2004-05-17

Régio vive nos objectos e nas velhas casas que habitou. Eis a proposta de leitura que o Prof. Doutor António Ventura nos cedeu e que aqui deixo, a benefício de inventário.

José Régio Antiquário
 
António Ventura

José Régio foi, e continua a ser, não obstante os eclipses conjunturais com que alguns teimam em obscurecer a sua obra, um dos escritores mais importantes da literatura portuguesa de todos os tempos e, simultaneamente, uma referência obrigatória da nossa cultura contemporânea. O carácter polifacetado da sua obra escrita – cultivou a poesia, a novela, o romance, o ensaio, o teatro, a crónica, a crítica, a epistolografia... - é reforçado pelas incursões noutros domínios, como o das artes plásticas, ao mesmo tempo que nunca enjeitou a necessidade que considerava essencial, de ser livre, de agir livremente, contra ventos e marés, sem ceder a popularidades fáceis e a aplausos gratuitos.
Propomo-nos abordar, neste breve artigo, uma das vertentes menos conhecidas da sua actividade cultural, e, curiosamente, uma das que teve maiores consequências na sua relação com o grande público de hoje: a de coleccionador[1]. De facto, para além dos seus livros que estão disponíveis – agora nas Obras Completas a cargo da Imprensa Nacional - , é através das casas – museus de Vila do Conde e de Portalegre que esse grande público mais facilmente tem contactado com o mundo de José Régio.
 Consideramos aqui a palavra «antiquário» na acepção que lhe dá Rafael Bluteau, no Vocabulário Português e Latino (1712): «curioso investigador de coisas antigas, de costumes velhos, de escrituras, medalhas, imagens dos antigos»[2]. O recente Dicionário da Academia, refere o substantivo «antiquário» em três acepções: «pessoa que se dedica ao estudo de coisas antigas, à investigação de antiguidades», «aquele que colecciona objectos antigos, antiguidades», e «negociante de antiguidades»[3].
Como e quando nasceu em José Régio o gosto pelas antiguidades e pelo coleccionismo? O próprio Poeta esclarece: «o gosto das coisas antigas não me nasceu no Alentejo. Ainda gaiato, eu escapulia-me para um caminho subterrâneo que há em Vila do Conde, nas ruínas do claustro do antigo convento, a procurar caquinhos de louça velha. Estudante em Coimbra, e, como se poderá supor, mal preparado financeiramente para tais aquisições, lá conseguira adquir três ou quatro peças que haviam pertencido a Mestre António Augusto Gonçalves. Aliás, já meu avô paterno comprara, no meu tempo, móveis e imagens que tinham sido integrados no recheio da nossa casa e eu olhava com olhos de curiosidade e cobiça. A coisa estava-me na massa do sangue...»[4]. Numa entrevista publicada na revista Mundo, em 1958, José Régio comentava a influência exercida sobre si pelo seu avô, António Maria Pereira, o «Antoninho ourives», como era conhecido pela profissão que exercia, e que era, também, um amante das coisas antigas que ainda abundavam no Norte, numa época em que poucos lhes atribuíam valor[5].
Durante a sua permanência em Coimbra, como estudante universitário, a situação económica não lhe permitiu, certamente, adquirir um número significativo de peças – embora tenhamos notícia de que comprou algumas - mas a conclusão da licenciatura e o início da carreira docente, proporcionaram-lhe novos recursos, se bem que nunca muito folgados. De facto, se passarmos em revista a correspondência que manteve regularmente com os pais, os problemas financeiros são uma tónica sempre presente, que o andar do tempo não aliviou, recorrendo a malabarismos diversos para ultrapassar alguns meses mais penosos[6]. A modesta remuneração mensal impunha um apertado orçamento que por vezes era inopinadamente subvertido...
Foi, porém, em Portalegre que se ampliou e desenvolveu o gosto de José Régio pelo coleccionismo. Na cidade e na região encontrou um campo fértil para as suas aquisições. A nível local, os coleccionadores eram raros, com destaque para o Dr. Laureano Sardinha – tio de António Sardinha, médico militar e homem possuidor de vasta cultura no campo da arte e das antiguidades, em especial da cerâmica portuguesa – e de Emílio Castro, que reuniu um notável conjunto de pratos «ratinhos», hoje no Museu Municipal de Portalegre.
Para além do artigo de O Primeiro de Janeiro de 1 de Janeiro de 1962, José Régio publicou ainda um outro, ficcionado, mas com uma base certamente verídica, intitulado «As Historietas dum Rebuscador de Antiguidades»[7], posteriormente incluído no volume Há Mais Mundos, mas com o título de «As Historietas dum Coleccionador de Antiguidades»[8]. Aquilo que principiou por ser uma passatempo transformou-se numa actividade regular, talvez o escape que a criação literária necessitava para manter um salutar equilíbrio. José Régio foi estabelecendo contactos com alguns comerciantes de antiguidades da região e mesmo de Lisboa que regularmente demandavam o Alentejo em busca de boas oportunidades. Como sucede com qualquer coleccionador, a permuta e mesmo a venda de peças começou a ser uma prática usual. Um coleccionador principia por «juntar» em quantidade e por se dispersar, mas, à medida que o tempo corre, apura o gosto, fixa e consolida preferências, especializa a colecção e aprofunda o estudo. Foi o que aconteceu com José Régio. A preferência pela arte popular foi-se afirmando, mas não perdia uma boa oportunidade de adquirir um objecto, mesmo que não se destinasse à sua colecção. E, por vezes, essas oportunidades surgiam, tentadoras, e José Régio sabia – como qualquer coleccionador sabe... – que há momentos que não se repetem. E o salário mensal era gasto integralmente: «o diabo tece-as: (neste caso, nem sei se seria o Diabo!). Foi-me oferecida uma peça de mobiliário que eu há muito cobiçava, que vale o dobro do preço apesar de não já não ser barata, e... não pude resistir. São coisas como não aparecem muitas vezes na vida, e eu teria grande desgosto de a perder. Não faltaria quem logo a adquirisse, recusando-a eu. Anda muita necessidade por toda a parte (a minha actividade de antiquário bem mo demonstra) mas também há sempre quem compre»[9].
A procura de antiguidades foi subindo, entre comerciantes da região e de Lisboa que por ali se deslocavam cada vez em maior número. Mesmo coleccionadores particulares começavam a surgir e procuravam José Régio. O Poeta habitava, desde que viera para Portalegre, no anexo da Pensão 21, à Boa Vista. Mas, à medida que o tempo passava, ia alugando e ocupando os diversos compartimentos que vagavam de modo a conquistar espaço para as suas antiguidades. Mesmo assim, a casa mais parecia um depósito[10]. A casa da Boa Vista era, porém, o cenário ideal para as suas peças, que iam povoando um espaço aparentemente amplo, mas que o número cada vez maior de objectos tornar exíguo. Havia que tomar medias. Em Julho de 1954, o Poeta alugou uma casa em frente à sua, pertencente à família Silveira (nº 44 da Boa Vista). Por vezes, quando as necessidades financeiras apertavam, José Régio era obrigado a desfazer-se de uma ou outra peça da sua colecção, acabando por se arrepender de tal passo e procurando depois, quase sempre infrutiferamente, por tentar recuperá-la.
Ainda nos anos trinta, José Régio estabeleceu contactos com diversos antiquários de Portalegre e da região, que lhe forneciam informações e com ao quais negociava, comprando e trocando peças. Em Estremoz, tinha excelentes relações com Wenceslau Lobo, tal como ele um coleccionador de Cristos, e que reuniu um acervo de cerca de 1500 peças .
Uma figura central neste universo tão peculiar foi Joaquim Alberto Martinho, mais conhecido como Mestre Martinho. Depois de ter estudado na Escola Industrial e começou a interessar-se pela marcenaria. Foi para Lisboa, onde se tornou um especialista e um artista de primeira qualidade na difícil arte da marchetaria. De regresso a Portalegre, a sua oficina era um ponto de encontro de amantes da Arte, como os professores e pintores João Tavares e Renato Torres, e o próprio José Régio. Com alguma frequência, depois de terminar as aulas, aquele ia até à oficina de Mestre Martinho e ali se entretinha a cavaquear. O hábil artesão também se começou a interessar por antiguidades, estreitando-se as relações entre ambos. Muitas peças adquiridas por Mestre Martinho acabaram ser transferidas para José Régio, como sucedeu com um belo contador indo-português, uma das melhores peças de mobiliário da casa de Portalegre.
Foi essa amizade com Mestre Martinho e a necessidade de responder à crescente aquisição de peças que necessitavam, de restauro que levou o Poeta a solicitar-lhe que dispensasse um dos aprendizes, Manuel Bilé, que passou a trabalhar para José Régio a partir das 17 horas no armazém da Boa Vista. Algum tempo depois, Manuel Bilé ficou como empregado de José Régio, se bem que na maior parte do tempo fosse trabalhasse para amigos do Poeta quando necessitavam dos serviços de um carpinteiro. Passou também a acompanhar regularmente Régio nas suas deambulações pelos arredores da cidade e mesmo até Vila Viçosa, Elvas e Estremoz, convertendo-se numa espécie de seu adjunto. Como dizia, em 1970, numa entrevista, «percorri com ele praticamente todo o distrito de Portalegre, comprando antiguidades e assistindo a cenas que jamais poderei esquecer»[11]. O carro de aluguer era o meio de transporte privilegiado.
De entre o vasto acervo que reuniu, José Régio tinha preferências. Mestre Bilé sublinha o gosto do Poeta pela arte popular, nas suas mais diversas vertentes, do mobiliário à cerâmica, da arte pastoril às rendas. A arte sacra ocupou um lugar de relevo, como o atesta a impressionante colecção de imagens de Cristo Crucificado e de outras imagens, com destaque para os belíssimos barros de Portalegre, que ele estudou, e aos quais pensou dedicar um escrito mais aprofundado. Régio partilhou esse gosto pelos barros alentejanos como seu irmão Júlio, coleccionador de barros de Estremoz, podendo a sua esplêndida colecção ser vista no Museu Municipal daquele cidade alentejana. Ambos participaram na organização da uma exposição de barros alentejanos, em 1962, em Évora, assinando em conjunto o texto introdutório do respectivo catálogo. Depois de passar à situação de reforma, em 1962, como as permanências em Portalegre se tornassem raras, Manuel Bilé manteve um contacto epistolar frequente com o Poeta, não só referente às antiguidades mas também aos mais diversos assuntos.
A casa da Boa Vista converteu-se, assim, num verdadeiro museu, mas privado, sendo ao mesmo tempo a residência do Poeta e só podendo ser visitado quando e se ele quisesse. A ideia de a converter num verdadeiro museu começou a ser ventilada nos finais dos anos cinquenta, mas só em 1968 a Câmara Municipal de Portalegre, sob a presidência do Prof. Manuel de Jesus da Silva Mendes, e com o empenhamento do Dr. Francisco Fino, decidiu adquirir o recheio, por um preço quase simbólico. Só depois da morte de José Régio, a Casa Museu foi oficialmente aberta ao público, sendo inaugurada a 23 de maio de 1972, pelo então Presidente do Conselho Prof. Marcello Caetano. Ficava assim, para a posteridade, como uma espécie de espaço simultaneamente físico e mítico, povoado dos objectos que Régio coleccionou e com os quais se identificou. Nessa Casa, nesses objectos, nesse ambiente, o Poeta vive.
 


[1] Veja-se o excelente artigo de João Marques, «José Régio e a Paixão pelas Antiguidades – a sensibilidade de um artista e de um místico», in Boletim do Centro de Estudos Regianos, Vila do Conde, nº 6-7, Junho-Dezembro de 2000, pp. 40 a 56, e o nosso estudo «A Casa velha, Tosca e Bela», in José Régio e a Arte Popular, Edição das Câmaras Municipais de Portalegre e de Vila do Conde, 2001, pp. 11 a 29.
[2] D. Rafael Bluteau, Vocabulário Português e Latino, Lisboa, Colégio de Artes da Companhia de Jesus, 1712, Tomo I, p. 410.
[3] Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, Lisboa, Academia das Ciências / Verbo, 2001, Volume I, p. 269.
[4] José Régio, «A Minha Casa de Portalegre. Como principia uma Colecção de Velharias», in O Primeiro de Janeiro, 1 de Janeiro de 1962.
[5] V. José Régio, Confissão dum Homem Religioso, Porto, Brasília, 1971, pp. 40 e segs.
[6] José Régio. Correspondência familiar: Cartas a seus pais, Introdução e notas de António Ventura, Portalegre, Ed. do Centro de Estudos José Régio, 1997.
[7] Publicado em O Primeiro de Janeiro, Ano Bom de 1962.

2004-05-09

o melhor da cidade chega-me do fundo das madeiras.