2006-11-18

Lápis e memória: nos 25 anos de "Conspirador Celeste", de Fernando Luís Sampaio


Poucas vezes um primeiro livro é assim tão definitivo e nem sempre um tirocínio literário é anunciado ao mundo com um prémio iluminante como é o “Prémio Revelação de Poesia”, no caso, do ano de 1981.
Fernando Luís Sampaio, poeta também da circunstância viseense, como há algum tempo ficou dito a propósito de “Falsa partida” (2005), encerra já em “Conspirador Celeste” (1983) as lexias operativas de uma poesia que se “desfaz em imagens”, como se houvesse um lápis escutador encostado à memória prestes a explodir em traços e sugestões.
Abre a colectânea, constituída por 25 poemas, com duas epígrafes de Blanchot e Michaux, ambas aludindo à guarda celestina.
Transbordante de pletora explosiva, são imagens da infância (“A breve trecho sinto a infância à boca das / vagas”) e o súbito “trabalho da distância” que operam nos dedos da linguagem. Assume-se, pois, a memória líquida (“remexo nas gavetas”) como importante motor desta conspiração, ligando-se ao omnipresente mar (lembre-se a linhagem naviana) que escamoteia o céu castrador, um mar, aliás, que percorre todo o livro e sugestiona, como quem, contra a insídia, “busca o mar no fundo dos bolsos”.
Umas vezes, basta um verso para ser poema, como acontece na fulgurante sextilha do poema cinco que assim diz: “Em Fevereiro vai-se buscar a luz às pedras.” Outras, chega o conjunto de obsessões poéticas ( a repetição é patética, poética, no sentido de Jean Cohen) para a deflagração de um lirismo único. Palavras como ‘corpo’, ‘dedos’, ‘memória’, ‘mar’, ‘rebentação’, ‘águas’, ‘gavetas’ ou ‘céu’, com mais umas poucas, revelam o milagre da melhor poesia. Como o diz, por exemplo, o poema “Retórica da alma”, que transcrevo:

Vi depois o mar mudar de rumo
e encaminhar-se para ele, entrar-lhe
pelas veias acima, abrir-lhe lentamente
a pele, ele a contorcer-se

ao ritmo das ondas, as águas
perderem-se pelo corpo fora e
penetrarem por fim
no coração, um pequeno maremoto.


Montsalvat e Caf, é assim a poesia de Fernando Luís Sampaio. Espantosamente, desde o início…

[Texto publicado no último JORNAL DO CENTRO - http://www.jornaldocentro.pt. ]

3 comentários:

veritas disse...

Olá!

Agradeço a partilha, não conhecia este poeta. Aproveito para reiterar o seu magnífico gosto literário. Passarei por aqui muitas vezes, a literatura é uma das minhas paixões.Tenciono aprender muito por aqui!

Bjs.

Su disse...

gostei de ler...sentir....o mar
jocas maradas

Anónimo disse...

Ainda me lembro do Fernando Luís aí por Viseu...