2007-02-12

Seminário de Ciências Documentais - Tópicos (Conclusão).

3.3. SÉC. XVIII: O CASO DE BOCAGE


Debaixo do brilho do Iluminismo, as preocupações educativas afinam-se, não sendo despiciendos os contributos estruturados de um John Locke (1632-1704), de um Rousseau (1712-1778) ou de um Pestalozzi (1746-1827).
Locke, em Some Thoughts concerning Education (1693), para além de frisar o utilitarismo da educação, “aconselha as crianças a escolherem as fábulas de Esopo e o Romance da Raposa para primeira leitura, pois considera a literatura infantil como um meio de formação cultural e moral”[1], o que está de acordo, por exemplo, com o postulado lockiano que defende a impossibilidade inata dos princípios práticos validados por todos.[2] Rousseau[3] aproveitará as ideias de Locke no seu Émile, ou de l´éducation (1762), aparecendo então vários publicações didácticas para gente miúda. Pestalozzi, por seu lado, extrema a vertente pedagógica dos actos educativos ao defender que a vida é educação.
Não poderia o nosso país ficar indemne a estes ventos racionalistas, registando-se, a partir do século XVIII, um acréscimo nos índices de leitura, vulgarizando-se também as traduções de obras de popularidade mais do que comprovada. A literatura para crianças e jovens, de acordo com os preceitos filosóficos atrás entrevistos, era um meio formativo a que a família recorria cada vez mais.
Como género, dominava a fábula, aparecendo traduções, quase sempre a partir do francês, de Filinto Elísio (1734-1819) e da Marquesa de Alorna (1750-1839), responsáveis pela fixação de inúmeros leitores da época. Neste contexto, salientam-se, pela vocação infanto-juvenil, as Fábulas de Bocage (1765-1805), ilustradas por Julião Machado, traduzidas a partir de La Fontaine ou criadas originalmente pelo Poeta.
Na época, e até um pouco antes, não pode deixar de ser mencionada a apropriação por Perrault (1628-1703) das histórias populares orais dos séculos XII ao XV, bem como as suas Histoires ou Contes du Temps Passé avec des moralités (1697), contendo autênticos paradigmas da literatura infantil (“Gata Borralheira”, “O Polegarzinho”, “Barba Azul”, “A Bela Adormecida”, “O Gato das Botas”, “O Capuchinho Vermelho”…), reaproveitados, como ele fizera já com a tradição oral (oratura), pelos clássicos posteriores Andersen e os irmãos Grimm, por exemplo. Quanto à transmissão e à força irradiante da literatura tradicional, lembro aqui as palavras de Maria Laura Bettencourt Pires que, em ensaio com cerca de um quartel, informa que “foram encontradas trezentas variantes da Cinderela desde uma do antigo Egipto até à The Little Sacared One dos Índios Americanos.”[4]
A fábula, com fortuna desde o século XVII, veio a conhecer igual glória no setecentismo, e será Bocage um dos seus mais notáveis cultores, seja traduzindo La Fontaine, seja exercendo a sua indesmentível capacidade criativa através de inéditos seus. É o caso do texto seguinte, que transcrevo:

O pássaro prisioneiro
Na gaiola empoleirado,
Um mimoso passarinho
Trinava brandos queixumes
Com saudades do seu ninho.
«Nasci para ser escravo
(Carpia o cantor plumoso),
Não há ninguém, neste mundo,
Que seja tão desditoso.
Que é do tempo, que eu passava,
Ora descantando amores,
Ora brincando nos ares,
Ora pousando entre flores?
Mal haja a minha imprudência,
Mal haja o visco traidor;
Um raio, um raio te abrase,
Fraudulento caçador!
Em que pequei? Porventura
Fiz-te à seara algum mal?
Encetei, mordi teus frutos,
Como o daninho pardal?
Agrestes incultas plantas
Produziam meu sustento,
Inútil aos que se prezam
Do alto dom do entendimento...
Do entendimento! Ah malignos!
Vós, possuindo a razão,
Tendes de vícios sem conto
Recheado o coração.
Ah! Se a vossa liberdade
Zelosamente guardais,
Como sois usurpadores
Da liberdade dos mais?
O que em vós é um tesouro,
Nos outros perde o valor?
Destrói-se o jus do oprimido
Pela força do opressor?
Não tem por base a justiça,
Funda-se em nossa fraqueza
A lei, que a vós nos submete,
Tiranos da Natureza.
Em ofensa das deidades,
Em nosso dano abusais
Da primazia, que tendes
Entre os outros animais.
Mas ah triste! Ah malfadado!
Para que me queixo em vão?
Que espero, se contra a força
De nada serve a razão?»
Aqui parou de cansado
O volátil carpidor;
Eis que vê chegar da caça
O seu bárbaro senhor.
Trazia encostado ao ombro
O arcabuz fatal, e horrendo,
E alguns pássaros no cinto,
Uns mortos, outros morrendo.
Das penetrantes feridas
Ainda o sangue pingava,
E do cruento verdugo
As curtas vestes manchava.
O preso vendo a tragédia,
Coitadinho, estremeceu,
E de susto, e de piedade
Quase os sentidos perdeu.
Mas apenas do soçobro
Repentino a si tornou,
Cos olhos nos seus finados
Estas palavras soltou:
«Entendi que dos viventes
Eu era o mais infeliz:
Que outros têm pior destino
Aquele exemplo me diz.
Da minha sorte já agora
Queixas não torno a fazer:
Antes gaiola que um tiro,
Antes penar que morrer.»

Como vemos, a fábula bocagiana contém os “ingredientes” possibilitadores de leitura interessada e poliédrica. O recorte moralizador é visível e não deixa de ser evidente a acção simples e concentrada. Como o defende Carlos Reis, deve a fábula manifestar uma estrutura e uma funcionalidade próximas do conto infantil, não faltando ainda a vocação ético-moral. Assim nesta fábula de Bocage.

3.4. SÉC. XIX: CASOS EXEMPLARES


O século XIX, até pela força inicial do Romantismo, é um momento de intensa actividade afim ou preparatória daquilo a que se poderia fase de consciencialização da literatura para a infância e a juventude. Desde as lacerações garrettianas na fábula até às escavações estiloepocais nos cancioneiros populares e na tradição (quem esquece a confidência do narrador das Viagens de haver tido uma velha Brígida “contista de histórias da Carochinha”?) efectuadas pelo mesmo Garrett, é impossível não lembrar, sem ordem que não a temporal, pares de nomeação como Guerra Junqueiro (1850-1923) e os Contos para a Infância Escolhidos dos Melhores Autores (1877), Antero de Quental (1842-1891) e o seu Tesouro Poético da Infância (1883), Gonçalves Crespo (1846-1883) e Maria Amélia Vaz de Carvalho (1847-1921) com Contos para os nossos Filhos (1886), Henrique O’ Neill (1821-1890) e o seu Fabulário (1888), Eça de Queirós (1845-1900) e o texto “A Literatura de Natal” das Cartas de Inglaterra (1903) – comparando o que se passava entre nós e o que se passava em Inglaterra a respeito da literatura para crianças, é bem irónico e incisivo aquela queirosiano: “Em Portugal, nada”. -, etc…

3.5. O SÉC. XX E A ACTUALIDADE

Eis alguns nomes fundantes:
ANA DE CASTRO OSÓRIO (1872-1935)
AFONSO LOPES VIEIRA (1878-1946)
VIRGÍNIA DE CASTRO E ALMEIDA (1874-1945)
MARIA LAMAS (Pseud. Rosa Silvestre, 1893-1983)
ANTÓNIO BOTTO (1897-1959)
TERESA LEITÃO DE BARROS (1898-1983)
FERNANDA DE CASTRO (1900-1994)
AGOSTINHO DA SILVA (1906-1994)
ADOLFO SIMÕES MϋLLER (1909-1989) – semanário infantil “O Papagaio”…
RICARDO ALBERTY (1919-1992)
SOPHIA DE MELLO BREYNER (1919-1994)
ANTÓNIO MANUEL COUTO VIANA (1923).
Eis mais uns tantos, dos tempos novos, sabendo-se dos muitos que poderiam ser convocados: Eugénio de Andrade, Álvaro Magalhães, António Torrado, Manuel António Pina, Jorge Reis-Sá, José Jorge Letria...
Alguns conselhos:

Ler as recensões de revistas especializadas (“Malasartes”, “Aprender a Olhar”…), prémios literários, grupos de leitura e intercâmbio, estabelecimento de um cânone, atenção às novidades, …

Valorizar a qualidade: tema, valores, elementos da narrativa, linguagem, ilustração, formato…

[1] Maria Laura Bettencourt Pires, História da Literatura Infantil Portuguesa, Lisboa, Veja, s.d., p. 57.
[2] John Locke, Ensaio acerca do entendimento humano, “Os Pensadores”, São Paulo, Nova Cultural, 1988, cap. II, pp. 22-24.
[3] Para o aprofundamento da influência e presença do pensamento rousseauniano no nosso país, veja-se Fernando Augusto Machado, Rousseau em Portugal – Da clandestinidade setecentista à legalidade vintista, Porto, Campo das Letras, 2000.
[4] Maria Laura Bettencourt Pires, op. cit. , p. 61.

1 comentário:

  1. «Antes gaiola que um tiro,
    Antes penar que morrer.»

    :Bocage sim, um dos mais completos poetas portugueses. então os eróticos... é de ler para crer!

    abraço-te martim

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