2006-03-06

"Aracne" de António Franco Alexandre


Como em Alcateia de Carlos de Oliveira, a vida vai sempre tecendo a sua teia. A nossa teia.
Quando a pintora Vieira da Silva concluiu o seu “Festim da Aranha”, contava António Franco Alexandre um lustro de vida. Cinco décadas volvidas sobre essa obra maior da pintura portuguesa, o poeta viseense, em encontro que não interessa discutir, traz a público, em Setembro de 2004, o estranhíssimo título Aracne.
Revoltando ao soneto, a abertura alexandrina, se evoca através de Gregor a kafkiana Metamorfose, dela se afasta pela inclusão do sujeito lírico na classe dos artrópodes quelicerados e não na dos insectos ortópteros da família dos blatídeos. Informa ainda o poema inicial que na produção de Franco Alexandre se vêm repetindo um modo e um ritmo que, se por um lado espantam pela iteração, por outro suscitam indenegável coerência e momentos poéticos surpreendentes.
Longe do cândido e conveniente A Teia da Aranha de Amorim de Carvalho (romance de 1962), mais perto do estranhizante “O Punhal de Rosaura” de Álvaro do Carvalhal (conto de 1866) e da alarmada aranha que “urdia tranquila a sua teia acima das nossas cabeças”, não deixa ainda Aracne de convocar, em jeito que afirma que a literatura é sempre comparada, outros títulos e outras possibilidades relacionais: por exemplo, com L’Araignée d´Eau do francês Marcel Béalu (novela de 1948), com Die schwarze Spinne do suíço Jeremias Gotthelf (novela de 1842) ou com Zhui wang lao zhu do chinês Xu Dishan (novela de 1925), para já não falar de algumas obras plásticas.
Volto a Vieira da Silva e ao “festim”. E avanço, só então, para a capa escura. A leveza do aranhiço é fragilidade humana que o sujeito lírico consigo transporta desde a entrada sonetista. Desse lugar solitário, às vezes fabularmente recoberto por conexos animais (mosquitos, sanguessugas…), colhe a vox poética o seu “mel pequeno” e a sua felicidade escutadora: memorial curso interior do vivente que urde a sua teia, num jeito épico e franzido, que é memória e novidade. Ouvindo o sopro ovidiano, o livro alexandrino traça a glória animal pela interioridade tubular e pela admirável perenidade dos vulgares insectos. Convida o sujeito lírico o humano à sua metamorfose (“vem tu, humano, transformar-te em ave”): assim o Poeta deseja lançar a sua teia (“A teia sem enredo é a minha ideia fixa”) univocal e cada vez mais brilhantemente isolada (“e no final / ter desenhado esse lugar exacto / onde em segredo posso ser humano.”).
Nunca como agora obedecera a criação alexandrina ao jeito geométrico e arquitectural (“vieste visitar o arquitecto”). Abundam palavras como ‘desenho’, ‘estrutura’ ou ‘dimensão’, assim se desvelando a teia poemática que recobre o “puro cristal” da página branca (“depois recolho ao centro do meu verso / com esta reflexão modesta e triste”).
A viagem sentimental da aranha, que cumpre epicamente um trajecto e um desígnio de ascensão, é também pretexto para o culto da observação, da devoração e do prazer, não só cinéfilo, como também indiciosamente homoerótico (“Que bom deixar-me estar na oscilação discreta / que nasce do teu corpo e me transporta / a essa embriaguez chamada rima”). Tal entrega do aracnídeo ao humano corpo que sorve o filme permite à defluente voz poética do animal nascida uma conclusão nodal: “De poucas horas feita a longa vida, / são estas as melhores e as mais justas; / está o filme a acabar, fica comigo até ao fim; / não sabes que te perdes, quanto te perdes de mim?”.
Como em Uma Fábula regressa o vezo especular, que convoca de imediato o incêndio narcísico e impossibilidade, face à inviabilidade metamórfica, do sujeito amador atingir a coisa amatória: “Diferentes assim, não vejo como / iremos construir casa comum; / talvez me deixes habitar o tecto, / e te deixe eu morar dentro do espenho.”
Mas referência verdadeiramente pregnante é a da oficina poética e o da busca de um lugar canónico (“Se o meu desgosto é ser, na grande Teia, / mensagem virtual ou sopro vago, / talvez me queiras tu dar o teu rosto / e eu no teu corpo me transforme em alma.”), assim se mostrando a eficácia metafórica da avanço épico da aranha, passo afinal de um outro rumo que é a poesia e os seus caminhos. E também, penso, no sentido de Kate Hambürger, haver uma projecção biografista do Poeta que alude ao envelhecimento (“Já estou a ficar velho”) e às armadilhas quotidianas (“véus e teias que os humanos rasgam / sem sentir como nela estão presos.”).
Traz o último poema imperiosa clave: quer o aracnídeo humanizar-se e desse modo se mostrar tal qual é, grão de fina areia “que se move / no dourado rumor da tua pele”. Viaje, pois, a “aracne” na “preguiçosa vida dos sentidos” junto de cada um de vós.

4 comentários:

isabel mendes ferreira disse...

e que viagem fabulosa Martim....digo eu que sei pouco.e a cada dia menos...

se chegasse a ter muitos anos gostaria de saber escrever/descrever assim....como não...leio. aqui. e agradeço...o grão de ouro polido....

ps. beijo.

Anónimo disse...

Mais um sinal de Viseu.

isabel mendes ferreira disse...
Este comentário foi removido por um gestor do blogue.
martim de gouveia e sousa disse...

Isabel, já respondi. bjos.