0. Este ensaio mantém, com escassas alterações, a versão que saiu no "Jornal do Centro" de Viseu.
1. O bom amigo e livreiro (para mim, sempre) Sérgio Alexandre Corrêa de Sá e Mello Vaz da Silveira Pinto Ribeiro, também estruturado leitor e poeta, chamou-me a atenção, como tantas vezes acontece na sua livraria, para o então novo livro de poesia da Palimage Editores, ínsito na colecção “Palavra Poema”, da autoria de Cristina Néry.
Tomei a admonição como convite à leitura e transportei comigo esse novo corpo poético, de aspecto esbatidamente róseo e estranhamente atractivo. Sentado na noite, li o objecto literário desde o título estranhizante: O Ciclo das Sedas.
Tomei a admonição como convite à leitura e transportei comigo esse novo corpo poético, de aspecto esbatidamente róseo e estranhamente atractivo. Sentado na noite, li o objecto literário desde o título estranhizante: O Ciclo das Sedas.
2. O passado é presente e assim o mantenho. Esbarro no prefácio de Graça Capinha. Ainda fora do texto, um paratexto não pode fugir à interpretação que desde já faço. Longe dos vulgares actos celebrativos, que avançam apodos que contraditam habitualmente a substância do corpo textual, não ouso como a prefaciadora falar da “verdadeira voz feminina” ou de “um dos mais inovadores livros de poemas em português” lidos nos últimos anos. Em propriedade, interessa pouco acentuar o “sexo dos textos” (digo-o mesmo “mal de hermeneuta”) e é deslize distraído tocar-se displicentemente com dito oco na poesia portuguesa – a falar-se de inovação, não parece justa a pose que apela à inferência do primado da literatura estrangeira sobre a nacional, que é só, nomeadamente na poesia, uma das mais cotadas e estimulantes a nível mundial. Mas talvez a escoliasta quisesse colocar apenas Cristina Néry na “casa da Poesia” e desejasse ter dito “um dos mais inovadores livros de poemas”… E assim tudo bateria certo.
3. Sobrevêm então a dedicatória, de discutível alcance noético, e uma iluminante epígrafe de “fazer poético” da autoria de José María Antolín (Vaquerizo), o poeta e pintor valladolidiano radicado em Nova Iorque, autor de livros como “Cuenco: 1985-1989” (1995), “El Cuerpo del Libro Quemado” (1998) e “El Alimento No Humano” (2005?).
4. Agora a colectânea de textos, que leio no esboroar da noite. E digo que um velho e misterioso fragmento de Arquíloco avisa que a raposa sabe muitas coisas, mas o ouriço-cacheiro sabe uma grande coisa. Tal asserto viu o tempo embrenhar-se no enigma, decidindo o arco hermenêutico dos intérpretes pelo velho dissídio entre a contradição e o princípio único. Explico-me: deve a poesia de Cristina Néry reposicionar-se ao centro nesta fábula, esquecendo muito do que sabe e aproximando-se de si. Ou seja, inscrever o lugar um pouco mais longe da contradição e um pouco mais perto do absoluto, como um outro ouriço desafiador que Derrida vê “lançado na estrada, absoluto, solitário, enrolado em bola junto de si.”
Habitável e transitável pela indesmentível vocação do princípio único que é a “casa da poesia”, este “O Ciclo das Sedas”, debutante e em processo, vive ainda o tempo da contradição. Não espanta. Os caminhos mais felizes começam assim. Ambas as mãos sobre o corpo (Maria Teresa Horta), pode dizer o poeta que este é ainda o crescimento do seu corpo.
Abrindo-se o primeiro poema sob o signo do desejo (“que o corpo seja a harpa que me toca / como sangue que me pontua / das escarpas do fôlego.”) e da inscrição poética das grandes vozes de influência (lembro o início do fulgurante poema “O amor em visita” de Herberto Helder: “Dai-me uma jovem mulher com sua harpa de sombra / e seu arbusto de sangue.”), realço no conjunto a ousadia óptico-grafemática (o ponto inicial, por exemplo), a força patética (Jean Cohen) comparativa (“como sangue”, “como se parindo”, “como um dardo”…), as associações vocabulares surrealizantes (“búzios sangrentos”, “pulmões das noites”…), os bons conseguimentos versificatórios (v. g. , “.quando a terra se some há a decifração do medo”) ou a sintagmática e o grafismo “à Al Berto” (e.g., poemas 12 e 18).
Poderia agora fender o íntimo corpo (“como a linha da anca de uma mulher pulsa com as órbitas / uma eternidade empoleirada na carne.”) deste “ciclo das sedas”: como o aracne pode agora a larva da “Bombyx mori” mostrar as secreções glandulares encostadas ao corpo e volvidos três dias ser crisálida. Nos vinte e oito passos do ciclo, certamente feminino, cesso a escuta e sei que, como Édipo em Colono, existe o enigma da linguagem. Dita a palavra, em poesia, a representação é não-representação e vice-versa.
Do silêncio larvar do texto de Cristina Néry, compósito e sexualmente poético-indagativo-experimental, levanta--se uma força jovem que a temporalidade acertará junto aos ombros do corpo. Leia-se, pois, esta colectânea com a certeza de que em conjunto, menos cegos, estaremos mais perto e mais longe do texto. É este o mistério da literatura. Da grande literatura que, no sentido de Seamus Heaney, ensina a “acertar no veio entre as linhas a negro.” Como o diz, por exemplo, o poema final de Cristina Néry:
Habitável e transitável pela indesmentível vocação do princípio único que é a “casa da poesia”, este “O Ciclo das Sedas”, debutante e em processo, vive ainda o tempo da contradição. Não espanta. Os caminhos mais felizes começam assim. Ambas as mãos sobre o corpo (Maria Teresa Horta), pode dizer o poeta que este é ainda o crescimento do seu corpo.
Abrindo-se o primeiro poema sob o signo do desejo (“que o corpo seja a harpa que me toca / como sangue que me pontua / das escarpas do fôlego.”) e da inscrição poética das grandes vozes de influência (lembro o início do fulgurante poema “O amor em visita” de Herberto Helder: “Dai-me uma jovem mulher com sua harpa de sombra / e seu arbusto de sangue.”), realço no conjunto a ousadia óptico-grafemática (o ponto inicial, por exemplo), a força patética (Jean Cohen) comparativa (“como sangue”, “como se parindo”, “como um dardo”…), as associações vocabulares surrealizantes (“búzios sangrentos”, “pulmões das noites”…), os bons conseguimentos versificatórios (v. g. , “.quando a terra se some há a decifração do medo”) ou a sintagmática e o grafismo “à Al Berto” (e.g., poemas 12 e 18).
Poderia agora fender o íntimo corpo (“como a linha da anca de uma mulher pulsa com as órbitas / uma eternidade empoleirada na carne.”) deste “ciclo das sedas”: como o aracne pode agora a larva da “Bombyx mori” mostrar as secreções glandulares encostadas ao corpo e volvidos três dias ser crisálida. Nos vinte e oito passos do ciclo, certamente feminino, cesso a escuta e sei que, como Édipo em Colono, existe o enigma da linguagem. Dita a palavra, em poesia, a representação é não-representação e vice-versa.
Do silêncio larvar do texto de Cristina Néry, compósito e sexualmente poético-indagativo-experimental, levanta--se uma força jovem que a temporalidade acertará junto aos ombros do corpo. Leia-se, pois, esta colectânea com a certeza de que em conjunto, menos cegos, estaremos mais perto e mais longe do texto. É este o mistério da literatura. Da grande literatura que, no sentido de Seamus Heaney, ensina a “acertar no veio entre as linhas a negro.” Como o diz, por exemplo, o poema final de Cristina Néry:
como se escrevesse a língua ameaçada
como um buraco de matéria interna.
há sempre morrer infiltrada
como um delírio vingativo
como um odor no final da chuva.
3 comentários:
Dizem que o Manson come bichos-da-seda.
.......boas férias....
abraço.
boa noite martim
...assim se vive escavando o corpo escrevente da poesia...
abraço
e
bom carnaval
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