2009-03-08

COLÓQUIO SOBRE HISTÓRIA E CULTURA JUDAICA LANÇA DÚVIDAS SOBRE A LOCALIZAÇÃO DA SINAGOGA (por Carlos Vieira e Castro)

COLÓQUIO SOBRE HISTÓRIA E CULTURA JUDAICA

LANÇA DÚVIDAS SOBRE A LOCALIZAÇÃO DA SINAGOGA

Promovido pela Câmara Municipal, o Colóquio sobre História e Cultura Judaica reuniu mais de centena e meia de pessoas (muitas vindas de fora) no Auditório Mirita Casimiro, no passado dia 14.

Segundo Henrique Almeida, coordenador do Colóquio, o presidente da autarquia pediu celeridade no processo de musealização da Sinagoga. Talvez a proximidade das eleições autárquicas não seja alheia a tamanha urgência. Mais avisado seria, porém, começar por fazer um levantamento mais aprofundado da herança cultural judaica, patente, ainda hoje, na arquitectura (janelas altas, em estilo de frestas com um ferro ao meio ao alto, de modo a que entrasse a luz, mas impedisse conversas para a rua); na toponímia; na música (não só nas belíssimas canções e coplas de tradição sefardita, mas também no melodismo floreado das “Aleluias”); e na nossa própria carga genética (um recente estudo científico internacional concluiu que 25% dos portugueses do Norte – e 35% no Sul – têm genes judeus sefarditas, enquanto a ascendência norte-africana é apenas de 10% e 15%, respectivamente). Desafiar os investigadores a aprofundarem os seus estudos e a debaterem as suas ideias antes de avançar a todo o vapor com a compra da casa da antiga Papelaria Dias, onde Isabel Monteiro situou a sinagoga de Viseu, teria sido mais prudente.

A investigadora viseense Isabel Monteiro, na revista Monumentos nº 13 / Setembro de 2000, num artigo sobre “A Judiaria de Viseu”, identifica a Sinagoga com aquela casa quatrocentista, no cruzamento da Rua Direita com a Rua da Árvore, baseada em documentos dos séculos XV que referem a venda e o aluguer de casas “perto da Sinagoga”, ou “na rua que vai para a Sinagoga” e “em 1502, Álvaro Rodrigues, cónego, aluga umas casas na Rua Nova, que foram Judiaria outras que foram Sinagoga”, embora reconheça não ter encontrado, na documentação consultada, notícia dos seus proprietários nos séculos XVII e XVIII.

Maria José Ferro Tavares, professora catedrática em História Medieval, doutorada com a tese “Os Judeus em Portugal no século XV”, tem dedicado boa parte das suas investigações à história dos judeus em Portugal e à Inquisição portuguesa. Sendo, portanto, uma das maiores especialistas na matéria e tendo já feito o levantamento das judiarias existentes em Portugal seria de supor que as dúvidas que manifestou na sua comunicação no Colóquio, relativamente à localização exacta da Sinagoga, merecessem um melhor acolhimento, nomeadamente por parte da comunicação social, que não se lhe referiu. Para esta investigadora a Sinagoga deveria situar-se na Rua Senhora da Boa Morte, numa casa com cinco confrontações, junto a um beco, porque, por norma, ficava no centro da Judiaria e nunca na Rua Direita, onde tradicionalmente moravam as elites, que já estaria fora da Judiaria. Maria José Tavares duvida que a Rua Direita seja a Rua das Tendas, uma vez que há documentos coevos que citam as duas ruas, e chamou ainda a atenção para o facto de a “rua que vai para a Sinagoga” não ser o mesmo que “rua da Sinagoga”. Discordou também com a identificação da Rua da Triparia com a Rua das Ameias (feita por Isabel Monteiro) com o argumento de que, pela própria natureza do comércio de carnes (com escorrências e odores) normalmente ficaria numa rua mais periférica E lançou o desafio: “É necessário fazer prospecções arqueológicas nestes espaços”.

Naturalmente que polémicas como esta, deveriam ser, elas próprias, um desafio para historiadores e arqueólogos e deveriam ser aproveitadas pelo poder autárquico para envolver os cidadãos no estudo e na recuperação da memória colectiva da cidade. Por isso, houve quem achasse de mau gosto a intervenção do vereador da Cultura quando, no final do colóquio, disse: “A festa vai continuar, mesmo que alguns a quisessem estragar. Não nos interessa muito se ali era a Sinagoga ou não; isso é um problema dos historiadores”.

Claro que nos interessa saber se ali era a Sinagoga ou não! Em qualquer dos casos, a casa quatrocentista, talvez a mais antiga da cidade, ficará muito bem como núcleo museológico dedicado à memória judaica.

Para além da polémica, surpreendeu a comunicação de Teresa Cordeiro, Mestre em História Ibero-Americana, com o trabalho “Adonai nos Cárceres da inquisição ou Gente da Nação na Cidade de Viseu”, professora na Escola Secundária Emídio Navarro, pela fluidez coloquial da linguagem, ao abordar o contributo que os cristãos-novos deram à prosperidade de Viseu quinhentista e à decadência que a cidade sofreu no final do século XVI, quando os marranos se viram obrigados a fugir para escapar à perseguição, ao escárnio público, à expropriação de bens, às torturas e as fogueiras do Santo Oficio. Os exemplos que apontou de casos de denúncias de vizinhos e familiares, incluindo pais e filhos, única forma de obter o perdão e a reconciliação, ilustraram de forma expressiva a “realidade recalcada” da Inquisição, de que falava Eduardo Lourenço ao chamar-nos a atenção para o facto de, à semelhança do que aconteceu com a escravatura – “salvas contadas excepções - só ter perturbado as almas delicadas quando acabou”, ficando por “exorcizar o perfume de morte que dois séculos depois, para olfactos sensíveis, ainda flutua na doce paisagem portuguesa”.

Sintomaticamente, um ilustre representante do clero viseenses, presente no colóquio, perguntou qual a percentagem de condenados, numa tentativa de relativizar o terror inquisitorial. Mas a resposta já tinha sido dada por Cecil Roth na sua “História dos Marranos”: “Na Inquisição Portuguesa, o número de condenações chegou bem acima dos três quartos do total dos casos julgados”.

Segundo Cecil Roth foi “um suborno magnificente da Sé arquiepiscopal de Viseu que venceu a oposição do papa” à existência de “uma Inquisição livre e sem obstáculos em Portugal”, que acabaria por culminar, em 1579, no poder de confiscar bens dos judeus, uma das armas mais letais do Santo Oficio, um convite perpétuo à perseguição contra os cristãos-novos.

Como é que um povo que passou pela diáspora, pela Inquisição, pelos guetos e pelo holocausto nazi pode reproduzir nos dias de hoje, os mesmos abusos (ainda que em escalas diferentes) sobre o povo da Palestina, foi a questão (sociológica) que Esther Mucznik, vice-presidente da comunidade israelita em Portugal, se furtou a responder no Colóquio, a pretexto de não falar de política (como se tivesse falado de outra coisa ao referir-se à criação do Estado de Israel e ao defender o sionismo) e apesar da sua qualidade de socióloga. O Holocausto, antes de ser História, foi Política. Se o tempo do historiador é diferente do tempo do sociólogo, como diz F. Braudel, só a unidade das ciências sociais, por ele preconizada, pode levar ao avanço da investigação e impedir o “recalcamento na história” de que também fala Jacques Le Goff, ao comparar o papel actual das massas com o que tinha na Idade Média: “um povo assustado que assiste às fogueiras” e que só se movimenta perigosamente atrás das heresias. Não se pode reflectir sobre as “heresias” no Carnaval de Torres Vedras ou do livro apreendido pela PSP em Braga (como já tinha acontecido, em 2004, com outro livro numa livraria de Viseu) sem se pensar nas consequências do medo e da delação promovida pela Inquisição ( abolida no século XIX !), e do mais recente meio século de bufaria e repressão pidesca, na sociedade portuguesa.

Carlos Vieira e Castro

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