“E aprenderíamos história portuguesa no convívio do Beirão quase primitivo.”
(Alberto de Oliveira, Palavras Loucas)
(Alberto de Oliveira, Palavras Loucas)
0. Afirmando desde já o carácter divulgativo desta reflexão sobre a obra ficcional de António de Sèves, avanço dizendo que, em virtude do escasso conhecimento do escritor por parte do leitor mais comum, este excurso procurará fixar, numa primeira parte, o trajecto biográfico do autor e, em momento posterior, a acuidade geográfica e a gestão original do tempo na ficção seviana. Escritor com biografia, não esquece o escritor português a lectio de André Ferre e da “Action Française”, plasmando em páginas que são escrita da terra uma influência que reafirma ser a literatura um reflexo dos tempos e dos lugares.
Disse lugares e pergunto, ainda em busca da retórica de uma ficção que julgo eficaz no seu desígnio, se sim ou não valerá a pena conhecer a vida de criador tão deslembrado? A resposta segue à frente, em busca de coonestação.
1. Novelista, advogado, diplomata e doutrinador português, António de Sèves nasceu em Leomil, no dia 17 de Fevereiro de 1895.
Casado, sem descendência, com a Senhora Dona Fernanda Malheiro Toscano de Sèves e filho do Dr. António Maria Augusto Pereira de Sèves e Oliveira e da Senhora Dona Adelaide Estêvão de Oliveira, António de Sèves licenciou-se em Direito, na Universidade de Lisboa, nunca escondendo a vontade de seguir a vida diplomática. Estranhamente ou talvez não, a sua adesão ao monarquismo integralista constituía à época obstáculo ao seu desejo, como o comprova o indeferimento no concurso de 1923 para o Ministério dos Negócios Estrangeiros. Decidido como o pai, que fora combatente monárquico nas fileiras de Paiva Couceiro, abriu banca de advogado em Lisboa, ficando célebre, como o refere A. Bento da Guia[1], a sua actuação brilhante no julgamento do processo do Banco Angola e Metrópole. Persistindo no gosto diplomático, foi, em 26 de Agosto de 1927, nomeado cônsul de 3ª classe, passando, em 16 de Março de 1928, para a Direcção Geral dos Negócios Políticos e Diplomáticos. Volvido pouco mais de um ano, ei-lo nomeado para a Secretaria Portuguesa da Sociedade das Nações. A partir daí, desempenhou com particular brilho e empenho a carreira diplomática, cumprindo missões em diferentes cidades europeias. Agraciado pelos serviços prestados – Séves foi Comendador da Ordem Militar de Cristo, Oficial da Ordem Militar de Santiago de Espada, Comendador da Ordem de Leopoldo da Bélgica, Comendador da Ordem do Carvalho do Luxemburgo, Cavaleiro da Legião de Honra da França e Cavaleiro da Ordem da Casa da Bélgica, obtendo também a Grã-Cruz da Ordem de Mérito de Espanha e a Grã-Cruz da Ordem de Mérito do Egipto -, Membro do Supremo Conselho Cultural da Causa Monárquica a partir de 1953, António de Sèves veio a desempenhar com notoriedade o cargo de Lugar-Tenente de El-Rei, nele se empenhando com inquestionável dedicação, como o comprova a seguinte tirada de Henrique Barrilaro Ruas:
“A grande conquista que Vossa Excelência fez para a Monarquia foi defendê-la do partidarismo. Estou certo de que, por muitas que sejam as vicissitudes que tenhamos de experimentar, essa conquista essencial está feita de uma vez para sempre. E foi preciso que um lugar-tenente chamado António de Sèves tivesse tido a inteligência e a audácia de o proclamar, para que essa vitória fosse possível.”[2]
Décadas atrás, recém licenciado em Direito, António de Sèves reserva à literatura, contidamente, as décadas de dez e de vinte do século anterior. E na ânsia de o fazer, colou-se à sua Leomil, levantando não só na obra homónima um caso literário interessante, que lembra algum Aquilino, nomeadamente pela utilização de espaços similares, de linguagem regionalista e de entrechos encaixados na circunstância. Ao tempo, ainda o Mestre da Nave (Terras do Demo é de 1919) não caldeava a sua escrita urgente nas águas lustrais da sua circuntância, pelo que Leomil permite dizer-se que o seu Autor é um Aquilino ante litteram. Tal aposição releva das informações dadas por Sèves no prefácio do seu livro, que indicam que o Autor iniciou o conjunto no Verão de 1912, em Viseu, prolongando o seu trabalho pelos anos seguintes até 1918. Entretanto, publicara António de Sèves um conto (?) etnográfico (“O San Tiago em Leomil (Beira Alta)”), dedicado “À Mademoiselle Cotovia” e saído a lume na revista Terra Portuguesa[3], texto com importantes achegas lexicográficas, seja no corpo do texto, seja ainda em rodapé, lembrando, no cuidado filológico, Tomaz de Figueiredo e o seu Dicionário Falado. Pesa no contexto, contudo, a dedicatória de “A Chula”[4] a Aquilino Ribeiro, que poderá indicar não só o bom relacionamento entre camaradas de letras como também um provável reconhecimento de influência estético-literária.
O prefácio que permite fixar o termo a quo António de Sèves inicia a sua missão literária adentro dos “scenarios da vida rustica” ajuda ainda à reconstituição da vida do escritor, sabendo-se que nesse Verão de 1912 esteve por Viseu, onde se encontrou com António Alves Martins e Fernando de Quental. Em 1913, estará o novelista na Graciosa dos Açores, aí privando com o Doutor Luís Cabral de Moncada. Cumprida a missão que o pai por aí desempenhara como juiz, regressa ao Continente no ano seguinte e trava conhecimento com Hipólito Raposo[5]. No Natal desse ano de 1914, em Leomil, estabelece o plano de escrever uma série de livros sob o título englobante Beira-Alta, abrindo o projecto com “um volume sobre o viver rural” da sua terra, que se cumpriu em 1921, nada se conhecendo do sobejante desejo. Ao contrário do que defende Manuel Ribeiro[6], as palavras iniciais sevianas não me parecem negligenciáveis, seja pelo aclaramento do roteiro genético-textual e biográfico, seja ainda pela afirmação autoral da consciência de estar desbravando um género novo:
“Assim, este livro, conhecido desde as datas indicadas – em parte na sua realisação, e todo no seu plano – por varios amigos e camaradas de letras, encerra as primeiras paginas que na nossa Literatura se escreveram, com o fim consciente e unico de pintar a vida popular, plasticísando a linguagem desse proprio povo de maneira a dar-lhe a estrutura e a flexibilidade necessaria, para poder ser a expressão literaria dum genero novo. Simplesmente não foi possível publical-o quando devia ser.”
De facto, a luz que rompe a treva do criado é, em Leomil, uma particular abordagem do tempo e uma presença forte dos lugares, com fecundas particularidades linguísticas bordando um espaço geográfico-literário transbordante de vida. Manuel Ribeiro não consegue reprimir o seu espanto ao apodar a obra de “regionalismo puro”, que contém uma “dicção nova”.[7] Tal admiração não a esconde o autor de Catedral, quando, a 1 de Junho de 1922, em conversa com Francisco A. Direitinho (José Dack), defende que a corrente moderna que então se esboçava deveria ser encontrada no regionalismo, nomeadamente em Aquilino Ribeiro e António de Sèves.[8]
A presença irrefragável de um nome muitas vezes obliterado como é o de António de Sèves encontra, sem particular tour de force, um apoio que é signo e é sinal – refiro-me à permanência do seu Leomil na biblioteca particular de Fernando Pessoa.
A primeira edição de Leomil contém, depois da dedicatória[9] e das palavras prefaciais, os títulos “O Carreiro”[10], “P’las maias…”[11], “A velha Maria”[12], “Ao deitar das águas…”[13], “O Pastor”[14], “No dia de S. Silvestre…”[15] e “Coisas ruins”[16].
Segue-se um longo silêncio de António de Sèves ficcionista - pelo menos, ao que eu conheço -, mais tarde interrompido, em 1938, pelos estilhaços de uma polémica travada no “Suplemento Literário" do Diário de Lisboa, em que foram contendores João Gaspar Simões e Tomaz Ribeiro Colaço, reagindo este com a “Carta a um crítico estrangeiro” à “Carta aos novos romancistas portugueses” que aquele anteriormente publicara. Deflagrando o princípio irónico ao longo do discurso reactivo, o autor d’ A Folha de Parra, depois de aludir ao modo enviezado e estrangeirado da crítica de Gaspar Simões, aconselha-o mesmo a mergulhar no magma nacional e a chamar à desordem “o José Régio, o Almada Negreiros, o Tomás de Figueiredo, o Aleixo Ribeiro, o Campos Pereira, o conde de Aurora, o Vitorino Nemésio, o Eduardo Malta, o António de Sèves, o Branquinho da Fonseca, o Julião Quintinha, o Nuno de Montemor, o Eduardo de Noronha.” Este trecho afirma, na sua força irrefutável, a presença de um nome que irradiava ainda o seu calor literário.
Uma década volvida, a segunda edição de Leomil, revista pelo Autor, é publicada pela Férin, o que parece comprovar que os ecos daquela primeira largada literária ainda não haviam sido silenciados pela instituição da literatura.
Muito mais tarde, Evelina Verdelho, no âmbito da dissertação de licenciatura apresentada à Universidade de Coimbra, em 1971, sob o título Linguagem regional e linguagem popular no romance regionalista português, não esquecerá António de Sèves e integra-lo-á em lugar de destaque no conjunto de artistas que dedicaram obras ficcionais à Beira.[17]
2. O caso de Leomil demonstra que o meio geográfico em que o autor nasce e a obra é plasmada se incorpora, muitas vezes, no objecto literário, transformando-se em tema, influenciando o processo artístico ou ocupando mesmo um lugar central. Sem quaisquer romantismos serôdios ou ideias denegatórias da transmigração literária, este conjunto de contos, sendo sítio do lugar, é produto do homem que apreendeu o influxo do meio de um modo particular.
Um tanto na esteira de André Ferré e da sua Géographie littéraire não são de negar os elementos emanados da terra. Eles são, de facto, uma compresença que esbatem as dúvidas inconsistentemente manifestadas por Aquilino Ribeiro sobre a existência da literatura regionalista portuguesa, tanto mais que, em António de Séves, são indesmentíveis as peculiaridades mostradas da sua Leomil, seja no domínio etnográfico, seja fundamentalmente no âmbito linguístico, que é, a meu ver, território importantíssimo e pouco tratado.
3. Deseja o sujeito poético de Aracne (2004) de António Franco Alexandre, a dado passo, um cânone só seu, com frases poéticas, “tudo bem embrulhado num novelo / de onde se visse a salvação das gentes, / ou mesmo, à transparência, o fim do mundo.”[18] Essa espécie de mise en abyme tem efeito equipolente em Leomil, uma vez que em cada narrativa da antologia assume o tempo um lugar central, concluindo-se sempre do seu poder conformador e diferenciador: a passagem do tempo, esse rito virgiliano do fugit irreparabile tempus, opera-se em António de Séves de uma forma concentrada e visível, afirmando-se um curso de passagem que só estabiliza um nome e um lugar – Leomil.
3. 1. Antes da “leomilização” da minha proposta, digo entender o homem-criador como um ser preso à obra e aos livros produzidos. Um tanto no sentido de Walter Benjamin, conhecer a antiguidade do escritor, nas suas fendas e construções, é passo importante para o domínio do seu mundo. Os livros e escritos de António de Sèves, vindos de arca entreaberta, esperam a participação de todos e são já posição-chave para chegar a Leomil. Desvele-se, pois, a escavação e o rigor daquilo que o escritor quis dizer:
“O San Tiago em Leomil”, in Terra Portugueza, 1916.
“O Carreiro”, in Atlântida, ano II, nº 22, 15 de Agosto de 1917, pp. 828-838..
“O Natal em Leomil”, in Monarquia, 1917.
“”, in Monarquia, 1918.
“Ao deitar das Águas”, in Atlântida, Lisboa, ano III, nº 20-30, 1918, pp. 611-619..
“Carta da Beira Alta: A Chula”, in Atlântida, Lisboa, ano IV, nº 42-43, 1919, pp. 717-722.
Leomil, Lisboa, Livraria Editora, 1921.
“Memórias”, in Ilustração Portuguesa, Lisboa, 19 de Novembro de 1921, II Série, nº 822, p. 387.
“Fausto Guedes Teixeira e o seu novo livro Sonetos d’Amor”, in Contemporânea, Lisboa, nº 9, de Março de 1923.
“Uma Noite”, in Athena. Revista de Arte, Lisboa, Janeiro de 1925, nº 4, pp. 135-144.
“palores do luar espargi(ndo)”, in Contemporânea, Lisboa, nº 2, 2ª série, Junho-Julho de 1926.
Representação entregue ao Exmo Senhor Ministro da Justiça / pelos advogados A. Ramada Curto, António Bourbon, Caetano Pereira, Rodrigues da Silva, António de Seves e M. Collares Pereira. - Lisboa : [s.n.], 1929.
As responsabilidades de José Bandeira: o caso Angola e Metrópole, [S.l. : s.n.], 1929 (Lisboa : Coop. Casa dos Graficos).
Le Général Carmona, Bruxelles: Figures Contemporaines, 1937. Extrait de La Revue Belge.
A Revolução Francesa e as suas consequências [compil.], Lisboa, Pro Domo, 1944 (Lisboa : Oficina Gráfica). - "Conferência" lida na Sociedade de Geografia.
Leomil, 2ª ed. rev., Lisboa, Férin, 1948.
Desenvolvimento económico da Bélgica: A diplomacia e as realidades actuais, Lisboa : [s.n.], 1949 (Lisboa : Tip. Portuguesa).
Mensagem aos Portugueses do novo Lugar-Tenente do Senhor Dom Duarte, [S.l. : s.n.], 1966 (Lisboa : Tip. Soc. Ind. Gráfica).
Vontade de Compreender e Cumprir, [S.l. : s.n.], 1969 (Lisboa, Tip. Duarte.).
Linha de Rumo, Hora de Portugal, [S.l. : s.n.], 1969 (Lisboa : Of. de São José).
A nossa independência assenta na secular unidade portuguesa áquem e além-mar, [S.l.: s.n.], 1969 (Lisboa : Tip. Duarte).
(Continua)
[1] Cf. A. Bento da Guia, As vinte freguesias de Moimenta da Beira, vol. II, 3ª edição, Moimenta da Beira, Câmara Municipal, 2001, p. 108. Algum do trajecto biográfico do Autor assenta nas informações preciosas do Reverendo Bento da Guia.
[2] Henrique Barrilaro Ruas, A Liberdade e o Rei, Lisboa, Edição do Autor, p. 300.
[3] Cf. António de Sèves, “O San Tiago em Leomil (Beira Alta)”, in Terra Portuguesa, Ano 1º, nº 5, Junho de 1916, pp. 152-156.
[4] Cf. “Carta da Beira Alta: A Chula”, in Atlântida, Lisboa, ano IV, nº 42-43, 1919, pp. 717-722.
[5] Tal encontro, importante, por certo, terá levado António de Sèves a aderir às ideias integralistas literárias, que postulavam que a revitalização da literatura se daria a partir do contacto dos escritores com a terra, a raça e a tradição da circunstância de cada um.
[6] Manuel Ribeiro, “Crítica Literária do ABC – Leomil, por António de Sèves”, in ABC, Ano II, nº 98, de 25 de Maio de 1922. O prólogo não me parece escusado, nem tão-pouco a vincada acentuação da prioridade regionalista por si lavrada. É que, por exemplo, Terras do Demo de Aquilino Ribeiro é de 1917.
[7] Manuel Ribeiro, loc. cit. As aduções sobre o carácter fragmentário da obra e o aconselhamento a que o Autor enverede, face às qualidades manifestadas, pelo romance não me parecem razoáveis, uma vez que não existe qualquer primado genológico.
[8] Instado sobre a corrente moderna que se divisaria no contexto literário português, cf. a resposta de Manuel Ribeiro a Francisco A. Direitinho, “ABC ouve os escritores ilustres”, in ABC , Ano II, nº 99, de 1 de Junho de 1922: “Só no regionalismo com Aquilino Ribeiro e alguns trechos de António de Séves, no seu recente Leomil, se atingiu uma fórmula de expressão completa.”
[9] Eis o teor da dedicatória: “A meus Paes, a meus Irmãos, à Memoria d’Aquela a quem a minha alma reza, Aos que são meus amigos – e às Paisagens da minha Terra.”
[10] Ao título sucede parenteticamente a expressão informativa “Duma novela inacabada”. De acordo com as indicações autorais, a novela foi iniciada nos Açores, no Verão de 1913, e veio a ser finalizada em Lisboa, no mês de Fevereiro de 1916.
[11] Localizado e datado no final com “Leomil – set.- 1916.”
[12] “Leomil Setembro – 1917.”
[13] “Leomil. Nov. – 1917.”
[14] “Moimenta da Beira. Outubro 1918.”
[15] “Leomil. Fins d´Outono – 1916”.
[16] “Noite da Consoada. Leomil – 1917”.
[17] Cf. Evelina Verdelho, Linguagem regional e linguagem popular no romance regionalista português, Lisboa, Lisboa, Instituto Nacional de Investigação Científica / Centro de Linguística da Universidade de Lisboa, 1982, p. 28: “No que diz respeito à Beira, poderão destacar-se, além da vasta produção aquiliniana, o volume de contos Leomil, de António de Seves, os romances Sexo Forte, e Mudança de Ares, de Samuel Maia, Maria Mim, de Nuno de Montemor, Filha de Labão, de Tomás da Fonseca e Calcanhar do Mundo, de Vergílio Godinho.”
[18] António Franco Alexandre, Aracne, Lisboa, Assírio & Alvim, 2004, pp. 41-42.
Disse lugares e pergunto, ainda em busca da retórica de uma ficção que julgo eficaz no seu desígnio, se sim ou não valerá a pena conhecer a vida de criador tão deslembrado? A resposta segue à frente, em busca de coonestação.
1. Novelista, advogado, diplomata e doutrinador português, António de Sèves nasceu em Leomil, no dia 17 de Fevereiro de 1895.
Casado, sem descendência, com a Senhora Dona Fernanda Malheiro Toscano de Sèves e filho do Dr. António Maria Augusto Pereira de Sèves e Oliveira e da Senhora Dona Adelaide Estêvão de Oliveira, António de Sèves licenciou-se em Direito, na Universidade de Lisboa, nunca escondendo a vontade de seguir a vida diplomática. Estranhamente ou talvez não, a sua adesão ao monarquismo integralista constituía à época obstáculo ao seu desejo, como o comprova o indeferimento no concurso de 1923 para o Ministério dos Negócios Estrangeiros. Decidido como o pai, que fora combatente monárquico nas fileiras de Paiva Couceiro, abriu banca de advogado em Lisboa, ficando célebre, como o refere A. Bento da Guia[1], a sua actuação brilhante no julgamento do processo do Banco Angola e Metrópole. Persistindo no gosto diplomático, foi, em 26 de Agosto de 1927, nomeado cônsul de 3ª classe, passando, em 16 de Março de 1928, para a Direcção Geral dos Negócios Políticos e Diplomáticos. Volvido pouco mais de um ano, ei-lo nomeado para a Secretaria Portuguesa da Sociedade das Nações. A partir daí, desempenhou com particular brilho e empenho a carreira diplomática, cumprindo missões em diferentes cidades europeias. Agraciado pelos serviços prestados – Séves foi Comendador da Ordem Militar de Cristo, Oficial da Ordem Militar de Santiago de Espada, Comendador da Ordem de Leopoldo da Bélgica, Comendador da Ordem do Carvalho do Luxemburgo, Cavaleiro da Legião de Honra da França e Cavaleiro da Ordem da Casa da Bélgica, obtendo também a Grã-Cruz da Ordem de Mérito de Espanha e a Grã-Cruz da Ordem de Mérito do Egipto -, Membro do Supremo Conselho Cultural da Causa Monárquica a partir de 1953, António de Sèves veio a desempenhar com notoriedade o cargo de Lugar-Tenente de El-Rei, nele se empenhando com inquestionável dedicação, como o comprova a seguinte tirada de Henrique Barrilaro Ruas:
“A grande conquista que Vossa Excelência fez para a Monarquia foi defendê-la do partidarismo. Estou certo de que, por muitas que sejam as vicissitudes que tenhamos de experimentar, essa conquista essencial está feita de uma vez para sempre. E foi preciso que um lugar-tenente chamado António de Sèves tivesse tido a inteligência e a audácia de o proclamar, para que essa vitória fosse possível.”[2]
Décadas atrás, recém licenciado em Direito, António de Sèves reserva à literatura, contidamente, as décadas de dez e de vinte do século anterior. E na ânsia de o fazer, colou-se à sua Leomil, levantando não só na obra homónima um caso literário interessante, que lembra algum Aquilino, nomeadamente pela utilização de espaços similares, de linguagem regionalista e de entrechos encaixados na circunstância. Ao tempo, ainda o Mestre da Nave (Terras do Demo é de 1919) não caldeava a sua escrita urgente nas águas lustrais da sua circuntância, pelo que Leomil permite dizer-se que o seu Autor é um Aquilino ante litteram. Tal aposição releva das informações dadas por Sèves no prefácio do seu livro, que indicam que o Autor iniciou o conjunto no Verão de 1912, em Viseu, prolongando o seu trabalho pelos anos seguintes até 1918. Entretanto, publicara António de Sèves um conto (?) etnográfico (“O San Tiago em Leomil (Beira Alta)”), dedicado “À Mademoiselle Cotovia” e saído a lume na revista Terra Portuguesa[3], texto com importantes achegas lexicográficas, seja no corpo do texto, seja ainda em rodapé, lembrando, no cuidado filológico, Tomaz de Figueiredo e o seu Dicionário Falado. Pesa no contexto, contudo, a dedicatória de “A Chula”[4] a Aquilino Ribeiro, que poderá indicar não só o bom relacionamento entre camaradas de letras como também um provável reconhecimento de influência estético-literária.
O prefácio que permite fixar o termo a quo António de Sèves inicia a sua missão literária adentro dos “scenarios da vida rustica” ajuda ainda à reconstituição da vida do escritor, sabendo-se que nesse Verão de 1912 esteve por Viseu, onde se encontrou com António Alves Martins e Fernando de Quental. Em 1913, estará o novelista na Graciosa dos Açores, aí privando com o Doutor Luís Cabral de Moncada. Cumprida a missão que o pai por aí desempenhara como juiz, regressa ao Continente no ano seguinte e trava conhecimento com Hipólito Raposo[5]. No Natal desse ano de 1914, em Leomil, estabelece o plano de escrever uma série de livros sob o título englobante Beira-Alta, abrindo o projecto com “um volume sobre o viver rural” da sua terra, que se cumpriu em 1921, nada se conhecendo do sobejante desejo. Ao contrário do que defende Manuel Ribeiro[6], as palavras iniciais sevianas não me parecem negligenciáveis, seja pelo aclaramento do roteiro genético-textual e biográfico, seja ainda pela afirmação autoral da consciência de estar desbravando um género novo:
“Assim, este livro, conhecido desde as datas indicadas – em parte na sua realisação, e todo no seu plano – por varios amigos e camaradas de letras, encerra as primeiras paginas que na nossa Literatura se escreveram, com o fim consciente e unico de pintar a vida popular, plasticísando a linguagem desse proprio povo de maneira a dar-lhe a estrutura e a flexibilidade necessaria, para poder ser a expressão literaria dum genero novo. Simplesmente não foi possível publical-o quando devia ser.”
De facto, a luz que rompe a treva do criado é, em Leomil, uma particular abordagem do tempo e uma presença forte dos lugares, com fecundas particularidades linguísticas bordando um espaço geográfico-literário transbordante de vida. Manuel Ribeiro não consegue reprimir o seu espanto ao apodar a obra de “regionalismo puro”, que contém uma “dicção nova”.[7] Tal admiração não a esconde o autor de Catedral, quando, a 1 de Junho de 1922, em conversa com Francisco A. Direitinho (José Dack), defende que a corrente moderna que então se esboçava deveria ser encontrada no regionalismo, nomeadamente em Aquilino Ribeiro e António de Sèves.[8]
A presença irrefragável de um nome muitas vezes obliterado como é o de António de Sèves encontra, sem particular tour de force, um apoio que é signo e é sinal – refiro-me à permanência do seu Leomil na biblioteca particular de Fernando Pessoa.
A primeira edição de Leomil contém, depois da dedicatória[9] e das palavras prefaciais, os títulos “O Carreiro”[10], “P’las maias…”[11], “A velha Maria”[12], “Ao deitar das águas…”[13], “O Pastor”[14], “No dia de S. Silvestre…”[15] e “Coisas ruins”[16].
Segue-se um longo silêncio de António de Sèves ficcionista - pelo menos, ao que eu conheço -, mais tarde interrompido, em 1938, pelos estilhaços de uma polémica travada no “Suplemento Literário" do Diário de Lisboa, em que foram contendores João Gaspar Simões e Tomaz Ribeiro Colaço, reagindo este com a “Carta a um crítico estrangeiro” à “Carta aos novos romancistas portugueses” que aquele anteriormente publicara. Deflagrando o princípio irónico ao longo do discurso reactivo, o autor d’ A Folha de Parra, depois de aludir ao modo enviezado e estrangeirado da crítica de Gaspar Simões, aconselha-o mesmo a mergulhar no magma nacional e a chamar à desordem “o José Régio, o Almada Negreiros, o Tomás de Figueiredo, o Aleixo Ribeiro, o Campos Pereira, o conde de Aurora, o Vitorino Nemésio, o Eduardo Malta, o António de Sèves, o Branquinho da Fonseca, o Julião Quintinha, o Nuno de Montemor, o Eduardo de Noronha.” Este trecho afirma, na sua força irrefutável, a presença de um nome que irradiava ainda o seu calor literário.
Uma década volvida, a segunda edição de Leomil, revista pelo Autor, é publicada pela Férin, o que parece comprovar que os ecos daquela primeira largada literária ainda não haviam sido silenciados pela instituição da literatura.
Muito mais tarde, Evelina Verdelho, no âmbito da dissertação de licenciatura apresentada à Universidade de Coimbra, em 1971, sob o título Linguagem regional e linguagem popular no romance regionalista português, não esquecerá António de Sèves e integra-lo-á em lugar de destaque no conjunto de artistas que dedicaram obras ficcionais à Beira.[17]
2. O caso de Leomil demonstra que o meio geográfico em que o autor nasce e a obra é plasmada se incorpora, muitas vezes, no objecto literário, transformando-se em tema, influenciando o processo artístico ou ocupando mesmo um lugar central. Sem quaisquer romantismos serôdios ou ideias denegatórias da transmigração literária, este conjunto de contos, sendo sítio do lugar, é produto do homem que apreendeu o influxo do meio de um modo particular.
Um tanto na esteira de André Ferré e da sua Géographie littéraire não são de negar os elementos emanados da terra. Eles são, de facto, uma compresença que esbatem as dúvidas inconsistentemente manifestadas por Aquilino Ribeiro sobre a existência da literatura regionalista portuguesa, tanto mais que, em António de Séves, são indesmentíveis as peculiaridades mostradas da sua Leomil, seja no domínio etnográfico, seja fundamentalmente no âmbito linguístico, que é, a meu ver, território importantíssimo e pouco tratado.
3. Deseja o sujeito poético de Aracne (2004) de António Franco Alexandre, a dado passo, um cânone só seu, com frases poéticas, “tudo bem embrulhado num novelo / de onde se visse a salvação das gentes, / ou mesmo, à transparência, o fim do mundo.”[18] Essa espécie de mise en abyme tem efeito equipolente em Leomil, uma vez que em cada narrativa da antologia assume o tempo um lugar central, concluindo-se sempre do seu poder conformador e diferenciador: a passagem do tempo, esse rito virgiliano do fugit irreparabile tempus, opera-se em António de Séves de uma forma concentrada e visível, afirmando-se um curso de passagem que só estabiliza um nome e um lugar – Leomil.
3. 1. Antes da “leomilização” da minha proposta, digo entender o homem-criador como um ser preso à obra e aos livros produzidos. Um tanto no sentido de Walter Benjamin, conhecer a antiguidade do escritor, nas suas fendas e construções, é passo importante para o domínio do seu mundo. Os livros e escritos de António de Sèves, vindos de arca entreaberta, esperam a participação de todos e são já posição-chave para chegar a Leomil. Desvele-se, pois, a escavação e o rigor daquilo que o escritor quis dizer:
“O San Tiago em Leomil”, in Terra Portugueza, 1916.
“O Carreiro”, in Atlântida, ano II, nº 22, 15 de Agosto de 1917, pp. 828-838..
“O Natal em Leomil”, in Monarquia, 1917.
“”, in Monarquia, 1918.
“Ao deitar das Águas”, in Atlântida, Lisboa, ano III, nº 20-30, 1918, pp. 611-619..
“Carta da Beira Alta: A Chula”, in Atlântida, Lisboa, ano IV, nº 42-43, 1919, pp. 717-722.
Leomil, Lisboa, Livraria Editora, 1921.
“Memórias”, in Ilustração Portuguesa, Lisboa, 19 de Novembro de 1921, II Série, nº 822, p. 387.
“Fausto Guedes Teixeira e o seu novo livro Sonetos d’Amor”, in Contemporânea, Lisboa, nº 9, de Março de 1923.
“Uma Noite”, in Athena. Revista de Arte, Lisboa, Janeiro de 1925, nº 4, pp. 135-144.
“palores do luar espargi(ndo)”, in Contemporânea, Lisboa, nº 2, 2ª série, Junho-Julho de 1926.
Representação entregue ao Exmo Senhor Ministro da Justiça / pelos advogados A. Ramada Curto, António Bourbon, Caetano Pereira, Rodrigues da Silva, António de Seves e M. Collares Pereira. - Lisboa : [s.n.], 1929.
As responsabilidades de José Bandeira: o caso Angola e Metrópole, [S.l. : s.n.], 1929 (Lisboa : Coop. Casa dos Graficos).
Le Général Carmona, Bruxelles: Figures Contemporaines, 1937. Extrait de La Revue Belge.
A Revolução Francesa e as suas consequências [compil.], Lisboa, Pro Domo, 1944 (Lisboa : Oficina Gráfica). - "Conferência" lida na Sociedade de Geografia.
Leomil, 2ª ed. rev., Lisboa, Férin, 1948.
Desenvolvimento económico da Bélgica: A diplomacia e as realidades actuais, Lisboa : [s.n.], 1949 (Lisboa : Tip. Portuguesa).
Mensagem aos Portugueses do novo Lugar-Tenente do Senhor Dom Duarte, [S.l. : s.n.], 1966 (Lisboa : Tip. Soc. Ind. Gráfica).
Vontade de Compreender e Cumprir, [S.l. : s.n.], 1969 (Lisboa, Tip. Duarte.).
Linha de Rumo, Hora de Portugal, [S.l. : s.n.], 1969 (Lisboa : Of. de São José).
A nossa independência assenta na secular unidade portuguesa áquem e além-mar, [S.l.: s.n.], 1969 (Lisboa : Tip. Duarte).
(Continua)
[1] Cf. A. Bento da Guia, As vinte freguesias de Moimenta da Beira, vol. II, 3ª edição, Moimenta da Beira, Câmara Municipal, 2001, p. 108. Algum do trajecto biográfico do Autor assenta nas informações preciosas do Reverendo Bento da Guia.
[2] Henrique Barrilaro Ruas, A Liberdade e o Rei, Lisboa, Edição do Autor, p. 300.
[3] Cf. António de Sèves, “O San Tiago em Leomil (Beira Alta)”, in Terra Portuguesa, Ano 1º, nº 5, Junho de 1916, pp. 152-156.
[4] Cf. “Carta da Beira Alta: A Chula”, in Atlântida, Lisboa, ano IV, nº 42-43, 1919, pp. 717-722.
[5] Tal encontro, importante, por certo, terá levado António de Sèves a aderir às ideias integralistas literárias, que postulavam que a revitalização da literatura se daria a partir do contacto dos escritores com a terra, a raça e a tradição da circunstância de cada um.
[6] Manuel Ribeiro, “Crítica Literária do ABC – Leomil, por António de Sèves”, in ABC, Ano II, nº 98, de 25 de Maio de 1922. O prólogo não me parece escusado, nem tão-pouco a vincada acentuação da prioridade regionalista por si lavrada. É que, por exemplo, Terras do Demo de Aquilino Ribeiro é de 1917.
[7] Manuel Ribeiro, loc. cit. As aduções sobre o carácter fragmentário da obra e o aconselhamento a que o Autor enverede, face às qualidades manifestadas, pelo romance não me parecem razoáveis, uma vez que não existe qualquer primado genológico.
[8] Instado sobre a corrente moderna que se divisaria no contexto literário português, cf. a resposta de Manuel Ribeiro a Francisco A. Direitinho, “ABC ouve os escritores ilustres”, in ABC , Ano II, nº 99, de 1 de Junho de 1922: “Só no regionalismo com Aquilino Ribeiro e alguns trechos de António de Séves, no seu recente Leomil, se atingiu uma fórmula de expressão completa.”
[9] Eis o teor da dedicatória: “A meus Paes, a meus Irmãos, à Memoria d’Aquela a quem a minha alma reza, Aos que são meus amigos – e às Paisagens da minha Terra.”
[10] Ao título sucede parenteticamente a expressão informativa “Duma novela inacabada”. De acordo com as indicações autorais, a novela foi iniciada nos Açores, no Verão de 1913, e veio a ser finalizada em Lisboa, no mês de Fevereiro de 1916.
[11] Localizado e datado no final com “Leomil – set.- 1916.”
[12] “Leomil Setembro – 1917.”
[13] “Leomil. Nov. – 1917.”
[14] “Moimenta da Beira. Outubro 1918.”
[15] “Leomil. Fins d´Outono – 1916”.
[16] “Noite da Consoada. Leomil – 1917”.
[17] Cf. Evelina Verdelho, Linguagem regional e linguagem popular no romance regionalista português, Lisboa, Lisboa, Instituto Nacional de Investigação Científica / Centro de Linguística da Universidade de Lisboa, 1982, p. 28: “No que diz respeito à Beira, poderão destacar-se, além da vasta produção aquiliniana, o volume de contos Leomil, de António de Seves, os romances Sexo Forte, e Mudança de Ares, de Samuel Maia, Maria Mim, de Nuno de Montemor, Filha de Labão, de Tomás da Fonseca e Calcanhar do Mundo, de Vergílio Godinho.”
[18] António Franco Alexandre, Aracne, Lisboa, Assírio & Alvim, 2004, pp. 41-42.
2 comentários:
De leitura obrigatória!
Excelente ensaio, despertando-nos para o mais que se continua. Um abraço, tb. agradecido...
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