2004-07-21

mesmo do retiro mais íntimo irrompe o verão juntos aos dedos e à pele. 

2004-06-09

de António Franco Alexandre

António Franco Alexandre é um poeta sem adjectivos. este é um caso exemplificativo da por mim dita superioridade poética. colha- -se, pois, a amostra alexandrina:

poema simples



Assim como o tempo passa
já posso ser o que sou
breve chuvisco de tarde
nublado pela manhã
sol em neve declinado
seco mar fresca aridez
Não deixo nem testamento
nem memória do que vi
as vozes que me habitaram
os corpos que me queimaram
não sei que sorte tomaram
nem que levaram de mim
É certo, julgamos sempre
olhar de frente o futuro
mas o que vemos é só
um braço de rio parado
muro de gruta pintado
a fazer vez de presente
Na linha do horizonte
perdeu-se outrora um navio
em terra fiquei deixado
ferido de sangue frio
de mãos e pés amarrado
à lembrança, mas de quê?
Fiz de palavras caminho
altas palmas o meu céu
amassei o solo escuro
só sol e mar me criaram
fiéis ao simples acaso
de algum dia ter nascido
Finalmente o fim do mundo!
embora seja seguro
que outro mundo há-de seguir
enquanto rodem as rodas
em perpétuo movimento
do inexorável motor
Amor amado desejo
vontade de outro não eu
rumor do corpo habitado
pela confusa visão
no olhar do bem-amado
de um sonho que não é meu
Desde cedo habituado
a ser o eco calado
de cego narciso, sem
nunca encontrar na mensagem
mais do que a pálida imagem
do seu jeito de ninguém
Às vezes, sobre uma cama
terrestre, de lençóis nus,
na formosura de um rosto
seja seu ou seja de outro
vejo o mundo ilimitado
que a sua cegueira vê
(Outra estória é a de orfeu
pois rimador aqui estou:
depois do frívolo idílio
no inferno, aconteceu
a pequena audácia trácia,
que virgílio não notou)
Por isso pouco me importa
se só vejo simulacros
por trás de muros compactos
se a idade me trava o passo
e cada hora me traz
uma volta mais no laço
Se sou apenas banal
e às vezes vos desagrado
rimando com mau efeito
é defeito de querer
dizer o que o corpo diz
só no seu eco perfeito
Por cada dia que passa
fico mais jovem e sábio
tal qual a mulher barbada
arrasto gentes à praça
escarnecido, culpado
de desafinado lábio
Nenhum símbolo me ocorre
nem sinal ou signo extremo
só do medo me arrependo
que teve tudo o que quis
do resto do que aprendi
me serve saber quem temo
Serve saber que serviço
me talhou desde noviço
que palavra humana quis
tomar-me por aprendiz
e logo desde o começo
justo preço me cobrou
Este de ser sem juízo
sem cautela premiada
e dedilhar no meu verso
em prejuízo da fama
o reverso da canção
que me foi encomendada
Este de sonhar em mim
um infame pesadelo
e de estar perto do fim
cada vez que recomeço
ser o servente delfim
em ausência permanente
Sentir na boca o degredo
na tua boca beijado
abandonar-te em segredo
a uma esquina quebrado
no mais ser o bom atleta
que nunca cortou a meta
Ó campos feliz paisagem
ou cenário acidental
da minha verdade toda
fica o sumário brutal
ter este rosto de tinta
e nenhum outro real
Poucos conhecem a infâmia
do melhor do que há em nós
ou a vergonha cansada
de ter ainda outra voz
em rima pobre sem nexo
nem louvor na embaixada
Do nosso amor fica sempre
um gosto a coisa deixada
para os mistérios do sexo
como roupa desleixada
só eu sei como te deito
na minha mão debruçada
Só eu sei da tua boca
o orifício encantado
o sabor a vento fixo
no ombro de asa rasgado
e o rastro tenso que fica
dos joelhos nas axilas
E no entanto não sei
de noite como te chamas
parece-me bem ouvir
outro sempre diferente
nome, quando nas chamas
se arrasta a musa decente
Mudas de rosto, de idade
mudas o gesto da mente
se abrindo as mãos me devassas
e em mim resta de quem és
sem memória nem promessa
um oco vácuo demente
Sou-te fiel mude embora
nome corpo rosto e acto
sei-te na sombra o exacto
rumor do tempo previsto
assim é que nasces e
mal me encontro me perdi
Agora, em ilha extrema
nativo náufrago eu
pintado de sexta-feira
escavando em tronco duro
planeio fugir de mim
na folha do mar ou fundo
Confundir-me com as velas
em leve teia de espuma
ser a medusa que aterra
as redondezas da terra
ouvir sem mastro nem pejo
o desejo da sereia
Talho na rija madeira
da melhor árvore que havia
a que mais fruto nos dava
mais fresca sombra deitava
na sombra muito ligeira
que como um véu nos vestia
Com a foice da serpente
ó instrumento imperfeito
afeito a carne macia
mas que nos basta na estória
assim contada à maneira
de vaga memória pia
A esse tronco é preciso
agora vir a contar
doze anos estive preso
em inferno paraíso
no jardim de contos feito
e sem fruto proibido
Eu era, se é que era,
mais um aroma no ar
a voz ao longe que espanta
quando cessa de cantar
ou outra imagem qualquer
capaz de a ti te acordar
Aí à beira do mundo
com os teus dedos de veludo
a correr, a tropeçar
no sentido imaginado
dos teus sentidos já lassos
de tão pouco enlaçar
Telegrafa-me depressa
enquanto não cessa a obra
de talhar, de amanhecer
apenas para que peça
um pouco de barro ou dessa
matéria que faz querer
Tocá-la senti-la tê-la
entre as mãos a acontecer
mas sem peso e sem figura
só emoção de tecer
o resto humano da dobra
que o tempo leva a dobrar
Noite e dia escavo e corto
não sei bem que forma faço
a foice foi de presente
à medida do meu braço
e quando repouso sonho
com o meu barco na corrente
Bem pequeno pode ser
pois me basta um lugar
vou deixar na ilha toda
a minha corte vulgar
de ti levo o pensamento
do teu nome singular
Vou partir para oriente
tomo o rumo das estrelas
com versos farei as velas
para o vento dominar
vou ver se existe outra gente
outro lado do pensar
Desejo ventos, procelas
de antigamente rezar
altas ondas que ameacem
as nuvens até no céu
quero ver se me arreceio
se me ponho a babujar
Se vejo a dama mesquinha
cortês a vou a saudar
minha antiga companheira
tua carga é bem ligeira
podes levar-me, não trago
bagagem nenhuma, vê
Só uma flauta, um caminho
que nos mapas se não lê
um rosto de linho velho
sem razão e sem porquê
mas não te iludas eu quero
à outra margem passar
Subir ao monte que avista
muros de cego cristal
tectos de palmas abertas
ao céu azul mineral
e ver os degraus da casa
desde a terra até ao céu
E ver os degraus da casa
como uma corda entrançada
de corpos letras papel
deixar nos muros do templo
a marca da minha mão
em testemunho fiel
Outrora tinha receio
de me perder pelo meio
da invisível floresta
onde o inimigo espreita
com tigres olhos de lume
e face dura de cão
Hoje o que temo é ter feito
letras tortas no meu chão
ter hesitado no leme
ser duro de coração
ter errado o peso justo
e dito não, dito não
Por vão cuidado da rima
ter descuidado o legado
que devia fazer meu
e não ter usado a lima
dos versos para dizer
ao mundo imundo o seu fim
Vou ver os degraus da casa
cedo na luz de oriente
sem receio de outra gente
nem da garra do leão
de mim é que tinha medo
agora já sei quem sou
(esta só é a lição)
Na praia já se começa
a ver o verde do mar
e se levantou o grito
das aves relógio aflito
descido ao sono profundo
que a sonhar se detém
Ao ar claro se evapora
um resto vago da aurora
que só a noite contém
tu bem sabes quanto custa
o preço desta demora
na morada de ninguém
Vou partir deixar a vida
nos seus crivos entretida
riscar de todos os livros
as armas que o tempo tem
quero ir a esse tempo
onde renascem os vivos
Na boca me deitem terra
para não morrer no mar
cubram de seda esta água
tão pouca que me bastou
e deixem-me pronta a mesa
para quando regressar
De ti nunca me despeço
minha sede meu senhor
tu que vês o que não digo
e o que não faço prevês
trazes a graça contigo
e o sentido que me dês
Da tua cegueira sou
desastrado escriturário
para te servir nas artes
não me troquei nem vendi
e só por erro servi
outro mando do que o teu
Também agora não peço
a garantia de autor
(para que no editor
assírio e alvim se publique
peço ao franco antónio que
tudo a seu cuidado fique)
Nem a taça nem o busto
nem o atleta robusto
que me leve em sua mão
nem o tesouro da serra
e o horizonte de terra
à medida do meu chão
Na verdade nada peço
senão a palavra que
me liberte desta ilha
me tire do pulso a anilha
e me destape do poço
que me demora o embarque
Quero ver a cor que tem
a tela do outro lado
e a razão do teu louvor
quando na obra acabada
de tudo quanto fizeste
disseste a morte melhor
Será agora que vejo
nascer o sol verdadeiro
o terrestre, que me acorda
e me liberta da corda
do primeiro pesadelo?
será que agora desperto
Numa alfândega distante
diante do sábio mono
e sua dama mesquinha
a queimar lenha no forno
onde se cozinha o novo
modo de assar o vizinho
E me acusam de ser
avesso e pouco cortês
e permitir a nudez
sem nenhuma metafísica
mas com cem sentidos bem
fisicamente despertos
E de ter nascido com
extraterrestres avós
de usar amor ao contrário
e ter feito este sumário
dando sentidos à voz
sem talento e sem pudor
Não me defendo sequer
curioso do tormento
original que inventaram
enquanto o lume se acende
verter-me em sórdido inferno
em lugar do happy end
Mas por força do desejo
e seres demónio aprendiz
acontece desta vez
ao contrário de moisés
que tu estás onde te vejo
eu estou onde não vês
Vem-me levar, extranave
desde Sura a Pumbedita
os dois extremos da terra
que já me cansa bater
à porta fechada rente
de alheia casa qualquer
Agora seria a hora
de uma grande conclusão
uma razão que pusesse
todos os dados na mão
mas o meu poema simples
tem rima, não tem razão
Outra que a dura presença
do teu rosto contra o meu
no lume que nos mistura
e se transforma até ser
a chama móvel que move
as roldanas do destino
Servirá de hobby-horse
pois traz em código morse
as evidências do mito
verás como o indecifram
enquanto mordo nas veias
uma agulha de infinito
Meu terno e bom capitão
por ti tudo tenho escrito
e diz-se que é longo o tema
para tão curto poema
mas se me deixas a mão
vou ali e tenho dito.


2004-06-08

a lei do desejo

corro sobre a água já sem pressa.
a lei do desejo

corro sobre a água já sem pressa.

2004-05-17

Régio vive nos objectos e nas velhas casas que habitou. Eis a proposta de leitura que o Prof. Doutor António Ventura nos cedeu e que aqui deixo, a benefício de inventário.

José Régio Antiquário
 
António Ventura

José Régio foi, e continua a ser, não obstante os eclipses conjunturais com que alguns teimam em obscurecer a sua obra, um dos escritores mais importantes da literatura portuguesa de todos os tempos e, simultaneamente, uma referência obrigatória da nossa cultura contemporânea. O carácter polifacetado da sua obra escrita – cultivou a poesia, a novela, o romance, o ensaio, o teatro, a crónica, a crítica, a epistolografia... - é reforçado pelas incursões noutros domínios, como o das artes plásticas, ao mesmo tempo que nunca enjeitou a necessidade que considerava essencial, de ser livre, de agir livremente, contra ventos e marés, sem ceder a popularidades fáceis e a aplausos gratuitos.
Propomo-nos abordar, neste breve artigo, uma das vertentes menos conhecidas da sua actividade cultural, e, curiosamente, uma das que teve maiores consequências na sua relação com o grande público de hoje: a de coleccionador[1]. De facto, para além dos seus livros que estão disponíveis – agora nas Obras Completas a cargo da Imprensa Nacional - , é através das casas – museus de Vila do Conde e de Portalegre que esse grande público mais facilmente tem contactado com o mundo de José Régio.
 Consideramos aqui a palavra «antiquário» na acepção que lhe dá Rafael Bluteau, no Vocabulário Português e Latino (1712): «curioso investigador de coisas antigas, de costumes velhos, de escrituras, medalhas, imagens dos antigos»[2]. O recente Dicionário da Academia, refere o substantivo «antiquário» em três acepções: «pessoa que se dedica ao estudo de coisas antigas, à investigação de antiguidades», «aquele que colecciona objectos antigos, antiguidades», e «negociante de antiguidades»[3].
Como e quando nasceu em José Régio o gosto pelas antiguidades e pelo coleccionismo? O próprio Poeta esclarece: «o gosto das coisas antigas não me nasceu no Alentejo. Ainda gaiato, eu escapulia-me para um caminho subterrâneo que há em Vila do Conde, nas ruínas do claustro do antigo convento, a procurar caquinhos de louça velha. Estudante em Coimbra, e, como se poderá supor, mal preparado financeiramente para tais aquisições, lá conseguira adquir três ou quatro peças que haviam pertencido a Mestre António Augusto Gonçalves. Aliás, já meu avô paterno comprara, no meu tempo, móveis e imagens que tinham sido integrados no recheio da nossa casa e eu olhava com olhos de curiosidade e cobiça. A coisa estava-me na massa do sangue...»[4]. Numa entrevista publicada na revista Mundo, em 1958, José Régio comentava a influência exercida sobre si pelo seu avô, António Maria Pereira, o «Antoninho ourives», como era conhecido pela profissão que exercia, e que era, também, um amante das coisas antigas que ainda abundavam no Norte, numa época em que poucos lhes atribuíam valor[5].
Durante a sua permanência em Coimbra, como estudante universitário, a situação económica não lhe permitiu, certamente, adquirir um número significativo de peças – embora tenhamos notícia de que comprou algumas - mas a conclusão da licenciatura e o início da carreira docente, proporcionaram-lhe novos recursos, se bem que nunca muito folgados. De facto, se passarmos em revista a correspondência que manteve regularmente com os pais, os problemas financeiros são uma tónica sempre presente, que o andar do tempo não aliviou, recorrendo a malabarismos diversos para ultrapassar alguns meses mais penosos[6]. A modesta remuneração mensal impunha um apertado orçamento que por vezes era inopinadamente subvertido...
Foi, porém, em Portalegre que se ampliou e desenvolveu o gosto de José Régio pelo coleccionismo. Na cidade e na região encontrou um campo fértil para as suas aquisições. A nível local, os coleccionadores eram raros, com destaque para o Dr. Laureano Sardinha – tio de António Sardinha, médico militar e homem possuidor de vasta cultura no campo da arte e das antiguidades, em especial da cerâmica portuguesa – e de Emílio Castro, que reuniu um notável conjunto de pratos «ratinhos», hoje no Museu Municipal de Portalegre.
Para além do artigo de O Primeiro de Janeiro de 1 de Janeiro de 1962, José Régio publicou ainda um outro, ficcionado, mas com uma base certamente verídica, intitulado «As Historietas dum Rebuscador de Antiguidades»[7], posteriormente incluído no volume Há Mais Mundos, mas com o título de «As Historietas dum Coleccionador de Antiguidades»[8]. Aquilo que principiou por ser uma passatempo transformou-se numa actividade regular, talvez o escape que a criação literária necessitava para manter um salutar equilíbrio. José Régio foi estabelecendo contactos com alguns comerciantes de antiguidades da região e mesmo de Lisboa que regularmente demandavam o Alentejo em busca de boas oportunidades. Como sucede com qualquer coleccionador, a permuta e mesmo a venda de peças começou a ser uma prática usual. Um coleccionador principia por «juntar» em quantidade e por se dispersar, mas, à medida que o tempo corre, apura o gosto, fixa e consolida preferências, especializa a colecção e aprofunda o estudo. Foi o que aconteceu com José Régio. A preferência pela arte popular foi-se afirmando, mas não perdia uma boa oportunidade de adquirir um objecto, mesmo que não se destinasse à sua colecção. E, por vezes, essas oportunidades surgiam, tentadoras, e José Régio sabia – como qualquer coleccionador sabe... – que há momentos que não se repetem. E o salário mensal era gasto integralmente: «o diabo tece-as: (neste caso, nem sei se seria o Diabo!). Foi-me oferecida uma peça de mobiliário que eu há muito cobiçava, que vale o dobro do preço apesar de não já não ser barata, e... não pude resistir. São coisas como não aparecem muitas vezes na vida, e eu teria grande desgosto de a perder. Não faltaria quem logo a adquirisse, recusando-a eu. Anda muita necessidade por toda a parte (a minha actividade de antiquário bem mo demonstra) mas também há sempre quem compre»[9].
A procura de antiguidades foi subindo, entre comerciantes da região e de Lisboa que por ali se deslocavam cada vez em maior número. Mesmo coleccionadores particulares começavam a surgir e procuravam José Régio. O Poeta habitava, desde que viera para Portalegre, no anexo da Pensão 21, à Boa Vista. Mas, à medida que o tempo passava, ia alugando e ocupando os diversos compartimentos que vagavam de modo a conquistar espaço para as suas antiguidades. Mesmo assim, a casa mais parecia um depósito[10]. A casa da Boa Vista era, porém, o cenário ideal para as suas peças, que iam povoando um espaço aparentemente amplo, mas que o número cada vez maior de objectos tornar exíguo. Havia que tomar medias. Em Julho de 1954, o Poeta alugou uma casa em frente à sua, pertencente à família Silveira (nº 44 da Boa Vista). Por vezes, quando as necessidades financeiras apertavam, José Régio era obrigado a desfazer-se de uma ou outra peça da sua colecção, acabando por se arrepender de tal passo e procurando depois, quase sempre infrutiferamente, por tentar recuperá-la.
Ainda nos anos trinta, José Régio estabeleceu contactos com diversos antiquários de Portalegre e da região, que lhe forneciam informações e com ao quais negociava, comprando e trocando peças. Em Estremoz, tinha excelentes relações com Wenceslau Lobo, tal como ele um coleccionador de Cristos, e que reuniu um acervo de cerca de 1500 peças .
Uma figura central neste universo tão peculiar foi Joaquim Alberto Martinho, mais conhecido como Mestre Martinho. Depois de ter estudado na Escola Industrial e começou a interessar-se pela marcenaria. Foi para Lisboa, onde se tornou um especialista e um artista de primeira qualidade na difícil arte da marchetaria. De regresso a Portalegre, a sua oficina era um ponto de encontro de amantes da Arte, como os professores e pintores João Tavares e Renato Torres, e o próprio José Régio. Com alguma frequência, depois de terminar as aulas, aquele ia até à oficina de Mestre Martinho e ali se entretinha a cavaquear. O hábil artesão também se começou a interessar por antiguidades, estreitando-se as relações entre ambos. Muitas peças adquiridas por Mestre Martinho acabaram ser transferidas para José Régio, como sucedeu com um belo contador indo-português, uma das melhores peças de mobiliário da casa de Portalegre.
Foi essa amizade com Mestre Martinho e a necessidade de responder à crescente aquisição de peças que necessitavam, de restauro que levou o Poeta a solicitar-lhe que dispensasse um dos aprendizes, Manuel Bilé, que passou a trabalhar para José Régio a partir das 17 horas no armazém da Boa Vista. Algum tempo depois, Manuel Bilé ficou como empregado de José Régio, se bem que na maior parte do tempo fosse trabalhasse para amigos do Poeta quando necessitavam dos serviços de um carpinteiro. Passou também a acompanhar regularmente Régio nas suas deambulações pelos arredores da cidade e mesmo até Vila Viçosa, Elvas e Estremoz, convertendo-se numa espécie de seu adjunto. Como dizia, em 1970, numa entrevista, «percorri com ele praticamente todo o distrito de Portalegre, comprando antiguidades e assistindo a cenas que jamais poderei esquecer»[11]. O carro de aluguer era o meio de transporte privilegiado.
De entre o vasto acervo que reuniu, José Régio tinha preferências. Mestre Bilé sublinha o gosto do Poeta pela arte popular, nas suas mais diversas vertentes, do mobiliário à cerâmica, da arte pastoril às rendas. A arte sacra ocupou um lugar de relevo, como o atesta a impressionante colecção de imagens de Cristo Crucificado e de outras imagens, com destaque para os belíssimos barros de Portalegre, que ele estudou, e aos quais pensou dedicar um escrito mais aprofundado. Régio partilhou esse gosto pelos barros alentejanos como seu irmão Júlio, coleccionador de barros de Estremoz, podendo a sua esplêndida colecção ser vista no Museu Municipal daquele cidade alentejana. Ambos participaram na organização da uma exposição de barros alentejanos, em 1962, em Évora, assinando em conjunto o texto introdutório do respectivo catálogo. Depois de passar à situação de reforma, em 1962, como as permanências em Portalegre se tornassem raras, Manuel Bilé manteve um contacto epistolar frequente com o Poeta, não só referente às antiguidades mas também aos mais diversos assuntos.
A casa da Boa Vista converteu-se, assim, num verdadeiro museu, mas privado, sendo ao mesmo tempo a residência do Poeta e só podendo ser visitado quando e se ele quisesse. A ideia de a converter num verdadeiro museu começou a ser ventilada nos finais dos anos cinquenta, mas só em 1968 a Câmara Municipal de Portalegre, sob a presidência do Prof. Manuel de Jesus da Silva Mendes, e com o empenhamento do Dr. Francisco Fino, decidiu adquirir o recheio, por um preço quase simbólico. Só depois da morte de José Régio, a Casa Museu foi oficialmente aberta ao público, sendo inaugurada a 23 de maio de 1972, pelo então Presidente do Conselho Prof. Marcello Caetano. Ficava assim, para a posteridade, como uma espécie de espaço simultaneamente físico e mítico, povoado dos objectos que Régio coleccionou e com os quais se identificou. Nessa Casa, nesses objectos, nesse ambiente, o Poeta vive.
 


[1] Veja-se o excelente artigo de João Marques, «José Régio e a Paixão pelas Antiguidades – a sensibilidade de um artista e de um místico», in Boletim do Centro de Estudos Regianos, Vila do Conde, nº 6-7, Junho-Dezembro de 2000, pp. 40 a 56, e o nosso estudo «A Casa velha, Tosca e Bela», in José Régio e a Arte Popular, Edição das Câmaras Municipais de Portalegre e de Vila do Conde, 2001, pp. 11 a 29.
[2] D. Rafael Bluteau, Vocabulário Português e Latino, Lisboa, Colégio de Artes da Companhia de Jesus, 1712, Tomo I, p. 410.
[3] Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, Lisboa, Academia das Ciências / Verbo, 2001, Volume I, p. 269.
[4] José Régio, «A Minha Casa de Portalegre. Como principia uma Colecção de Velharias», in O Primeiro de Janeiro, 1 de Janeiro de 1962.
[5] V. José Régio, Confissão dum Homem Religioso, Porto, Brasília, 1971, pp. 40 e segs.
[6] José Régio. Correspondência familiar: Cartas a seus pais, Introdução e notas de António Ventura, Portalegre, Ed. do Centro de Estudos José Régio, 1997.
[7] Publicado em O Primeiro de Janeiro, Ano Bom de 1962.

2004-05-09

o melhor da cidade chega-me do fundo das madeiras.

2004-04-27

as promessas são ameaças. os POETAS, não mais expulsos da cidade, instalam a retórica e a argumentação. é o tempo das palavras que são escritura. em volta, mordem as sombras de opacidade. afinal, émico ou ético?

2004-04-17

sabem a rosmaninho e a mel. não sabem.

2004-04-09

nos olhos e na boca. também nos pulsos. é o tempo do mel e do sangue. de voltar a casa como a ave ao seu ninho. em volta e no mundo, o eco da Paixão é inaudível. e o sangue queima a terra e poucos sabem...

2004-04-05

em casa. o ruído dos móveis estoira-me nos tímpanos. o calor sobe da cratera terrestre. do labirinto intímo vem a memória do menino de Bagdade. correndo contra a arma aperrada, correndo sempre pelo espaço venoso do invasor. dentro do inimigo, fora de si. o soldado industriado não sabe que dentro da pele há uma parte de si a arder. é esta a tristeza que Ruy Belo temia: a incapacidade administrativa. como não sofrer com tanto tempo gasto sem a espessura das palavras! e o menino corre por mim dentro florindo nesta boca e nos teus olhos...

2004-03-31

eis a superfície intensa do passado. silêncio quente que vai mostrando. pequena nascente do mel, luz opaca vinda de 1900. leitor atento, repara na humidade do tempo e nos fungos da devoração. é esta a fonte transformada que já somos. eis o lume em tua casa.

2004-03-28

Volto ao passado e aos fulgurantes anos de 1899-1901. Assim:

DE AVE AZUL OU DO OBSCURO DOMÍNIO: UMA REVISTA DE VISEU QUASE ESQUECIDA (I)


No dia 15 de Janeiro de 1899, saiu a lume, em Viseu, uma revista literária de arte e crítica, sob a direcção de Beatriz Pinheiro e Carlos de Lemos. Tal facto, o aparecimento de uma publicação de teor artístico na cidade de Grão Vasco, nessa dobragem de século, "caso é para surprehender mesmo quem use antaglypho" (Ave Azul , nº1). E é-o ainda hoje, volvidos cem anos sobre esse esforço pioneiro, único e, diga-se, irrepetível.
Essa revista, sem a inspiração do lucro ou a mania da celebridade, não obedecendo a quaisquer escolas literárias, pretendeu "gorgear a sua canção de sonho; ou melhor: realisar o sonho da sua canção."(Ibid.) E assim Ave Azul abriu as asas, "confiadamente, ao sol de Deus, no ceo azul como ella, acima das impuresas da terra, acima das paixões do homem, acima das miserias do seculo - aethere puro ..." (Ibid.), e voou com a ave de Minerva por dois intensos e fecundos anos.
Ainda na mesma nota de abertura, o poeta Carlos de Lemos anuncia de forma clara que Ave Azul é uma revista de arte e crítica, onde se recolherão versos, prosas e rudimentos de estética.
Face ao expendido, que importância terá tido ou poderá ter esse projecto, que justifique esta reaparição de um ruído de poucos conhecido?
Analisando rapidamente o trabalho então desenvolvido nesses dois anos, pela compulsão dos textos originais e originários, diremos que o primeiro fascículo da Série 1.ª de 15 de Janeiro de 1899 contém o manifesto de acção assinado por Carlos de Lemos, aberto ao eclectismo literário finissecular e à perenidade da memória e do sonho. Sem teorias da arte por que terçar senão as do bom gosto, este primeiro número encerra, para lá dos predominantes textos dos directores - destacam-se, por parte de Carlos de Lemos, os textos "João de Deus", "A Pintura e a Escultura em Vizeu" e a atenção prestada aos lusófilos e à bibliografia epocal, e, da responsabilidade de Beatriz Pinheiro, a parcelar incursão lírico-dramática "Anhelia" -, a presença importante do" “Musset português" Fausto Guedes Teixeira, com o poema "O Nosso Lar", composição do livro no prelo Esperança Nossa. O 2º número traz-nos, na honrosa coluna "Salla de Visitas", as participações líricas dos conceituados Eugénio de Castro ("Epigramma"), Manuel da Silva Gaio ("Canção dos tristes amores", do livro nascente Mondego ), Carlos de Mesquita ( poema que, sob o influxo de epígrafe verlainiana, se inicia com o verso "O ceu de perola velado") e Afonso Lopes Vieira ("0 meu Epitaphio"). Adentro do escopo crítico, é justo que realcemos ainda a atenção dedicada por Beatriz Pinheiro ao livro de contos de Ana de Castro Osório Infelizes e por Carlos de Lemos aos Versos Lusitanos do já citado Afonso Lopes Vieira. O 3º fascículo encerra um fragmento do romance no prelo Ambições de Ana de Castro Osório, um poema intitulado "Beijos" dedicado à escritora de Mangualde por Paulino d' Oliveira, seu marido, e a recensão de Carlos de Lemos a Saudades do Ceo de Eugénio de Castro. Avançando um pouco, o nº 5 da revista, com matéria defluente do exemplar anterior, conclui a breve narrativa "Vida e morte de Santa Affra" de Henrique de Vasconcelos, mostra o interessante poema de Carlos de Mesquita "Dança macabra", propõe, dentro da nova secção "Galeria Feminina", um soneto de Amélia Janny - poetisa que, no dizer de Costa Pimpão em Gente Grada, foi "muito conhecida de várias gerações que passaram por Coimbra" -, a par de duas outras escritoras menos conhecidas (Rosina e Florência Pereira de Moraes), reage ao quadro "Depois da refeição" do pintor Almeida e Silva através de um texto sin-cero de admiração de Beatriz Pinheiro, destacando-se ainda, sob a égide do título en-globante "Poetas da Beira ", o soneto “Voz do Céu" de Álvaro de Albuquerque e o poema coado de simplicidade "Pão de Amor" da autoria de António Correia d' Oliveira.
O 6º fascículo vale desde logo pela presença, na sua "Salla de Visitas", de três poemas de Camilo Pessanha, sob a designação genérica de "Lirismo Fruste", e assinalados com aquele "Macau, 1895", bem como pelos textos de Carlos de Lemos: o primeiro, o poema "Estrela d'Alva", a completar em próximo número, e o segundo, a recensão ao livro Esperança Nossa de Fausto Guedes Teixeira. O nº 7, na senda feminina, que é, aliás, cada vez mais uma preocupação da revista viseense, encerra um interessante conto de Beatriz Pinheiro intitulado "O Crime" e dois estimáveis sonetos de Theresa Luso ("Confidente" e "Crepusculo e alvorada"). Nos fascículos 8 e 9 desta primeira série colaboram ainda Afonso Lopes Vieira com o poema "A Dama Pé de Cabra", Eugénio de Castro com "Odes de Horácio" e o director Carlos de Lemos, que pela primeira vez deixa a "Chronica" de entrada a Beatriz Pinheiro, participando com um excurso recenseador sobre obra de Severo Portela A Crença de Anthero , autor este que o director de Ave Azul reverenciava, como facilmente se depreende do seu primeiro livro Miragens (1887-1891), publicado em 1893 pela Universidade de Coimbra, que reproduz uma carta de Antero de Quental a si dirigida e se inicia com o conjunto de poemas "Antherianas". A revista nº 10, prosseguindo agora com editorial de Beatriz Pinheiro, tem em si, entre outros, textos de Henrique de Vasconcelos ("O terror da Morte"), de Júlio de Lemos (“Na alcova de Esther") e de Carlos de Lemos ("A Emancipação da Mulher"). O fascículo seguinte, o nº 11, contém um "Sonnet d' Automne" de Philéas Lebesgue e uma estimulante polémica sobre a emancipação da mulher. O último fascículo do ano e da série de 1899, com regresso de Carlos de Lemos à "Chronica" inicial, desenvolve-se sob toada natalícia e aborda a personalidade poética de João Lúcio. E assim, com as omissões e os subjectivos destaques que um trabalho de desvelamento como este comporta, se cumpriram em quinhentas e setenta e seis páginas os voos desta debutante Ave Azul finissecular.
O ano de 1900 viu nascer a 2ª série de Ave Azul: os fascículos 1 e 2, que saem em conjunto, encerram uma empenhada "Chronica" de Beatriz Pinheiro de Lemos sobre o estatuto da mulher, os poemas "A Sombra" de João Lúcio e "Hora inefável" de Carlos de Lemos, importantes textos do escritor nascido em Lalim de Tarouca sobre Almeida Garrett e a emancipação da mulher, bem como um indicioso registo bibliográfico sobre obras saídas ao tempo (Alma Infantil de Ana de Castro Osório e livros de poesia de João de Barros, Cândido Guerreiro...); o fascículo 3º, de Março desse ano, abre com a célebre crónica de Carlos de Lemos sobre Oaristos de Eugénio de Castro, seguindo-se, no modo narrativo, "A Torre" de Henrique de Vasconcelos, no modo lírico, "Trovas" de Maria Veleda, e ainda, ambos por Carlos de Lemos, a recensão ao livro Mondego de Manoel da Silva Gaio e um importante texto polemizante sobre a emancipação da mulher que deverá ser apreciado em continuidade desde o final da 1ª Série; o exemplar de Abril continua o texto de Henrique de Vasconcelos, volta ao tema do emancipalismo feminino com Beatriz Pinheiro e veicula uma reflexão de Maria Veleda sobre Cândido Guerreiro; a revista n° 5 abre com uma crónica de Carlos de Lemos sobre o feminismo e faculta a "Salla de Visitas" a Maria Veleda, que aí publica "Trovas para acalentar"; no fascículo 6, com crónica de Beatriz Pinheiro, destacam-se a narrativa de Ana de Castro Osório "O Magusto", poemas de Pinho de Almeida e de Afonso Lopes Vieira, recensões a livros deste último (O Meu Adeus), de Eugénio de Castro (Constança ) e de António Correia de Oliveira (Antes do Fim do Dia ), bem como a continuação da polémica emancipalista desta vez assinada por Beatriz Pinheiro; a revista 8-9, de Agosto-Setembro, com Carlos de Lemos a assegurar a "Chronica", transcreve "A Philosophia da Natureza dos Naturalistas" de Antero de Quental, reinscreve o nome colaborador de Afonso Lopes Vieira, volta à carga com" A emancipação feminina" de Maria Velleda e Carlos de Lemos publica, adentro do modo lírico, "Palingenesia" e "Vox rerum"; a penúltima revista, constituída pelos fascículos 10 e 11, de Outubro e Novembro de 1900, convoca os nomes de Manoel da Silva Gaio, João e António Correia de Oliveira, Afonso Lopes Vieira, Júlio de Lemos, Fausto Guedes Teixeira, Roberto de Mesquita, Carlos de Mesquita, Gomes Leal ("Carta Preambular" sobre o livro Poema do Lar de Agostinho de Oliveira) e Almeida e Silva ("Um quadro da escola de Grão Vasco"), não sendo também despiciendo para a compreensão da recepção epocal o "Registo Bibliographico" com recensões de Carlos de Lemos a Dôr e Vida de Tomás da Fonseca, a Agonias de António Cardielos ou a O pomar de frutos, de João de Barros; por fim, a revista nº12, de Dezembro de 1900, abre com uma crónica assinada pela direcção que repõe na lembrança toda a actividade dos dois anos de Ave Azul , convocando para este último voo nomes como os de Carlos de Mesquita, João Correia de Oliveira ou Álvaro de Albuquerque. Por sobre as setecentas e vinte páginas publicadas em 1900 caía o tempo do fim e do silenciamento.

Por tudo o que atrás se disse, e como súmula do conteúdo percorrido, é justo concluir-se que:
a) a revista teve colaboradores nacionais de méri tos confirmados ( Afonso Lopes "íeira, Ana de Castro Osório, .\ntónio Correia de Oliveira, Ca!nilo Pessanha, Carlos de .\lesquita, Eugénio de Castro, Gomes Leal, Guedes l'eixeira ou M. da Silva Gaio são aqui mera exemplificação) e foi participada por autores estrangeiros (":.,ry René d'Yvermont, Gaston Fafet, ,\larc-Lcgrand, Philéas Lebcsque, Rafacl Altamira ou Thomazo Cannizzaro...);
b) em Ave-Azul terão colaborado ccrca de sessenta autores, num labor que ultrapassou o milhar de páginas (1296 pp.);
c) a publicação viseense teve, na 1.. série, as secções "Chronica", "Poetas da Beira", "Salla de Visitas", "Artes & Letras", "Portugal Lá Fora", "Registo Bibliographico", "Galeria Feminina", "Revista das Revistas" e "Carteira de Ave-Azuf', com as inovadoras "Flores Exoticas", "Bibliographia Infantil" e "LJ'ra Coimbrã", a partir da 2. série;
d) Ave-Azul teve um papel importantc, nesse virar de século, no panorama literário nacional, tendo ficado arquifamoso aquele texto de Carlos de I~emos, de pendor ensaístico, sobre o "nephelibatismo" ( Ave-Azul, II Série, Fasc. 3, Março de 1900. Sobre esse texto fala, por exemplo, João Gaspar Simões, na obra citada infi.a , a páginas 31 e 44).

I. Mas, afinal, que impacto ou repercussão teve esta actividade na crítica literária e nos estudiosos, desde então até aos nossos dias? Terá sido o projecto de Beatriz Pinheiro e Carlos de Lemos um enformador da literatura cinzenta, voz inaudível e provinciana espartilhada pelo mau gosto e pela impreparação? Ou, pelo contrário, uma actividade literária no sentido do critério e da qualidade?
Sem avançarmos para já quaisquer valorações axiológicas, socorrendo-nos de alguma bibliografia, de fácil acesso aos curiosos pela coisa literária , e conservando a diacronia de publicação, avançaremos dizendo que existem referências à revista de Viseu em:
2 . Por tudo o que ficou dito, e concluindo-se do interesse da publicação, espera-se que a originária Ave-Azul , com as suas duas séries, venha a merecer um trabalho de especialistas - pede-se urgentemente uma edição facsimilada... (ela estará aí, penso) - que definitivamente corte com um horizonte de memória lateral e esfumada. Provado ficou, assim o esperamos, que nesta Ave habita uma literatura por redescobrir. E assim, nesta arqueologia do conhecimento, se cumpre, no sentido de Coleridge, a possibilidade do regresso a Deus. Mas, se tudo permanecer na sombra, no reino do obscuro domínio, como falar dela e dos raios reflectidos?

2004-03-26

hoje lembro o passado. verão de 1998: o nº 0 de "Ave-Azul", ainda jornal. o editorial, programa de uns tantos, dizia:

"Este jornal, eco de um século"

"De rumorosas águas e baixios sombrios arranca agora esta ave. Elemento-água, como a própria vida, incorpora o éter dos voos por fazer. De si sopra uma voz antiga, de um Carlos de Lemos e de uma Beatriz Pinheiro, patronos desta velha forja, esquecida, obscuro domínio de uns quantos, brisa emocionada das flautas dos pastores sicilianos.

Ave, cessa o teu sono secular. Seremos a viagem que quiseres. Este é um espaço teu, animal exausto, redivivo, gume feérico no restolhar da sílaba, silêncio claro dos poetas de sempre.

Azul te seja o horizonte, ouve-nos, "que o dia te seja limpo", que do teu silêncio se construam as páginas de todas as artes, que de ti brote a dança do encantamento.

Ave-Azul, sopramos-te, agora..."

Eis o sumário do publicado:

António Manuel Ferreira, "Duas personagens de <>: Vénus e Baco" (ensaio).

Aiam Otsuaf, "Machina Mundi" (ensaio).

Anabela Ferreira Borges, "Beijos de amor" (trad. do poema "Vivamus, mea Lesbia, atque amemus" de Catulo).

Teresa Meruje, "D. Miguel da Silva" (divulgação).

Olga Albuquerque, "Os Nossos Sinos" (poesia).

Afonso Labatt, "O poeta irónico", "Nítido Inverno" e "Passado sem futuro" (poesia).

António Gil, "O sol saltou sobre a cidade"*, "Caminhando só sobre a minha última", "Ainda é possível reconstruir", "Reflectindo cheguei a este ponto" e "Uma manada de potros selvagens se alvoroça".

* O sol saltou sobre a cidade
e afogou-se no mar.

Ao contrário dos outros cegos
ainda vejo o mundo
como se o pudesse tactear.

José Carlos Seabra Pereira, "Carlos de Lemos: a obra poética e a acção literária" (ensaio).

António Fonseca Caloba, "Papel pensativo", "Vida de nadas", "Mãos despidas", "Palavras floridas" e "Soneto incompleto" (poesia).

Paulo Neto, "Mário Cesariny de Vasconcelos" (ensaio).

Martim de Gouveia e Sousa, "António de Albuquerque: o nobre revolucionário arrependido" (ensaio).

António Fonseca Caloba, "Pedinte..." (conto).


Acaba a publicação com um dito de Frei Johan Alvarez, assim:

"O que vos parecer digno
de reprensom ou de coregimento
seia posto a minha inorançia e sinpreza e non
a outra maleçioso engano."

Tal a condição humana.

azul e uma língua bífida. afinal, fado alexandrino vindo dos pastores sicilianos: "Por uma perna me agarras, a meio / da noite que se parte em mil bocados, / e embora durma sei que estou desperto / noutra ruga do tempo, ondes existes." (António Franco Alexandre, "Duende")
é da ruga do tempo a viagem que começa. do tempo aberto começado. espera...

2004-03-25

azul e uma língua bífida, digo.assim, fado alexandrino e sopro sonetista das velhas flautas sicilianas: "Por uma perna me agarras, a meio / da noite que se parte em mil bocados, / e embora durma sei que estou desperto / noutra ruga do tempo, onde existes." (António Franco Alexandre, "Duende")
partimos da ruga do tempo, sem alarde, explosão dentro do corpo duradoura. afinal três inimagináveis séculos aqui connosco, leitor remoto. espera, talvez amanhã...

2004-03-24

o corpo incha contra a lama que o envolve. com antónio pedro, digo que a história que vou contar é apenas uma narrativa. Vinda da velha casa, quente, fundamente ardente. em breve, a história da poesia. Ou melhor, a história da literatura contada por uma novíssima ave, também azul.

2004-03-23

de novo, cheio. a melancolia do conseguimento cai no corpo.

2004-03-22

a literatura começa aqui. exige o acto atenção segura. desconfias? breve, essa qualidade, cede ao momento e dirás ter visto o início colado ao tempo.
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