2006-10-04

Vergílio Ferreira ou a asserção do sistema ptolomaico vergiliano como sedução




A Luís Miguel Nava, poeta estilhaçado
Mikhail Bakhtine, na paradigmática e cultuada Esthétique et Théorie du Roman, fala-nos da linguagem lírica como fazendo parte de um mundo ptolomaico atravessado por dilacerações e intensamente marcado pela originalidade e pelo valor de cada palavra. Para os conhecedores medianos da obra de Vergílio Ferreira, lida a primeira frase, logo se torna evidente o objectivo desta curta reflexão; para o leitor avulso, menos atento às minudências literárias, só haverá espanto e incredulidade, uma vez que o autor em apreço é conhecido por romancista - quiçá o maior do século XX, mas também dos poucos e mais fecundos ensaístas e pensadores da cultura portuguesa - não se percebendo, em consequência, a presença da lírica. O problema não é despiciendo - recorde-se, a propósito, a obra de Rosa Maria Goulart Romance Lírico. O romance de Vergílio Ferreira, que, tratando-se de uma dissertação de doutoramento, recoloca a questão em termos de pertinência, a olharmos tão só para o título - e por isso, cumprido este intróito, avançaremos ter por pretensão provar através de um objecto particular do mundo vergiliano - a música - o poder sedutor que dele se evola, fazendo-nos, à boa maneira da lição barthiana de Le Plaisir du Texte, levantar a cabeça em sinal de transporte para outros locais.
Assim, de forma sucinta, procuraremos exemplificar a presença da música na obra de Vergílio Ferreira e, na esteira de Hegel, apreender a forma "segundo a qual a alma, com os seus juízos subjectivos, as suas alegrias, as suas admirações, as suas dores e as suas sensações, toma consciência de si própria". E aqui seguimos um tanto ao arrepio de Aguiar e Silva, pois perfilamos, para o caso vergiliano, a asserção de Kate Hamburguer que postula uma relação de identificação entre o eu do autor textual e o eu do autor empírico no modo lírico, como, aliás, veremos. Diga-se ainda que é visível no nosso escritor, nomeadamente nos romances, uma defluente interpenetração modal, havendo elementos líricos no modo narrativo e vice versa.
Avancemos, pois, no nosso intento e permita-se-nos ainda uma breve contextualização a respeito da situacao particular que nos ocupa. Segundo a mitologia grega, a música tinha origem divina e operava milagres. E em breve se verá - e é esse o cerne deste excurso - como ela servirá de viático para os arroubos líricos vergilianos. Mas a música é de tal forma emocional que ninguém permaneceu indemne aos homéricos bardos que deliciavam os convivas nos banquetes ou ao bíblico episódio, no qual David faz eclipsar a loucura de Saul ao som da harpa ou ao obscuro mito de Orfeu da descida aos Infernos e do encantamento aí produzido por acção da lira. Em Vergílio, a música abala-nos por dentro e faz da sua obra o mais especioso universo ficcional de encantamento.
Peguemos, ao acaso, em Na Tua Face (1993), e aduza-se desde já que a musicalidade aparece sugerida no chamamento "-Bárbara!", incipit primigénio do referido romance, que provocou, como acima aludimos, o tal levantar de cabeça transportador. Como se prova, existe na tessi­tura textual de Vergílio Ferreira um urdimento que avança e para, consoante o ritmo, esse jogo de suspensões e vozes ("... e ela estacou instantânea, a entender. Depois rodou sobre si para donde ouvira o chamamento. Mas ficou ainda imóvel, não te movas.") que nos faz cair na "armadilha" da adesão. Também desta música implícita fazem parte aqueles rumores, quase sempre presentes, que promanam da natureza (relembre-se de novo a mitologia gre­ga e a crença na música como taumaturga no reino natural): "E imediatamente virou costas e o mar afogou-a no seu rumor. Subia alto agora o rumor da tempestade e em breve a iria submergir." Ou, então, aprecie-se essa cumeada da beleza frásica, plena de emoção rítmica, onde o eixo da selecção se projecta ritmadamente sobre o da combinação: "E na carruagem quase vazia sonolenta, o estrépito morno das ferragens no cansaço da tarde quente, houve um guincho de travões a entrada da Estação Nova e segurei com forca a mão de Ângela e ela nem me olhou e deixou estar." Mas serão os passos seguintes, na nudez explícita da "verdade", que nos conduzirão às origens gregas da lira e do aulo, como se entrássemos no domínio religioso e suspensivo. Veja-se que tiradas como a que iremos transcrever facilmente serão modificadas, com ligeiro labor versificatório, em poemas de valor inquestionável, onde não faltarão o ritmo, o paralelismo, o carácter original ou o despojamento do plurilinguismo e da plurivocalidade: "Estávamos todos à volta da sala, estávamos em silêncio e de súbito um acorde de guitarra abriu pelo espaço da nossa memória perdida. Qualquer coisa se perdera nela também mas não sabíamos o quê. Sinal invisível de nada, estranha perda do que nos protegia, um aceno a essa parte de nós sem protecção. E quando tudo acabou, o Carvalhosa apagou discretamente nos olhos o rasto da música que passara."
Virtuosismo recente(?), perguntar-se-ão os amáveis leitores. Nem por isso. Tomemos mão do renegado O Caminho Pica Longe (1943) - localizado, como o anterior, em Coimbra - e vejamos que a música é uma memória original da obra vergiliana que nunca se perdeu em mais de cinco décadas de escrita. Abro o romance, quase devagar. Ouço-te a música da página passageira. E lá está, na primeira página. Mas aqui sou eu a ceder à emoção que deverá ser sentimento banido de um texto desta tipologia. Mas eu, como Vergílio, acredito no ensaio-emoção e por isso aí vos deixo o exemplo que prova a compresença de travejamentos sedutores na obra de Vergílio Ferreira, os quais sao indutores da valência lírica: "Eléctricos gemiam na arrancada da subida, fendendo o torpor que enlanguescia o ar. Música recolhida ondeava pelo céu."
Se a intencao deste texto tiver sido minimamente atingida, declarar-nos-emos satisfeito. E que o ensaio, para parafrasearmos Sílvio Lima e o seu Ensaio sobre a essência do ensaio, representa uma autodisciplina do intelecto que busca organizar-se, estruturar-se e definir-se como razão. Como tal, contentar-nos-emos se a nossa tentativa se vier a definir como razão.
(Texto publicado, com ligeiríssimas alterações, em Glossário dos Tempos e Plátano. Revista de arte e crítica de portalegre, nº 1, Primavera de 2005)

3 comentários:

isabel mendes ferreira disse...

tenho alguma dificuldade em dizer.


V. F.
e Nava

por razões diversas e igual fascínio

são leituras recorrentes. minhas.

:

beijo Martim.


profundamente sensibilizada.

Anónimo disse...

Regressa Vergílio e o tempo lento. Abraço.

Anónimo disse...

A música de Vergilio é optima tudo o que ele fez foi optimo!
Sei tudo!
Regressa!
FILHA AMIGA DE UMA AMIGA DE FILHO DELE!!!!!!!!!!
!!**Beijinhos**!!
:):p:D