tomás da Fonseca, Florbela Espanca ou António Patrício, para me ater só aos mais conhecidos.
A corrente saudosista dimana assinaladamente de três figuras - Pascoais, Leonardo Coimbra e Jaime Cortesão - e do labor da "Renascença Portuguesa". A estes vultos juntar-se-ão ainda, pelo impacto e com prospecção temporal, um Correia de Oliveira, um Mário Beirão, um Afonso Duarte, um António Patrício, um Anrique Paço d'Arcos, um Vitorino Nemésio ou um José Gomes Ferreira.
O neo-romantismo lusitanista, com origem em finais de Oitocentos, na reacção antinaturalista e anticientista, bem como no dissídio esteticista, parte de correntes policêntricas - do profetismo moral de Jaime de Magalhães Lima, do novolusismo de Manuel da Silva Gaio, do teofiliano nacionalismo cultural e literário, do neogarrettismo de Alberto de Oliveira, do anterianismo de Carlos de Lemos (o fundador, com Beatriz Pinheiro, da primeira Ave-Azul ) e o seu proselitismo por Guedes Teixeira, do revivalismo de Júlio Dantas... -, é seguido por um Lopes Vieira ou um Correia de Oliveira, eclipsando-se nos dois primeiros lustros de início de século, arrastando-se em periódicos de êxito - Serões , Ilustração Portuguesa ...- e revivescendo com o Integralismo Lusitano, em escritores como os dois anteriores, António Sardinha, Mário Beirão, Afonso Duarte, Florbela Espanca, Américo Durão, Guilherme de Faria, Branca de Gonta Colaço, Laura Chaves, Oliva Guerra, Virgínia Vitorino, Maria de Carvalho, Maria da Cunha, António Alves Martins, Marta de Mesquita da Câmara, Fernanda de Castro...
Alzira Vieira não pôde deixar de colher influência deste neo-romantismo de vária sensibilidade, posicionada que estava no transcurso histórico e no devir temporal, em idade de aprendizagem e de colheita de influências, sem angústia, como, aliás, o prova o poema que passo a analisar.
Notável de coesão, isto é, de domínio de escrita, esta amostra vieiriana afirma, no sentido de Aquilino, estarmos perante, neste caso, uma mulher de letras que “repousa trabalhando ao torno”. Vivenciado e sincero, o poema de Alzira Vieira bem que recobre o preceituado de Seabra Pereira (“vivência tradicional do Mistério e da religiosidade, das crenças e práticas do catolicismo e do dolorismo cristão; adesão à denúncia social e ao gradualismo solidário no quadro da conciliação do realismo cristão e do moralismo piedoso; enaltecimento da virtude da caridade, interpretação ortodoxa da espiritualidade e da ética franciscanas”, repito), exaurindo as margens e cavando fundo fora das teorizações: as imprecações interrogativas e exclamativas percorrem as seis estrofes de um poema criando claro e inderrogável ideologema semântico-pragmático. Percutindo o sema “Caridade” em jeito de refrão com variações operativas, a Autora identifica, isola, exalta, reitera e eterniza um sentimento que quer colado ao coração dos homens. Destaca-se nesta linha de leitura de um sentimento neutralizador das mágoas, com fundas oposições doloristas, o penúltimo conjunto de versos, indiciosamente em atitude polimórfica (as modalidades são, em conjunto, apreciativa, deôntica e epistémica), coonestando o acto expressivo de haver o “Hospitalar modelar de Viseu”, sítio de divina bondade e de alcance meritório. Aproxima-se aqui Alzira Vieira do engajamento típico do slogan poético à maneira de Alexandre O’Neill. E talvez este ponto, à época (Julho de 1915), seja pouco menos do que inovador…
Adentro de um moralismo piedoso e de uma estesia solidária, o poema “A Caridade” de Alzira Vieira, sublimado pelas repetições municiadoras da “força patética” à Jean Cohen, parece devedor das palavras de Sua Excelência Reverendíssima Dom Henrique, Bispo de Trajanópolis, que, em apreciação ao Hospital da Misericórdia de Viseu, por 1899, expendeu o seguinte juízo: “Esta casa é uma das mais commovedoras manifestações da caridade christã, e o nosso espirito sente-se consolado por ver aqui socorrer tantas miserias.” (Boletim Diocesano, Ano III, nº 8, Agosto de 1899, p. 273.)
Assim o poema de Alzira Vieira, actuante e directo, vindo de uma forja acerada por um poder ígneo afirmador de um constante e “mesmo bem”.