2006-05-30

O lume e o chão (romance a duas mãos)

Capítulo III

Martim de Gouveia e Sousa

Persiste a memória coalhado no íntimo. Da fusão, pouco pensar, menos dizer. E, no entanto, reconstruo na ogiva do entendimento duas ou três razões, que escondo debaixo do tapete dos dias e das horas. Nem mulher alguma o sabe ou pode saber.
Um silvo acorda-me e traz-me à cidade, irreconhecível, mudada. Lembro agora que fui chocando impenitentemente com os passageiros que bailavam no meu sonho. Em frente, passado o grande átrio da estação, uma praça sorri tristemente ao néon que abraça a noite. Cansado da leitura e da vertigem memorial, súbita alegria vem ao corpo: sem bagagem, só este cárcere transporto, fascínio de carne, ossatura e vísceras.
A noite caiu em Viseu não há muito. É Outono e as folhas douradas, quentes, entram-me nas veias, na melancolia doce da pele. Tenho sede, agora que percorri o caminho árduo do entendimento, sabendo porque vim. Uma voz chama. Resisto ao apelo e não à sede. Em frente do passeio que sigo, a porta de um bar traz-me a dessedentação em caneca de cerveja. Entro no “Lampião”, quase devagar, e peço o ouro da seara, líquido que encosto ao sangue, enquanto devoro o prego duplo excepcional. Em volta, pouca gente ainda, pouca gente assim só.
Pacificado, tal o poder do estômago, percorro agora, desde o fundo, a avenida António José de Almeida, recortando as sombras que entrechocam com a iluminação das montras e dos escassos reclames. Uma aragem fria percorre-me o corpo, anunciando-se na pele. Percorro velhos caminhos gastos e escurecidos, lembrando ainda a voragem da consciência que há pouco me assolara e me trouxera alguns dos encontros e desencontros de uma vida por encher. À direita, o espelho poliédrico do grande prédio dos serviços médico-sociais afunda a cidade no comodismo rasteiro da contenção, desvirtuando o carácter horizontal da velha urbe.
Subo já em direcção ao Rossio. O edifício solenemente recortado do Conselheiro Afonso de Melo emoldura o postal citadino em que se divisa, só parcelarmente, a secular edificação camarária. Avanço, reconhecendo o trilho. Entretanto, o frio e a aragem sopram contra as folhas das árvores. A ágora estende-se agora sob o meu olhar, recoberta pelo calor das velhas tileiras, pontualmente odoríferas. Estou no coração da cidade, percorrida que foi a grande vascular que leva ao mundo. O comboio é a porta para a descoberta e para o sonho. Como o diz, por exemplo, Alberto de Oliveira, em poema que recordo:

No trem de ferro, vimo-nos um dia
E amar-nos foi obra de um momento,
Tudo rápido, como a ventania,
Como a locomotiva ou o pensamento.
- Amo-te!
- Adoro-te!
A estação primeira
Surge. Saltámos nela ao som de um berro.
Nosso amor, numa nuvem de poeira
Tinha passado como o trem de ferro…

Um polícia rola pastosamente o seu zelo e cose-se com o Banco de Portugal, escondendo-se do rigor da noite que agora claramente cai. Estaco perto da passadeira e contemplo o matizado das vidraças do “Clube” e a coloração oblíqua da rua Formosa. Nada muito mudou. Talvez não lembrasse já que o centro da cidade, em noites rigorosas, tem sempre um aspecto desolado e triste. Nem um livro para amenizar o tempo que o sono há-de encobrir. Um reclame da moda esbarra comigo, saído da montra de uma farmácia, e oferece a beleza num corpo demasiado evidente e devorante. Avanço de novo, ainda enviesado no olhar, preso à imagem ostensiva. “Emagreça em dias o que ganhou em anos. A diferença está na pele.” Fujo das palavras, ainda preso ao fragmento erótico. Na curva, na escadaria da praça, as luzes incidentes da livraria (da praça dita) destacam um título de Fernando Ribeiro, “Como escavar um abismo”, há pouco saído em 1ª edição. É este o ano, é da montra o poema que leio do livro aberto para a noite em mim:

No fim doce da noite,
No limite familiar da
Próxima dor
Seremos doutorados
Horroris causa:
Pelo fogo – no caos,
Pela chuva – na mentira.


Os nossos curriculuns mortis
Serão enviados
Em envelopes amaldiçoados.


Em todas as casas seremos
Sementes e armadilhas de cristal,
Entretendo famílias inteiras
Em refeições de carne vermelha
E provas de vinhos malditos,
Com fome e sede
Do Mal.


A livraria fechada e o desejo plantado na montra. Amanhã vou comprar o livro. Mãos vazias de novo, pletórico o peito de ideias, chamas e gumes. Vou para o hotel aqui a dois passos, rápido agora colado à sombra. Vejo o muro, entro e inscrevo os dados no balcão de entrada. O quarto é o 112, não, não tenho bagagem, só corpo e alma queimada. Deito-me, levanto-me, banho-me, deito-me, quase adormeço à meia-noite. Sem sono, quase acordo. Viro-me, durmo então. Como um golpe de faca afiada, o estridor do telefone irrompe. Uma estranha vibração percorre-me. A penumbra desce da lua.

5 comentários:

porfirio disse...

boa noite martim, boa noite viseu!
:
belo roteiro de viseu by night
;
muito rico de sensações
.

abraços

Anónimo disse...

Excelente vibração! Abraços...

Anónimo disse...

Esta é a nossa cidade! Viva!

Anónimo disse...

urgente ida mail. obrigada.

Anónimo disse...

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